Caso Yoani Sánchez mostra crise e agonia do discurso político
racional
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Imagens. Sons estridentes. E não textos. Pelo menos não textos longos, com começo, meio e fim, discursivos, espírito persuasivo. A celeuma em torno da vinda da cubana Yoani Sánchez exibe um problema que extrapola a posição política (pró ou contra) em relação a Cuba, ou em relação à dissidente. Em vez de argumentação, tivemos cartazes, dinheiro sendo chacoalhado. Em vez de ponderação, gritos, exasperação. Do outro lado, mitificação, preguiça de contextualizar, vontade de reduzir a história de Cuba a duas ou três frases.
Como o debate em torno de Yoani ganhou contornos radicais (para não dizer histéricos), devo avisar que não estou a falar somente da cubana. Mas da crise do discurso político no Brasil. E também daquele discurso no campo progressista, da utopia, não somente aquela tarefa cômoda dos conservadores. Para defender o regime cubano, alguns militantes não admitiram sequer a possibilidade de um debate em contornos clássicos com a blogueira. Simplesmente não a admitiram como interlocutora.
Isso tem ocorrido à exaustão no cenário político brasileiro. Há algo contra o novo partido de Marina Silva, a Rede? Nada de se preocupar com o discurso da ambientalista, como aquele exposto no Roda-Viva de segunda-feira. É preciso desconstruí-la com rótulos, com generalizações – inclusive a de que fala demais. Seus pensamentos são espremidos em algum ponto de uma espécie de catálogo da desautorização, um kit já pronto para reduzir qualquer oponente. Uma tecla F5 (ou F7, F9) que facilite tudo, que dispense o exercício do convencimento.
Essa mesma lógica imediatista e exacerbada vale para grupos dos mais diversos espectros políticos. Ler um livro ou mesmo um artigo até o fim está se tornando um fardo. Ninguém leu o blog da cubana. Não leram e não gostaram. Como ela pagou a viagem? Basta acusar, insinuar, fazer uma lista de perguntas no Facebook – e pronto. Não carece ouvir a sua versão. E eventualmente, se fantasiosa ou distorcida, rebatê-la com calma, discernimento. É preciso cada vez mais chutar, demolir. Com palavras triunfalistas, como se fosse uma oposicionista cubana o obstáculo a ser superado no mundo, e não o tom farsesco (pois excludente) de todas as nossas democracias.
No campo oposto não há muita diferença. A própria cubana (muito longe de ser uma intelectual) classificou de “terroristas” os militantes estridentes e pouco educados que a hostilizaram no Brasil. Defensores dos governos tucanos, líderes evangélicos ou políticos ruralistas pouco se importam em ponderar, admitir alguma chance de que os discursos contrários tenham elementos contundentes, baseados em fatos ou evidências. Não há vontade de convergir, nem de admitir a hipótese de que o outro lado tenha alguma razão. É como se todos estivessem na zona de conforto. Um megadesfile dos teimosos.
Essa crise, por suposto, não é só brasileira. Líderes políticos de todo o mundo baseiam-se na imagem. Na repetição e perpetuação de algum estereótipo. E não na inquietação, na renovação constante de conceitos. Do exibicionista Silvio Berlusconi ao discreto José Mujica, todos se tornam reféns desse mundo das aparências. Nem o simpático presidente uruguaio (bem articulado) se salva dessa lógica. Não necessariamente por ele, mas pela falta de disposição de seus defensores para desenvolver melhor suas ideias. Comemora-se não necessariamente o que ele tem de melhor – apenas esta ou aquela política com a qual concordemos. Não seu outro estilo de vida, sua proposta de desaceleração. (Uma slow politics em contraponto a esse fast food eleitoral).
O venezuelano Hugo Chávez é até bem discursivo, prolixo. Fidel Castro também era. Mas seus seguidores já não querem mais ouvir ou ler nem aquilo com o qual concordem. Cito os exemplos mais à esquerda (ainda que uma esquerda censora, no caso de Fidel) por sua maior tradição em invocar discursos racionais contra a barbárie. Mas é claro que a direita é pródiga nesse sentido, como no caso de Berlusconi, ou de Paulo Maluf. Este político paulista responde o que quer, e não o que se pergunta – em método recomendado pelas assessorias de imagem brasileiras. “Não tenho conta no exterior”, repete ele. Não se trata só de Maluf: todos seguem acreditando nos próprios disparates.
A lógica da intolerância também se manifesta tematicamente: da posição em relação ao aborto ou a redução da maioridade penal, de uma discussão sobre futebol à regulação dos meios de comunicação. Ninguém escuta nada, de nenhum lado da ponte. Filmes? “Eu vi este, aquele, aquele outro, aquele acolá. E você?” “Então, eu estava revendo um filme dos anos 50 e pensando que...” “Ah, legal, eu vi também mais outro filme, mais outro, mais outro... “ E ninguém desenvolve nada, ninguém costura nada.
As redes sociais, como ponto de encontro de protestos, têm radicalizado essa tendência performática e efêmera, hostil ao debate de fato, ao debate construtivo, que aponte novas possibilidades. Quem tem posição política diferente das turbas, na internet, logo se percebe como um náufrago. Basta ver o sucesso de fotos e “memes”, em comparação com os textos longos. Detalhe: não estou a falar apenas de pessoas de formação cultural tímida. Mas de legiões de universitários, de gente que até já leu dúzias de volumes sisudos e com lógica ferrenha.
No momento em que discordamos de algo ou alguém, em meio a esse deserto de racionalidade, devemos estar preparados. Algum franco-atirador logo buscará alguma coisa em nossa biografia: uma espinha (uma palavra mal colocada), um cabelo despenteado (um apoio político questionável), uma roupa fora de seu tempo (uma frase fora do contexto). E seremos catalogados. Seja como “reacionários”, seja como “baderneiros”. Detectada alguma discordância, não terão dúvida: ao ataque. De preferência em turma. E, em vez de alguns milênios de história, filosofia, literatura, cinema (ou de uma biografia digna e coerente), melhor apertar a tecla F5.
Retórica? Tempo para amadurecer a argumentação, respirar fundo, um copo d'água entre um raciocínio e outro? Nuances, concessões, tréplicas, referências filosóficas, algum repertório literário ou cinematográfico, metáforas elaboradas? Tudo isso passa a ser desnecessário. “Militantes” de todos os espectros possíveis estão a postos para reduzir tudo a um grunhido. Cibernético ou nas ruas, não importa. Mas um grunhido à Edward Munch: expressionista, performático. Um resmungo intolerante.
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