quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Sobre imprensa, estudantes e tortura

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

A revista Miséria (miseriahq.blogspot.com) repercutiu da seguinte forma a entrevista com Rosi, a estudante de Filosofia da USP torturada no dia 8 de novembro pela polícia, em plena reitoria: “Folha de São Paulo e Rede Globo omitem caso de estudante torturada por conta da ocupação da reitoria da USP”.

Esse é o título principal. A outra chamada do site igualmente foca o conflito na omissão da imprensa: “
Jornalistas da Folha de São Paulo e da Rede Globo souberam que estudante tinha sido torturada por policiais, mas optaram em não divulgar isso em seus jornais”.

De fato, o relato que fiz a partir de duas entrevistas de Rosi contém esses dois casos: o da Folha e o da Rede Globo. No caso da emissora de TV, a estudante criticou um repórter que, segundo ela, ignorou a denúncia (ainda no calor dos acontecimentos, durante a reintegração de posse da reitoria) de que estava sofrendo violência dos policiais.

No caso da Folha, Rosi foi procurada por um repórter, dias após a prisão. A entrevista foi gravada. Mas o jornal não quis publicá-la, alegando “questões editoriais”. A transcrição dessa mesma entrevista, porém, motivou na segunda-feira um texto da agência Carta Maior (que não ouviu Rosi) e o texto neste blog (que fez outra entrevista com a estudante).

Ou seja: além de não publicar a reportagem, o jornal faz o entrevistado pensar que o texto vai ser publicado – enquanto isso, respeitando a exclusividade, a fonte não divulga a outros veículos. E o fato vai esfriando. Duas semanas depois, Rosi falaria no Masp, durante ato contra a PM, que a imprensa “podre” não tinha publicado sua denúncia.

“NÍVEL DE DESINFORMAÇÃO”

A revista de quadrinhos Miséria - que destacou essa face jornalística do episódio da tortura - é mantida por um coletivo do qual faz parte o jornalista e cartunista João da Silva. Ele também trabalha no jornal Atenção, da Fábrica Ocupada Flaskô. Seu ponto de vista, como mostra o destaque dado aos casos de imprensa, é o de quem não acredita na isenção dos grandes meios de comunicação.
Ele não é o único. Vale destacar alguns comentários de amigos no Facebook. Maria Laura Conti Nunes ironizou a “imparcialidade” da imprensa e recomendou a entrevista com Rosi desta forma: “Leia e descubra seu nível de desinformação sobre esse assunto.” Nanci Pittelkow resumiu o texto de forma concisa: “O outro lado da história”. As duas são jornalistas.

O fato é que a grande imprensa vem fazendo jus a essa descrença (cada vez mais crescente). No caso da USP, a relação hostil entre ela e o público estudantil ocorre desde que, no fim de outubro, três estudantes da Geografia foram abordados por policiais no estacionamento da faculdade – e detidos pela posse de uma pequena quantidade de maconha.

O acordo entre estudantes e jornalistas tem sido raro - quase impossível. É uma espécie de conflito USP-Mackenzie dos anos 2000. Nos últimos meses eu (jornalista-estudante) assisti a quase todas as assembleias gerais dos estudantes da USP, participei de ato em frente da reitoria e assisti à movimentação em torno das ocupações (da administração da Faculdade de Filosofia) e da reitoria. Do lado dos estudantes, paranoia. Do lado dos jornalistas, um certo complexo de superioridade.
ESTUDANTES X IMPRENSA

O conflito era evidente. No vão livre do prédio da História-Geografia, vi um amigo que trabalha na Band, Francisco Câmpera, revoltadíssimo – um estudante cuspira nele, do alto do prédio, sem se identificar. E ele acabara de chegar. Cuspiram só porque ele era jornalista – ou da Band. Em vários outros momentos alguns estudantes enfrentaram os profissionais de imprensa. Com ofensas verbais, tapa nos microfones e, até, briga corporal.

Do outro lado, igualmente pouca disposição ao diálogo. Um dia um estudante da FEA (a Faculdade de Economia, antro de conservadores na USP) chegou em frente da reitoria com um cartaz. O texto insinuava que os ocupantes só podiam estar ali, ser revolucionários, por causa do dinheiro “do papai”. Os cinegrafistas se divertiram – sentiram-se representados por aquele provocador isolado.

Quase desnecessário assinalar que a performance isolada do aluno da FEA ganhou muito mais mídia do que centenas de falas (sérias, representativas, discursos políticos legítimos) de estudantes de esquerda, nas assembleias ou fora dela. A Batalha da Cidade Universitária é notoriamente desigual.

