domingo, 15 de janeiro de 2012

Grandes Patifes da Literatura (IV) –
João Romão

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

O cortiço de Aluísio Azevedo é filho do cortiço de Émile Zola. Quem o diz é o crítico Antonio Cândido, em “O Discurso e a Cidade”.  Azevedo escreveu sua grande obra – para Cândido, as demais são medíocres – em 1890. Doze anos depois de “A Taberna”, de Zola (1878). Por isso nada de “transposição direta da natureza”, avisa o crítico, como pretendia o naturalismo. Personagens e situações de “O Cortiço” são diretamente inspirados em personagens de “L’Assommoir”.

Mais de 120 anos depois, a obra de Azevedo se afirma como um clássico. Um dos livros que grudaram na lista de leituras obrigatórias da Fuvest, ele se mantém como referência para se pensar a questão urbana. A visão higienista embutida na obra está aí ainda, em São Paulo e no Brasil (da Favela do Moinho à Cracolândia, dos morros do Rio a milhares de iniciativas governamentais em cidades médias e grandes), para quem quiser ver.

Mas uma obra-prima sempre permite leituras diversas. Este item da série “Grandes Patifes da Literatura” foi sugerido pelo jornalista Haroldo Ceravolo Sereza. Especialista em literatura, e da boa, ele não titubeou quando instado a sugerir um grande patife: “João Romão”.

O protagonista do "Cortiço", de fato, vai além de Zola e do próprio naturalismo. É exatamente João Romão que marca a diferença central em relação ao livro de Zola. As duas obras são sobre trabalhadores “amontoados numa habitação coletiva”, como diz Cândido. Mas, como mostra o crítico, Zola não associou a vida do trabalhador à presença direta do explorador econômico – como faz Azevedo.

No livro do francês há apenas a figura do senhorio, “que cobra aluguéis nos momentos difíceis”. Em Aluísio Azevedo essa presença do explorador econômico “se torna o eixo da narrativa”. Para Cândido, a originalidade do livro está na coexistência íntima do explorado e do explorador. Isso só era possível, diz, porque o país era à época “economicamente semicolonial”.

Romão é um capitalista obsessivo, mas sem grandes refinamentos. Ele mesmo se vê de modo um tanto torpe. Diante dos vizinhos de origem nobre, envergonha-se – mas compensa essa percepção acumulando mais capital.

Em meio a esse processo, o leitor do século 21 tende a ficar particularmente chocado com o modo como Romão vê e trata Bertoleza – candidata, como a Madalena de Paulo Honório, à lista de mulheres mais humilhadas da literatura brasileira.

O País acabava de se livrar da escravidão. “Sou negra, sim, mas tenho sentimentos”, diz Bertoleza a Romão, ao saber que ele planeja se livrar dela. Azevedo escreve as últimas palavras de sua obra como se mantivesse a frase adversativa, de forma invertida (e crítica): “Bertoleza tem sentimentos, mas é negra”.
Ao contrário de Paulo Honório, um tanto direto demais, Romão mostra nessa sequência final que também pode ser dissimulado.

A sequência é um dos finais mais conhecidos da literatura brasileira:

“ - Quem me procura?... exclamou João Romão com disfarce, chegando ao armazém.

Um homem alto, com ar de estróina, adiantou-se e entregou-lhe uma folha de papel.

João Romão, um pouco trêmulo, abriu-a defronte dos olhos e leu-a demoradamente. Um silêncio formou-se em torno dele; os caixeiros pararam em meio do serviço, intimados por aquela cena em que entrava a polícia.

 - Está aqui com efeito... disse afinal o negociante. Pensei que fosse livre...  - É minha escrava, afirmou o outro. Quer entregar-me?  - Mas imediatamente.  - Onde está ela?

 - Deve estar lá dentro. Tenha a bondade de entrar...

O sujeito fez sinal aos dois urbanos, que o acompanharam logo, e encaminharam-se todos para o interior da casa. Botelho, à frente deles, ensinava-lhes o caminho. João Romão ia atrás, pálido, com as mãos cruzadas nas costas.

Atravessaram o armazém, depois de um pequeno corredor que dava para um pátio calçado, chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras no chão, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.

Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre; adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.

Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.

 - É esta! Disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a segui-los. -  Prendam-na! É escrava minha!

A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.

Os policiais, vendo que ela não se despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto, e antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado”.

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