Cracolândia: “dor e sofrimento”, tortura, insultos e limpeza social
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
A estratégia estatal de “dor e sofrimento” para lidar com os usuários de crack em São Paulo – com a polícia à frente da questão - foi explicitada ontem em reportagem da Agência Estado. A ideia é que eles não tenham droga à disposição e procurem ajuda. Os especialistas rejeitam com veemência essa abordagem nada científica. Um professor da Unifesp afirma que isso pode prejudicar um trabalho de anos com aquelas pessoas.
O padre Julio Lancelotti traduziu com a palavra “tortura” essa estratégia de “sofrimento e dor”. Para ele, fazer alguém sofrer deliberadamente constitui tortura. Uma das pessoas que lidam cotidianamente com os moradores de rua – entre eles, usuários de droga – em São Paulo, Lancelotti tem sido vítima de insultos nas ruas. Por comerciantes e, relatou ele há pouco em sua página no Facebook, até por policiais:
- Celebramos a missa de madrugada na Cracolândia. Antes, muitas cenas de violência da PM e abuso de poder. Quando estávamos cantando e rezando, acolhendo os irmãos, um grupo armado de PMs nos abordou, correria, vieram atrás. Os irmãos pediam ‘vem conosco, pois vamos apanhar’, caminhei com eles e com os missionários da Missão Belém. Um policial gritou para mim: ‘Vai pra tua Igreja,não atrapalha o nosso trabalho, pois não vou na tua Igreja atrapalhar o teu’.
Essa missa foi realizada na madrugada desta sexta-feira. Lancelotti relatou também insultos dos comerciantes. Ele disse que, diante desses fatos, é importante a presença dos defensores públicos – para a garantia dos direitos dos moradores de rua e de seus apoiadores.
O jurista Walter Maieorivth também utilizou a palavra "tortura", no portal Terra, para definir a ação "dos governos Alckmin e Kassab". Ele cobrou medidas da ministra Maria do Rosário, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, e que a nova procuradora no Tribunal Penal Internacional, Fatou Bensouda, levante o que acontece na Cracolândia "e enquadre as irresponsabilidades e desumanidades".
A LIMPEZA SOCIAL
A revista virtual Outras Palavras publicou um texto do psiquiatra Edmar Oliveira, especialista em saúde mental. Segue um trecho importante:
- Setores hipócritas da sociedade, uma mídia alarmista e políticas públicas equivocadas (quando não intencionais) estão usando o crack para criminalizar a pobreza e atacar os bolsões de populações em situação de vulnerabilidade com o eufemismo do “acolhimento involuntário”.
Mais à frente ele diz que não é o crack a epidemia a ser enfrentada, “mas o abandono de populações marginalizadas que não encontram lugar nessa sociedade do individualismo”. “Talvez por isso eles se juntem nos guetos, onde ainda encontram a solidariedade dos iguais, já que a sociedade não tem lugar para esta gente que não soube encontrar seu lugar”.
Há alguns termos utilizados por urbanistas e geógrafos para descrever o que está acontecendo em São Paulo. Por um lado, higienização social, ou limpeza social. Por outro, gentrificação – ou “enobrecimento urbano”.
A palavra enobrecimento é uma tentativa de tradução de gentrification. Este termo foi criado nos anos 60 para indicar uma transformação do espaço urbano que exclui as camadas mais pobres da população. Os lugares considerados “degradados” são reservados para as pessoas consideradas mais nobres – e para os investimentos imobiliários.
A ação na cracolândia deve ser vista por esse prisma. Trata-se, portanto, de uma ação planejada – de “dor e sofrimento” – do aparato estatal para excluir populações de rua da região central. Priorizando determinados setores econômicos. Os comerciantes que vaiam o padre Lancelotti são apenas a parte mais visível do poder econômico beneficiado pela política de Gilberto Kassab (PSD).
Vale registrar que o jornalista Eduardo Nunomura publicou no Estadão, em outubro de 2009, que uma única apreensão de crack no Jabaquara supera a soma de mais de 200 em Santa Cecília – onde fica a cracolândia. Ou seja, o crack está espalhado. Ele aparece, portanto, apenas como discurso para justificar a expulsão de pessoas daqueles locais – por questões econômicas, e não de saúde.
Um dos relatos reunidos pelo padre Julio Lancelotti é de moradores de rua contando que foram – eles mesmos – atingidos pelos jatos d’água da prefeitura. O que comprova que não se tratava apenas de limpeza das ruas – mas de “limpeza social”.
Deveria estar claro para todos (inclusive para jornalistas e donos de meios de comunicação) que saúde não é caso de polícia. Que os policiais e jornalistas, portanto, não atrapalhem o trabalho de psiquiatras, assistentes sociais e psicólogos.
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Um comentário:
Camila Rigo,
desta vez você foi especialmente filosófica.
Claro, o policial tomou a palavra de um modo extremamente funcionalista, conforme uma divisão restritiva que procuram nos impingir. Não há como fugir aqui, aliás, do conceito de alienação.
Mas a sua pergunta encaminha para uma reflexão ética. Eu li depoimento de policial da Cracolândia na linha: "Olha, eu honro a minha farda, honro meu trabalho, mas estamos enxugando gelo". É um caso mais radical, o dos policiais (braço de repressão do Estado), mas em nossas profissões também estamos sujeito, sim, às contradições. A tomada de consciência em relação a elas é um primeiro passo para a superação - dessas contradições e do que você chama de "realidade".
Por outro lado, li também estes dias, no Centro de Mídia Independente, que um policial do Piauí postou no Facebook um lamento muito específico: ele reclamou que estava de folga no dia em que a tropa de choque avançou mais brutalmente em cima dos estudantes. Ele queria estar lá.
São dois casos opostos. Parece-me evidente que, no primeiro caso, o policial tende a não estar do lado ruim da força - e não seria ele a passar com viatura em cima das pernas das pessoas, por exemplo; e que a responsabilidade maior estaria com seus superiores; no segundo caso temos mais do que um cúmplice, temos um possível criminoso fardado.
E assim por diante.
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