Nesse contexto, fatos de interesse dos estudantes (e de interesse público), como os cartazes colados por skinheads, foram sistematicamente ignorados. Folha e Globo só noticiaram os cartazes - intolerantes e ameaçadores - depois que a Polícia Civil passou a investigar o caso – mas omitiram que essa provocação ocorrera desde antes da reintegração de posse da reitoria (como eu expliquei à Folha).


E olhe que um desses cartazes trazia a imagem de Vladimir Herzog pendurado, com a seguinte legenda: "Suicídio é triste, né?" Na assinatura, uma letra repetida três vezes, compondo uma sigla muitíssimo conhecida nos anos de chumbo: "C.C.C." Uma referência, claro, ao Comando de Caça aos Comunistas.

UM ICEBERG DE NOTÍCIAS

Analisando a cobertura dos episódios na USP, percebi que as notícias e reportagens formam um bloco monolítico – uma visão demonizadora do movimento estudantil. Uma das táticas, como observa o professor Dennis de Oliveira (do Departamento de Jornalismo da ECA-USP), foi a de infantilizar os estudantes. Utilizando diminutivos e expressões pejorativas. Até gente rodada como Gilberto Dimenstein caiu nesse discurso.

Outra tática repetida, avalia Dennis, é a visão moralista – como se ninguém nas redações fumasse maconha ou otras cositas más. E não vamos nem falar dos comentários fascistas de leitores - neste reino da trollagem que se tornou a internet, nessa descida aos infernos que se tornou a leitura de comentários sobre qualquer assunto.

Por outro lado, os artigos – opinativos- sobre os conflitos na USP traziam uma maior pluralidade de pontos de vista. Às vezes, curiosamente, em um único artigo. Algumas das vozes que se levantaram em defesa (nem sempre geral e irrestrita) dos estudantes o fizeram em artigos da imprensa alternativa (como o jornal Brasil de Fato) – mas também em grandes jornais, como Estadão e Folha.

Ou seja, o formato jornalístico destinado a relatar a pluralidade de pontos de vista (as reportagens) tornou-se um imenso bloco monolítico – para não dizer um iceberg. Do outro lado, um formato (o dos artigos) que poderíamos supor mais preso aos interesses do autor revelou-se mais plural.


UM ESPECIAL LAMENTO

Como jornalista, lamentei e lamento a agressividade de parte dos estudantes contra os profissionais de imprensa. Mas sei que não são todos os estudantes que pensam e agem dessa forma.

Como estudante da USP, lamento a indiferença e o cinismo de boa parte dos profissionais da grande imprensa. E registro que, infelizmente, percebo como poucas as exceções.

Em especial, deploro a omissão – historicamente imperdoável – de que uma cidadã brasileira, uma jovem de 25 anos, foi torturada em plena Cidade Universitária, no prédio da reitoria, no centro do poder da maior universidade da América Latina – essa espoliada.


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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Rosi conta como foi torturada na USP

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Rosi não estava na reitoria naquela madrugada. Uma semana após a ocupação do prédio da Cidade Universitária pelos estudantes, ela cedera a barraca para um casal de amigos que visitava a ocupação. Dormiu no conjunto residencial dos estudantes, o Crusp, a poucos metros da reitoria. Mas isso não a impediu de ser presa, após uma decisão judicial que determinou a reintegração de posse do prédio.

A estudante de 25 anos, nascida no Paraná, foi uma das 73 pessoas detidas por um aparato de 400 policiais – da Tropa de Choque e da Cavalaria (PM), do Grupo de Operações Especiais (GOE) e do Grupo de Ações Táticas Especiais. Era o dia 6 de novembro, quase manhã de terça-feira. Profissionais de imprensa, informados da ação, acompanhavam a movimentação policial antes mesmo de os estudantes perceberem o cerco ao prédio.

Vários helicópteros (só um da PM) sobrevoavam o local. Rosi acordou assustada com o barulho e com a luz. A janela de seu quarto estava iluminada, mas ainda estava escuro. Ela desceu e foi ao prédio da reitoria. “Lá embaixo, os PMs impediam as pessoas de sair, inclusive as que tinham que ir trabalhar”, conta a estudante de Filosofia – hoje no terceiro ano da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Humanas, a FFLCH.

