Os protestos contra torturadores, o Pacto
entre Derrotados, legalidade e ingenuidade
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
O escritor argentino Ernesto Sabato (1911-2011)
foi escolhido pelo presidente Raul Alfonsín, em 1983, para comandar
o relatório sobre os mortos e desaparecidos pelo regime militar.
Dali saiu o relatório Nunca Más – um clássico da política
latino-americana. Foi ele quem inspirou o brasileiro Nunca Mais, aqui
sob a regência de Dom Paulo Evaristo Arns e outros resistentes.
Sabato conta que as datilógrafas choravam e tinham de ser
substituídas, diante de tantos relatos de horror.
O prólogo do relatório ficou conhecido como
Informe Sabato.“Não poderá haver conciliação senão depois do
arrependimento dos culpados”, leu o argentino, em 1984, sob o olhar
de Alfonsín – e de toda uma nação. Enquanto isso, no Brasil, em 2012, nos acostumamos a achar que os caríssimos
torturadores são pessoas como nós. Convivemos cordialmente com
nossos algozes. E estranhamos quando alguém questiona essa inversão
de valores.
Ernesto Sabato escreveu três ficções: três fabulosas descidas aos subterrâneos da sordidez. E muitos ensaios. Em um dos últimos, “Antes del Fín” (1999), quase nonagenário, ele fala da necessidade de um Pacto entre Derrotados. Sabato considera que a solidariedade adquire um lugar decisivo “neste mundo acéfalo que exclui os diferentes”. E que o compromisso de nos fazermos responsáveis pela dor do outro nos dará um sentido, acima da fatalidade da história.
“Mas antes teremos de aceitar que fracassamos”,
avisa. É claro que ele não fala de uma derrota final. Mas de uma
derrota – diante de um sistema excludente, desigual, violento.
“Milhares de pessoas, apesar das derrotas e dos fracassos,
continuam manifestando-se, enchendo as praças, decididas a libertar a
verdade de seu amplo confinamento”.
OS TORTURADORES BRASILEIROS
No Brasil, jovens em pelo menos 11 estados redescobriram os torturadores. Estes
senhores vivem hoje como cidadãos respeitáveis. Não foram
julgados, punidos. Tudo muito “normal”. Mas o movimento Levante Popular da
Juventude protesta agora em frente de suas casas, avisa os vizinhos e
passantes que ali vive um acusado (com largas evidências) de ter
torturado outros seres humanos. E, por isso, cobra Justiça.
Em uma discussão na internet, alguém criticou a
forma escolhida pelos manifestantes: o escracho. (Ou esculacho.) E
classificou de “ingênuas” as pessoas, na faixa dos 40 anos, que
apoiam esses protestos:
- Essa iniciativa tem um problema fundamental: diz
lutar pelos direitos dos torturados, mas nega a possibilidade de
defesa a pessoas cuja culpa sequer é comprovada. Acham que ajudam a
fazer "justiça" ignorando os ritos mais sumários da
Justiça. Que jovens de 20 achem isso bacana, vá lá. Mas que
pessoas de 40 achem... Pera lá, pessoal. Chega a ser ingênuo. Que
se apure e puna, mas com legalidade. Essa coação é ilegal e a lei
é uma só para todos.
Dessa reação saiu uma longa discussão sobre
ingenuidade. Os “ingênuos” começamos a enumerar histórias de
ingenuidade. Eu lembrei do Pacto entre Derrotados de Sabato e propus
uma espécie de Pacto entre Ingênuos. Desse Pacto entre Ingênuos
adviria a necessidade de uma História Geral da Ingenuidade. No
Brasil e no mundo. De Gandhi a Martin Luther King, da Desobediência
Civil à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Eu e meu amigo Francisco Bicudo concordamos que a
Declaração Universal dos Direitos Humanos é um dos maiores
monumentos a essa “ingenuidade”. Uma verdadeira Constituição
da Ingenuidade. Bicudo destacou 2 entre os 30 artigos ingênuos:
Artigo I: "Todas as pessoas nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência
e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade".
Artigo V: "Ninguém será submetido à
tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante"
VIOLÊNCIA E PASSIVIDADE
E achamos curioso que, em meio a tremendos crimes
contra a humanidade, os protestos bem-humorados e democráticos dos
jovens sejam – eles – considerados como violações de direitos.
Tendo sido as vítimas do escracho devidamente mencionadas em fontes
bibliográficas diversas, como o próprio livro “Nunca Mais”.
Volto a Ernesto Sabato, que mostrou, no Pacto
entre Derrotados (o pacto dá título ao epílogo do livro), que uma
saída possível é promover uma insurreição à maneira de Gandhi.
Mas essa rebelião, ensina o pacifista argentino, “não justifica
de nenhum modo que [o jovem] permaneça em uma torrre, indiferente ao
que passa ao seu lado”. “Gandhi advertiu que é uma mentira
pretender ser não violento e permanecer passivo ante as injustiças
sociais”.
A esta altura do século 21 deveria estar claro
que discursos excessivamente legalistas podem estar apenas
disfarçando a defesa da manutenção de privilégios – históricos,
violentamente construídos e perpetuados. Pois, desde Spinoza, muita
gente já escreveu que o Direito costuma estar a serviço de quem tem
o poder.
Desta constatação não sairemos defendendo a
violência gratuita (este blog já condenou a ingenuidade de certas
violências “de esquerda”), a justiça com as próprias mãos
etc. Mas vivemos em um país que eterniza prisões provisórias de
usuários de drogas e moradores de rua. Que consolida a gentrificação, onde grileiros matam camponeses, onde indígenas passam frio e fome.
E o que está errado é o escracho na casa de
pessoas sistematicamente mencionadas em relatórios sobre tortura? Quando o que se está reivindicando é exatamente investigação e punição, em uma nação que ainda não
enterrou seus “desaparecidos”? Onde egressos do regime militar
fazem transição para a “democracia” e comandam o Senado?
A MULTIPLICAÇÃO DA INGENUIDADE
Em meio a
essa curiosa indignação seletiva, é bom que multipliquemos nossa
percepção sobre legalidade e ingenuidade. Caso contrário,
acabaremos achando que a revista Veja e o ministro Gilmar Mendes são
os verdadeiros defensores da moral, dos bons costumes e da Justiça.
Um caso ocorrido na África do Sul (contado por
Francisco Bicudo) resume a diferença elementar entre resistência e
conivência:
- Certa vez, o jovem Nelson Mandela, mais um
ingênuo, já lutando de corpo e alma contra as sandices e
arbitrariedades do regime sanguinário do apartheid instalado na
África do Sul, foi ameaçado por um militar, legítimo porta-voz da supremacia branca. O militar o ameaçou dizendo:
"cuidado, a lei está ao meu lado". Mandela, sem alterar a
voz, respondeu singelamente: "E a Justiça, do meu".
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