por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Treze crianças indígenas morreram nos últimos dias no Acre, vítimas de diarreia, vômito e dores. A suspeita, rotavírus. Ainda não há diagnóstico. Elas eram dos povos Hui Nikui e Madjá, do Alto Purus. No ano passado, também em janeiro, oito crianças Xavante morreram após um surto de pneumonia, em um intervalo de 15 dias. Essas crianças não estavam no Canadá – estavam no Brasil. Um País que ainda violenta seus povos originários.
A referência ao Canadá não será entendida por quem leia este artigo daqui a alguns anos. Refiro-me à insuportável leveza que tomou conta da internet nos últimos dias, a partir de uma piada sobre uma tal de Luiza – que (apenas isso) viajou para o Canadá. Essa informação singela foi dita num comercial paraibano e se tornou mania nacional. Um assunto seríssimo, opinou hoje o jornalista Gilberto Dimenstein em sua coluna no UOL. Digno de estudos aprofundados.
Hoje, 20 de janeiro, é o Dia Nacional da Consciência Indígena – e merece uma reflexão de todos os brasileiros sobre a indiferença nacional diante das violações sistemáticas dos direitos dos povos indígenas. Crianças e adolescentes de diversas etnias são assassinadas, ou morrem por falta de assistência médica. Mas não se tornam – como a tal Luiza - um assunto viral nas redes sociais. Por quê?
Este é um vídeo divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário com notícia sobre as crianças do Acre:
A esse acontecimento somou-se outra notícia do Acre, publicada na segunda-feira pelo Blog da Amazônia, no portal Terra. A antropóloga Oira Bonilla - nesse espaço mantido pelo jornalista Altino Machado - contou que um falso pastor desapareceu com 13 índios da etnia Paumiri. Entre eles duas crianças e seis adolescentes.
Outra notícia (com um pouco mais de repercussão) foi dada em primeira mão, no início do ano, por blogs de Maranhão e de Brasília: a denúncia, por lideranças indígenas e pelo Cimi, de que uma criança da etnia Awá-Guajá, de 8 anos, foi morta – e queimada – por madeireiros no Maranhão.
Essas mortes não foram gravadas em vídeo, não chocaram como o espancamento do yorkshire em Goiânia. E não geraram “memes”, piadinhas na internet do mesmo nível da velha piadinha do pavê. (“É para ver ou...”) Talvez porque essas ondas sejam auto-referentes demais, uma espécie de Vídeo-Show do mundo virtual.
CONSCIÊNCIA EMBOTADA
Há no Brasil um embotamento da consciência, após anos de decepção com os governos de PT e PSDB – esses que deveriam ter resgatado dívidas brasileiras históricas. A dívida em relação a 511 anos de invasão dos territórios indígenas ainda não começou a ser paga. Em meio à falta de alternativas políticas (e a esse emburrecedor Fla-Flu político) multiplicam-se as fugas – quando não as conivências.
Enquanto isso, algumas de nossas 210 nações indígenas seguem sendo dizimadas. No Maranhão, baixaram de 280 mil, no fim do século 19, para 25 mil pessoas, atualmente. Mas o assunto, no início de 2012, é a sorridente Luiza – “que já voltou do Canadá”.
Índios bebendo água com barro no Rio Xingu, por conta da Usina de Belo Monte? Um presidente da Funai omisso? O ministro da Justiça preocupado em impedir a entrada de haitianos no Acre? Não: melhor compartilharmos mais uma piadinha no nosso Facebook.
Diante da crise recente na USP, Gilberto Dimenstein chamou os alunos ativistas de “delinquentes mimados”. Tudo porque tinham ocupado a reitoria, em protesto contra a violência da PM no campus. O mesmo jornalista não escreveu ainda, nos últimos tempos, sobre matança de indígenas. Ele, que já foi “especialista” em infância e em educação, sugere que seja estudada a repercussão desse “efeito Luiza”.
Penso que seria melhor estudar a indiferença nacional diante de crianças mortas por diarreia. Ou assassinadas por madeireiros – não podemos nos esquecer que, em 2009, outra criança Awá-Guajá recebeu um tiro na nuca, numa região que a Funai insiste em ignorar. Em 2009 outras dez crianças indígenas foram assassinadas no Brasil.
O PAPEL DO GOVERNO
Mais fácil pensar em pesquisas banais que cobrar ações políticas – de todos os governos de todas as origens partidárias. Diante da situação dos povos indígenas, por exemplo, o que está fazendo exatamente o governo federal? Vamos discutir isso na internet? Ou somente mudanças nas leis americanas?
Segundo o Cimi, em dezembro, apenas 33% dos recursos federais para a proteção de povos indígenas, em 2011, tinha sido gasta. Os gastos com saúde indígena chegaram, no ano passado, a apenas 64% da verba prevista.
Qualquer relação desses números com as mortes daquelas crianças será mera coincidência?
Esse é o Brasil real, que emerge acima dos “memes” e do Big Brother - e que os nossos políticos sempre insistiram em ignorar. É o Brasil da expulsão de sem-teto (em São Paulo e em São José dos Campos), da tortura na Cracolândia, das violências policiais admitidas como algo normal.
Dia a dia, porém, post após post, os representantes mais ilustres da sociedade brasileira (estudantes, jornalistas, advogados, médicos, engenheiros, atores, cineastas) têm chegado ao mesmo nível de consciência daqueles ilustres políticos – praticando, nas redes sociais, a sua dose diária de escárnio.
Estarei exagerando? Sendo por demais enfático? Sinto muito: no Dia Nacional da Consciência Indígena as palavras não poderiam ser mais simpáticas ou conciliadoras. Pois, do Canadá à Cracolândia, do Acre a São José dos Campos, dos gabinetes de Brasília à nossa escolha diária de temas nas redes sociais, o verbo a ser utilizado é esse mesmo: escarnecer.
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