O Crusp também foi atacado. A polícia jogou uma bomba de gás lacrimogêneo (o que pode ser visto neste vídeo) nos corredores da moradia estudantil e reprimiu repórteres do Jornal do Campus, o jornal-laboratório do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Uma repórter tentou registrar imagens, mas não teve a mesma liberdade que veículos da grande imprensa.

- Chegando próximo à reitoria, eu comecei a tirar fotos em frente do cordão de isolamento da polícia, para registrar o que acontecia. Havia barulho de coisas sendo jogadas, quebradas. Nisso apareceu um policial por trás de mim, apontando uma arma de grosso calibre. Eu fiquei paralisada. Na minha frente estava o cordão de isolamento. Atrás, um cara armado.

Exatamente esse policial se aproximou de Rosi, pegou em seus braços, disse a ela que estava detida e a mandou deitar no chão.

- Chegaram mais dois PMs, que já me jogaram no chão para me imobilizar. Comecei a gritar, já que eu não estava lá dentro e eles não tinham justificativa legal para me deter. Eu só estava filmando! Foi quando um deles falou: “É melhor levá-la pra dentro”.

DENTRO DO PRÉDIO

A estudante (de 1m 59 e 60 kg) conta que, na delegacia, falaram que ela foi presa por ter tentado entrar na reitoria. “Como eu vou entrar em um lugar cheio de polícia, passando pelo cordão de isolamento?”, questiona.

Rosi foi levada para a frente da reitoria - arrastada. Ela conta que os policiais quebraram o vidro e entraram. Era uma sala escura. Não havia nenhum aluno. Só policiais. Homens. “Alguns estavam mascarados”, conta, “com pano embaixo do capacete”.

- Lá, me colocaram de pé e me mandaram deitar no chão. Como eu não fiz imediatamente o que me pediram, porque eu estava em estado de choque, eles chutaram minha perna, que ficou roxa.

Após levar o chute na perna, Rosi foi atirada ao chão, de bruços.

- Quando me jogaram no chão, um homem sentou nas minhas pernas, próximo ao meu bumbum. Outros dois sentaram no meu tronco, pressionando meu corpo no chão com o joelho. Havia vários policiais em volta, fazendo uma roda. É que, como eles estavam ao lado do vidro, se alguém estivesse passando por ali poderia ver.

A única visão que a estudante tinha era das botas. A sala estava toda escura. Ela calcula que havia uns 12 homens ali, “todos para imobilizar uma mulher”. Falaram a ela que iam levá-la presa e botaram um lacre em suas mãos. “Também pegaram minha câmera, roubaram o cartão de memória e a quebraram”. Eram aqueles lacres de plástico, com buraquinhos. “Provavelmente não tinham algemas para prender todo mundo”.

A TÉCNICA DO “PORCO”

A partir daí começou um período marcado pelo que ela chama de “requintes de tortura”. Os relatos chocaram os advogados que estão cuidando do caso:

- Nesse momento os policiais apertaram meu pescoço e taparam minha boca e meu nariz. Sou asmática. Quase desmaiei. Eles são sádicos, riam de mim, falavam que eu não ia sair dali. Eu gritava de dor e batia as mãos no chão, e eles falavam: “Você está pedindo arrego?”.

Ela pensava que ia morrer. “Em vários momentos achei que fosse morrer, principalmente por falta de ar, asfixiada. Que iam alegar que eu morri no meio do movimento. Eles não pouparam esforços. Era um clima de criar terrorismo”.

Rosi não conseguiu falar nada. E, mesmo assim:

- Um deles pegou na minha nuca, bateu várias vezes minha cabeça no chão, na parte do couro cabeludo, para não deixar hematoma. Eu tentava respirar e não conseguia. Aí mordi a mão do PM que tapava minha boca e nariz. Quando fiz isso, eles me falaram: “Ah, então você quer conhecer o porco, você conhece o porco?”.

O porco era uma espécie de bolacha de plástico, um material muito resistente que enfiaram em sua boca. Era um objeto achatado, conta com detalhes a estudante, que a impedia de falar e de respirar pela boca. “Um típico instrumento de tortura, até porque eu tenho dificuldade de respirar pelo nariz”.

Ela ficou com o tal “porco” na boca enquanto eles recomendavam: “É melhor ficar quieta, senão vai ser pior”. Enquanto isso, puxavam sem cessar seu braço para trás, ao mesmo tempo em que pressionavam ainda mais seu corpo contra o chão.

