quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Violência de “esquerda” contribui para a ofensiva autoritária em São Paulo

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Motivos para indignação em São Paulo não faltam. Um vídeo exibido pela Record mostra que, em São José dos Campos, é necessário muito boa vontade para continuar chamando de “democracia” um regime que destrói – com velocidade incrível – casas de moradores com móveis inteiros. Onde os policiais agem a serviço de interesses privados, e não somente durante a reintegração de posse. E onde jornalistas só podem fazer seus registros acompanhados dos mesmos policiais.

O protesto veemente contra esses abusos é justo, necessário – e urgente. Mas está sendo parcialmente sabotado por militantes autoritários. Eles se proclamam de “esquerda”; na prática, contudo, fortalecem os comandantes da violência de Estado. Em alguns casos ainda é possível ter esperança de que, com o tempo, os mais impetuosos passem a fazer os movimentos legítimos; em outros, os rebeldes têm igualmente uma matriz violenta e bem poderiam estar do outro lado – atirando gases e agredindo a população.


Ontem pela manhã, aniversário de São Paulo, um repórter do Estadão flagrou um rapaz, de rabinho de cavalo, esvaziando os pneus do prefeito Gilberto Kassab (PSD). O ato, em si, isoladamente, não teria o máximo de gravidade. Poderia, com algum esforço ideológico, passar por alguma tática (mais ou menos ilegítima) de questionamento de uma autoridade, de desobediência civil. O problema maior está na reação do rapaz – e no comportamento violento de outros presentes.

É que o repórter foi simplesmente agredido pelo sujeito. Apenas porque o gravava. “Sou da imprensa, sou da imprensa”, repetia ingenuamente Felipe Frazão – como se aquele homem fosse se importar com isso. Rabinho-de-Cavalo partiu para cima do jornalista com frieza, sabendo muito bem o que fazia. Com ódio. Veja aqui o vídeo. Como se estivesse ali fazendo algum protesto legítimo contra a linha editorial da família Mesquita, dona do jornal, ou o modelo brasileiro de comunicação de massa. Uma repórter da Globo também foi ameaçada.

A questão é que Rabinho-de-Cavalo não se importava com aquele trabalhador, aquele profissional de imprensa. Igualmente “proletário”, conforme o jargão marxista. Apenas mais uma vítima da mais-valia, deveria saber o rapaz. Por desinteligência, por confusão ideológica? Para mim, por possuir uma matriz violenta. Como outros que estavam ali, a protestar contra o Kassab e a violência institucionalizada nas últimas semanas pela prefeitura e pelo governo estadual. Uma minoria entre os manifestantes? Sim, uma minoria – capaz de atrapalhar a causa justa de todos os demais.

Na semana passada (antes, portanto, da reintegração de posse em São José dos Campos) li em um fórum de discussões na internet algo que me deixou estarrecido. Um militante da LER-QI (Liga Estratégia Revolucionária) defendia com todas as letras o seguinte: que os médicos na região do Pinheirinho, durante o iminente conflito entre moradores e PM, não deveriam atender os policiais. Entenderam? Um policial ferido. Você é médico. Vê o homem no chão, pode salvar a vida dele. Mas não faz nada. Pois o rapaz não só teve essa ideia absurda, como a concatenou e escreveu, num grupo fechado do Facebook.

OS DIREITOS DO BUMERANGUE

Direitos humanos? Ao menos em suas noções elementares? Mas quem disse que todos os revolucionários se importam com direitos humanos? A história da ditadura brasileira, quando contada pelos verdugos, oferece esse telhado-de-vidro gigantesco para as esquerdas: quem ainda acredita que todas elas, necessariamente, queriam de volta a democracia? Não há dúvida que muitos queriam apenas outro regime autoritário – o que não tira, diga-se, o heroísmo da resistência coletiva aos opressores.

No ápice da crise na USP, no fim do ano, eu conversava com uma militante de esquerda, indignada (justamente) contra os desmandos do reitor João Grandino Rodas e as violências policiais – não somente na Cidade Universitária. Em determinado momento, porém, surgiu o assunto da União Soviética. Ela defendia o regime soviético. Até aí poderia ser por desinformação, pensei. Eu e outro colega na roda questionamos: mas e os milhões de camponeses assassinados pelo regime? A resposta justificava o genocídio: “Estavam desafiando as decisões do proletariado”.

Falar de fascismo de esquerda pode soar contraditório. Em senso estrito, de fato, não é o termo preciso. Mas que outras palavras identificam movimentos de massa, em onda, que desafiam liberdades individuais, ou ignoram direitos de minorias? Notem que estas minorias, num eventual regime comandado pelas massas, podem significar os antigos espoliadores – empresários cínicos, políticos corruptos, autoritários etc. Aqueles militantes mandarão essas pessoas para o paredão? Em nome da “democracia”?

Um dos lemas do fascismo italiano era a expressão “me ne frego”. Traduções: não me importa, “I don’t give a damn”, eu não estou nem aí. Essa expressão é tão localizada assim no tempo e no espaço? Na Itália da primeira metade do século? Ou sintetiza posturas – de direita e de esquerda – em toda a nossa sociedade? Macunaíma não disse a mesma coisa com outras palavras? Isto para não ser repetitivo com Jarbas Passarinho e os escrúpulos de consciência enviados “às favas”.

O curioso é que esses militantes violentos julgam-se muito mais espertos do que são. Na prática, a força excessiva que eles usam nos protestos acaba sendo facilmente utilizada pelos governos, como se estes fossem judocas que revertessem a força dos adversários. As investidas sem estratégia tornam bem mais fácil o jogo de conquista da opinião pública (pela imprensa mencionada anteriormente) pelos cínicos de plantão.

Notem que não estou falando aqui de desobediência civil, nem questionando resistências legítimas a violências institucionais. O cientista político Carlos Novaes explicou em plena TV Cultura que os moradores do Pinheirinho estavam certos, naquele contexto, em resistir à lei.

Estou falando de táticas tresloucadas de militantes voluntariosos. Às vezes eles são (ou parecem) muito bem intencionados e compartilham de algumas de nossas indignações. Proclamam-se justos e heroicos - numa proporção, segundo eles mesmos, imensamente superior à de qualquer interlocutor "alienado" e infinitamente passivo. Mas a maior qualidade de alguns deles está a de serem perfeitos atiradores de bumerangue.

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Um comentário:

Thiago Quintella de Mattos disse...

Excelente, ótimo alerta, ótimo esclarecimento! São extremos movimentos de mesma essência! Muito bom lembrar também o fascismo, há muito ele nas casas legislativas e ministérios, inclusive na arquitetura.