- Pensei que não havia mais ninguém lá dentro, que todo mundo já havia sido retirado e que iam fazer o que quisessem comigo. Depois eu soube que tinha uma sala ao lado, onde as meninas ouviram tudo o que aconteceu ali, elas são testemunhas. Onde eu estava não tinha uma mulher, ninguém.

Após vários minutos nessa situação, prenderam Rosi com um lacre, com as mãos pra trás. Apertaram muito forte e a levantaram do chão - pelos cabelos. Somente então retiraram o “porco” de sua boca e a levaram pra outro lugar, mais iluminado.

NA MIRA DA IMPRENSA

A iluminação revelaria as marcas da tortura. Com dor no braço, viu que ele estava roxo. E reclamou de dor. Ela faria muito mais tarde o exame de corpo de delito, obrigatório para os 73 estudantes detidos – somente 21 horas após a reintegração de posse.

- Os PMs me arrastaram para um corredor iluminado. Reclamei que meu braço doía muito. Eles olharam e falaram que realmente estava muito apertado. Pegaram uma faca enorme, pediram pra eu ficar quieta, para não cortarem meu braço, e cortaram o lacre.

Nesse momento começava outra luta de Rosi: contra a indiferença de imprensa que cobria os eventos na USP. Os dias anteriores tinham sido marcados por conflitos entre os estudantes e repórteres, fotógrafos e cinegrafistas. Havia provocações de ambos os lados. Do lado da imprensa, a ofensa recorrente era a de que todos eram “maconheiros”. Os estudantes criticavam a imprensa “burguesa”, vendida – e nada independente.

- Nisso passou um repórter da Globo, o primeiro a chegar no local. Ele fez toda a cobertura da desocupação. Quando eu o vi achei que era minha salvação: comecei a gritar e falar o que estava acontecendo. Ele me olhou com o maior desprezo e passou direto. Estava mais preocupado em filmar a reitoria!

A estudante diz que a emissora fez um acordo de exclusividade com os policiais. “Não foi à toa que a Rede Globo foi a emissora que mais atacou o movimento”, teoriza.

Mesmo assim, conta ela, alguns cinegrafistas filmaram algumas cenas que lhe servem de provas. As imagens do Jornal Nacional mostram-na reclamando da mão machucada. “Mas não me colocaram falando o que tinha acontecido, a violência contra mim eles não colocaram”, reclama.

Diante da indiferença dos repórteres, um policial ainda falou para ela: “Viu, não adianta nada você reclamar!” E ordenou: “De pé. Fica de pé!”.

- Eu não conseguia ficar de pé, mas eles queriam que eu ficasse. Um PM pegou o cassetete e apertou contra a minha garganta pra eu ficar em pé, junto à parede. Minha garganta desde então está inflamada e estou rouca.

A CHEGADA DA POLICIAL

Foi quando chegou uma policial, loira. A estudante diz que pode identificá-la no processo. Até porque eram 25 mulheres presas entre 400 policiais – mas apenas três policiais mulheres. E, entre essas três, aquela era a única loira.

- Achei que ela fosse ter o mínimo de sensibilidade. Aí aproveitei para falar para o PM: “Você vai me bater de novo?”. Nisso ela chegou, tirou ele de lá e falou: “Ele não pode te bater, mas eu sou mulher e posso”. Pegou na minha blusa e me jogou duas vezes contra a parede. Reagi com o cotovelo e ela saiu.

Mas os policiais continuaram por ali.

- Eles continuaram em volta de mim. Essa loira veio em seguida com minha máquina dentro da caixinha. Pensei: “Olha, que gentileza”. Mas estava quebrada e sem o cartão. A policial ainda me falou: “Se você colaborar eu vou te levar junto das meninas, senão você vai ficar aqui com os meninos, viu?”.

‘SÓ UMA LOUCA GRITANDO”

Rosi foi levada para a sala, onde as demais 24 mulheres detidas estavam sentadas no chão, com vários policiais no recinto. Eles tapavam o vidro com escudos para que, do lado de fora, não pudessem vê-las. A quantidade de policiais era maior do que a de detidas.

Nesse momento a estudante ficou sabendo que, minutos antes, diante de seus gritos, os policiais diziam o seguinte às suas colegas, atemorizadas: “Não se preocupem com os gritos, é procedimento normal”. Outro policial deu uma explicação diferente: “Não é nada, só uma louca que entrou gritando”.

Pelo relato de suas colegas, Rosi ficou cerca de 30 minutos sozinha com o grupo de PMs – sem testemunhas diretas, sob a tutela do Estado.

- Ficamos horas nessa sala e começaram a me ligar. Eu atendi e disse que estava lá dentro. Contei que estava passando mal, que precisava da minha bombinha. Só nesse momento eles acreditaram que eu tinha asma. Vinte minutos depois trouxeram minha bombinha, que meu namorado levou. Depois me mandaram desligar o celular e ficamos incomunicáveis.

A estudante conta que havia vários policiais militares sem farda, à paisana, filmando os rostos de todos. “Todos eles estavam sem identificação, dentro e fora da reitoria”, afirma. Elas reclamaram desse detalhe, mas a policial loira perguntou: “O que você entende de Polícia Militar pra saber o que PM pode ou não pode?”.

“VOCÊ ESTAVA LÁ, VOCÊ ME AGREDIU”

No 91º Distrito Policial, na Vila Leopoldina, Rosi foi atendida por uma delegada.

- Tentei falar para ela o que aconteceu comigo, dizendo que eu nem estava na reitoria naquele momento. Ela me disse que o questionário partia do pressuposto de que eu estava lá dentro, e que não havia uma lacuna onde ela pudesse relatar o que queria falar.

Então a estudante resolveu ficar em silêncio - declarar somente em juízo. Quando saiu da delegacia deparou-se com um policial gordinho, de olhos azuis. Como algumas meninas estavam fumando, ele queria colocá-las logo dentro do ônibus.

- Questionamos isso e ele me disse: “É pra você acatar, que você conhece minha força”. Eu não aguentei e disse: “Então você estava lá, seu filho da puta, você me agrediu”. Depois disso ele desapareceu. Não o vi mais.

Orientada pelo advogado, Rosi diz que tentou registrar a agressão em um boletim de ocorrência, mas a delegada teria se negado a registrar. “E ela teve a pachorra de dizer depois, em entrevista, que nenhum estudante alegou ter sido agredido”.

Sobre o motivo do protesto político na reitoria, a estudante rejeita a ideia de que os estudantes estavam ali somente para defender o direito de fumar maconha:

- O que defendemos é o direito de ter uma universidade de fato pública e aberta, para que as pessoas não tenham suas bolsas revistadas ou apenas pelo fato de serem, por exemplo, negras. E policia na universidade põe em risco o direito mais elementar numa democracia, que é o de ir vir.

MEDO E INDIGNAÇÃO

A estudante ainda tem medo.

- Achei que ia sair incólume, mas tenho tido sonhos com polícia todas as noites. Nem que sejam breves. Eles me batendo, como remake, eles me parando, eu sendo revistada, amigos meus sendo abordados e eu assistindo. Vou tentar marcar uma psicóloga.

Ela diz que alguma coisa mudou em sua vida. Na USP, mudou até o jeito de andar. “Agora ando assustada, olhando para os lados. Não ando mais sozinha pelo campus. E as pessoas ficam olhando”. Por isso prefere ficar em casa. “Penso que pode ser um deles, que podem me reconhecer. Você acaba ficando com mania de perseguição”.

Rosi já trabalhou como babá, monitora escolar, bóia-fria, frentista de posto de gasolina, em fábricas, em telemarketing, no comércio. Hoje, é professora na rede pública estadual. Dá aulas de filosofia para crianças. “Quando eu voltei para a escola as crianças  falaram: ‘Eba, a professora foi solta!’”.

Ela nasceu no Sul. É filha de militante político (do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST). Morou em acampamentos, durante a infância, e isso lhe soava algo natural. Chegou à USP porque lhe parecia um lugar livre, “onde os jovens podiam pensar livremente”. “Era tudo engano”, diz.

Quando seu pai ficou sabendo do que aconteceu, queria levá-la de volta para o interior paranaense. “E lá eles tinham as notícias da Rede Globo e da Bandeirantes, que trataram a gente como criminosos”, conta. “Mas ele sabe como é isso”. No Crusp, ganhou a presença constante de seus companheiros de militância, de seu namorado e amigos.


Rosi diz que sempre tive uma veia crítica. “Não sou xiita ou radical, apenas uma estudante que se indigna, que quer uma universidade que não seja só para ela. A USP pra mim foi um sonho, e eu queria que outras pessoas pudessem compartilhar isso”.

Militante do grupo trotskista Práxis - Socialismo ou Barbárie, ela considera-se “uma indignada”, que gosta de estudar, de fazer política e de morar no Crusp. Está mais resguardada, para não ser presa, mas já voltou a militar – nesta segunda-feira, compareceu à audiência pública sobre o tema na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

- Espero que eu não seja jubilada e possa prestar concurso para dar aula como professora efetiva. Não cometi nenhum crime, foram eles os criminosos, desejo não sofrer nenhuma represália, principalmente da própria universidade.

Ela reconhece que seu caso pode ajudar na luta de mulheres que sofrem violência. “Sem dúvida foi um abuso diante da minha condição de mulher. Se fosse um homem não seriam tão enfáticos”.

Mas não quer se considerar uma vítima, individualmente. “É todo um movimento”, define. “Não foi em vão. Ainda bem que o movimento está vivo e dando uma resposta a tudo o que aconteceu. Assim ganho força para falar”.

DIANTE DA IMPRENSA – PARTE 2

Duas semanas após a prisão em massa na reitoria, no dia 22, os estudantes da USP realizaram um ato no vão livre do Masp. Era uma “aula pública de democracia”, em resposta ao governador Geraldo Alckmin – para quem os estudantes é que deveriam ter aulas de democracia.

Em sua fala, Rosi tomou o microfone para protestar – com veemência - contra a mídia “podre" que, segundo ela, ignorou seu caso. “Eles não quiseram publicar minhas denúncias de tortura”, bradava. Ela diz que expôs o que a mídia não quis saber o que de fato aconteceu na USP - mas sim caluniar o movimento e seus participantes.


Minutos após eu a procurei. Ela estava com seu namorado, calma, ambos abraçados, escutando os demais discursos. Apresentei-me e demonstrei interesse em publicar toda a história – conforme o seu relato. Peguei seu telefone e marcamos a entrevista.

Eu não fui o primeiro. Dias antes, Rosi dera entrevista a um repórter da Folha de S. Paulo. A transcrição do depoimento – gravado - foi a base do relato publicado na agência Carta Maior e (com vários adendos exclusivos) nesta entrevista.

Durante o depoimento à Folha, ela chorou. Foi o mais difícil. Agora está mais calma – e mais confiante por eu ser, além de jornalista, estudante da USP. Tanto que permitiu publicar seu nome - na Carta Maior, apareceu como Nadya.

A reportagem da Folha, porém, nunca foi publicada. “Seria importante sair num jornal de grande circulação. Mas não quiseram”.

Era contra a linha editorial.


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"Sobre imprensa, estudantes e tortura"


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domingo, 27 de novembro de 2011

Sem teto e "com vida": um manifesto

Acabei de retweetar um manifesto do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) chamado “Manifesto Sem Teto Com Vida”:

A sacada é da maior importância. Por questionar conjuntamente duas grandes indiferenças: aquela em relação ao direito à moradia e aquela em relação ao direito à vida.

“É hora de acabar com a especulação imobiliária desapropriando terrenos para construção das moradias para as famílias”, diz o texto. Sim, é hora. E, no nosso cotidiano, estamos (nós e os governos) mais perto do quê? De patrocinar a especulação imobiliária ou de reivindicar moradia digna para cada brasileiro?

O movimento será lançado durante um ato no Masp, no dia 8. Sugiro aos colegas jornalistas que coloquemos esse fato em nossas pautas. Que tal oferecer o mesmo destaque dado ao ato dos estudantes contra a PM, realizado na quinta-feira? Mas sem dar destaque aos supostos prejuízos ao trânsito! (Esse mesmo trânsito congestionado também por conta da especulação imobiliária.)

Outro texto do MTST critica o processo de criminalização dos movimentos sociais. E denuncia:


"Durante a noite do dia 6 de setembro, dois homens armados invadiram a casa de Edson Francisco, membro da coordenação nacional do MTST em Brasilândia (DF).

Os homens arrombaram o portão, entraram na casa e dispararam vários tiros contra Edson que conseguiu fugir sem ferimentos graves".


Não ouvimos falar de Edson Francisco, certo? A imprensa tem outra agenda - onde os Edsons têm pouca importância diante dos Calheiros e Vacarezzas. Mas não precisa ser assim. Que tal recolocarmos os crimes políticos na agenda do dia? Crimes contra camponeses, indígenas, quilombolas, sem teto?

Vários colegas que estão lendo devem pensar: mas como vou fazer isso no meu jornal? “A pauta não encaixa”, “com meu editor não dá jogo” etc. Então tá: utilizemos outros recursos: o Facebook, o Twitter, os blogs.

É de democracia real que se trata. Ela presume a livre manifestação. Falei logo acima dos atos no Masp – dos estudantes aos sem teto. Todos precisamos garantir respeito à livre expressão - e pressão - dos movimentos sociais. E o histórico recente da polícia paulista é o da mais abjeta repressão.

E quem justifica culturalmente essa repressão? Senhoras como aquelas que comentaram os episódios da USP (naquele vídeo bizarro das socialites, fartamente divulgado na internet) da seguinte forma: “Ah, com certeza tem sem terra no meio. Sem teto..."

Elas pronunciam as palavras "sem terra" e "sem teto" entre o medo e o asco. Como se falassem de uma legião de bandidos – e não de excluídos, espoliados. O que gera esse medo, esse asco e essa indiferença e essa ignorância?

Vamos falar seriamente de legalidade, caras quatrocentonas? O próprio manifesto dos sem teto invoca dois singelos documentos. Um deles é o Estatuto da Cidade. O outro,a Constituição. Seria lindo ver cada sem teto no ato com uma Constituição na mão. Contra as armas e os carros na Paulista.
A capa da Folha de sexta-feira trazia uma foto enorme - e ótima - de senhoras indignadas com o ato dos estudantes na avenida. Uma delas mostrava o dedo do meio aos manifestantes. Quero vê-las mostrando o dedo do meio para os sem teto...

por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)


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sábado, 26 de novembro de 2011

Ordem e retrocesso

A USP teve ontem à noite uma aula pública particularmente especial. Sentados no “morrinho” do prédio da História, cerca de cem alunos assistiram a um debate sobre maconha. Foi justamente por ali que, no fim de outubro, três alunos da Geografia foram detidos por policiais, fato que deflagrou a revolta dos estudantes, as ocupações (da FFLCH e da Reitoria) e a greve estudantil.

Dizer que foi um debate sobre maconha é pouco. Foi também uma aula sobre liberdade de expressão. O professor Henrique Carneiro, da História, fez questão de abrir sua fala fazendo referência à revolta no Egito. Contou o caso do militante Ahmed Harara que, em protesto no dia 28 de janeiro, perdeu um olho, no confronto com a polícia. De volta às ruas de Cairo, no último dia 19, mais confronto – e ele perdeu o outro olho. Em sua homenagem, os manifestantes saíram às ruas com um olho tapado. Com ele à frente.

A imagem da cegueira é precisa. Penso em Saramago e seu Ensaio sobre a Cegueira. E no Informe sobre Cegos de Ernesto Sabato. No caso da maconha, a sociedade brasileira ainda não acordou para a dimensão do problema que é a criminalização de uma droga leve – levando simples consumidores e portadores à prisão. Thandara Santos, da Marcha Mundial das Mulheres, lembrou que boa parte das mulheres presas foi condenada por levar drogas aos maridos nos presídios. A ausência delas desagrega as famílias e gera novos ciclos de exclusão.

Thandara contou que mais da metade das apreensões de drogas ocorre no Estado de São Paulo. Não à toa, os paulistas são os que mais investem em policiamento – ou seja, em polícia ostensiva, e não em serviços inteligentes de segurança. É uma sociedade de vigilância, como observava Michel Foucault. Mas vigilância de algo banal: consumo de maconha. Tudo em nome da “ordem pública” – um conceito que, observa Thandara, não foi em nenhum momento definido juridicamente.

Como não foi definido, vale tudo. E passa a caber às forças policiais definir o que é a tal “ordem”. Lembrando do Egito: quem estaria ali em nome da ordem ou em nome da desordem?

Henrique Carneiro diz que a sociedade brasileira é simpática à legalização da maconha. Uma prova seria a reação contrária à repressão policial ao ato realizado em maio, em São Paulo. Ele diz que, ao adotarem o recurso das ocupações (mascarados), os estudantes perderam a oportunidade de promover um debate nacional sobre o tema – e de liderar manifestações massivas pela legalização.

A repressão ao direito de se manifestar tem-se afirmado como grande tema nacional. Mas, no reino das manifestações, alguns têm mais direitos que outros. Esta semana, estudantes contrários ao novo Código Florestal tiveram os cartazes confiscados no Senado. Mas o mesmo não ocorrera, dias antes, com os ruralistas favoráveis à nova legislação – devastadora, na contramão da história.

O novo Código Rural, como diz Marina Silva, é empurrado aos brasileiros em nome do “progresso”. A palavra está lá na nossa bandeira. Ao lado exatamente da palavra “ordem”. Os ruralistas que desmataram, que agrediram o ambiente, serão absolvidos. Jovens consumindo maconha, na USP e em todo o Brasil, esses são criminalizados.

por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)


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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Um novo blog

Criei este blog em 2007 para guardar o endereço. Agora chegou o momento de utilizá-lo. Naquela época meu blog principal se chamava "Capital do Brasil" - pois morava em Brasília. Voltei para São Paulo em 2008 e a atualização daquele material perdeu sentido. Em paralelo, eu mantinha com amigos - e sócios - o site da Agência Repórter Social, a primeira opção para a publicação de notícias e reportagens. Na virada de 2010 para 2011, porém, decidimos interromper (com muita dor) as atividades do site: um sucesso editorial, mas que se tornou insustentável financeiramente.

Não desisti. Outros projetos virão. Mas retomo agora o blog como espaço essencial para o registro de minhas atividades. Como tal, será um espaço múltiplo. Mudei o título inicial, "Nem tudo é Sórdido" (a frase é do escritor Ernesto Sabato), para "Outro Brasil" - de outro retrato necessário à afirmação de uma esperança. E resumi quatro campos temáticos básicos: jornalismo, geografia, literatura e cinema. São esses os temas dos quais mais entendo.
Escreverei em dobradinha com o Twitter: comentários mais curtos ficarão por lá. Quando tiver necessidade de mais espaço virei ao blog.

Como jornalista, sou essencialmente um repórter. Espero publicar aqui muitas notícias exclusivas. E reportagens que mostrem, de fato, outro Brasil - outro país possível e necessário. Minha proposta segue sendo contra-hegemônica, como era a do Repórter Social: dar espaço a notícias que não são prioridade da "grande imprensa". Um Brasil que valorize o social, o humano, acima do político e econômico. Os artigos seguirão na linha de crítica à indiferença, ao cinismo; e buscarão a desconstrução de discursos midiáticos. Não há nada de inocente no jornalismo - e quem está nesse meio tem a obrigação de alertar os leitores.

A geografia aparece como segundo grande tema. Meu interesse por essa ciência me levou de volta às carteiras da USP. Já venho escrevendo (há três anos) livro-reportagem diretamente relacionado à geografia agrária. Mas as geografias urbana, histórica, econômica, política e cultural estão entre minhas áreas de interesse direto. Já não tenho dúvidas de afirmar que os geógrafos conhecem o Brasil muito mais que 95% dos jornalistas. Até por manterem uma preocupação social mais arraigada. Muitas notícias e debates virão desse universo geográfico.

Por fim, abro espaço para outras paixões. Claro, são muitas: quadrinhos, música... mas as mais relevantes, até para dialogarem com os temas acima (jornalismo e geografia), são mesmo literatura e cinema. A esta altura da vida posso dizer que já entendo um pouco de literatura - ao menos da hispano-americana, e particularmente da argentina. Ao mesmo tempo, entendo razoavelmente de cinema - e muitíssimo de cinema italiano.


Tentarei fazer a costura entre esses vários campos. É o escritor argentino Ernesto Sabato quem mais me motiva (ao lado da minha filha, das pessoas que eu amo) a insistir na utopia - e na resistência. É o cinema italiano que me oferece, há mais de 20 anos, a lição de que é possível somar consciência política com rigor estético. Vittorio de Sica, Federico Fellini, Ettore Scola, Pietro Germi, Elio Petri, Paolo e Vittorio Taviani - quem me conhece sabe o quanto tenho na obra desses senhores a trilha visual e emocional de minha vida.

Utilizarei essas referências para pensar e repensar o Brasil. Nossa desigualdade, nossa violência estrutural, nossa política abjeta e economia predadora. Não perderei de vista que se trata, nestas terras mal distribuídas, de se construir um mínimo de democracia, de se afirmar os direitos humanos e sociais mais elementares. Este é o país das matanças (de camponeses, de índios, de pobres e negros), das violências policiais, da repressão a manifestações de rua, à organização e participação de movimentos sociais. É um país sem cidadania.

Como jornalista e como aspirante a geógrafo, afirmo-me como um brasileiro indignado. Com as injustiças do meu país - e desse sistema mundial (capitalista, afinal) que esgota os recursos e oprime a maior parte da população. Por isso a citação do francês Stephane Hessel - "indignez-vous". Utopia, para combater o cinismo. Resistência, para combater a passividade. Convido o leitor - desta vez, por muito tempo - a uma viagem por um Brasil (e um mundo) mais humano.

por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)


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