terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Eliane Brum, "Olhos Azuis", o Explorador Sexual e o Pauteiro Indiferente

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Com sua habitual elegância, a jornalista Eliane Brum escreveu esta semana – em sua coluna na revista Época – sobre um personagem sórdido, que ela apelidou de Olhos Azuis. Trata-se de um jornalista europeu (ela não o nomeia) que veio ao Brasil, em 2000, fazer uma reportagem sobre exploração sexual. Ela se dispôs a ajudá-lo, mas logo descobriu que ele, em vez de apurar os fatos, copiou uma reportagem escrita tempos antes por um jornalista do centro-oeste. Olhos Azuis era um farsante. Mas o texto foi publicado.

Eliane escreve sobre isso para falar do bem e do mal. Ela fez questão de encontrar Olhos Azuis (a quem também chama de "pior jornalista do mundo") para dizer o que pensava. Cínico, ele fez a ela uma proposta: que por um dia ele fizesse o bem, e que por um dia ela fizesse o mal. Isso a perturbou. Mas decidiu que faria ainda mais esforços para fazer o bem. Por exemplo, praticar um bom jornalismo (em seu caso, ótimo), ou não tratar com irresponsabilidade um tema sério como aquele – a exploração sexual.

Escrevo não para rebater o texto brilhante de Eliane Brum – que percorre de Goethe a Hannah Arendt e aqui ganha um resumo grosseiro. Mas para desenvolver um aspecto que, até por espaço (e pelo viés filosófico de seu artigo), ela não poderia esgotar. Quero falar da ausência do tema negligenciado por Olhos Azuis – a exploração sexual – nos principais jornais e revistas brasileiros.

Olhos Azuis é um patife, evidentemente. Mas há, nessa tragédia brasileira, personagens mais próximos do nosso dia-a-dia. A começar da própria figura do Explorador Sexual – candidato a aparecer no topo de qualquer lista de Grandes Canalhas da Humanidade. Aqui nem estamos falando ainda do Abusador Sexual, este ainda mais onipresente. Na sociedade e no jornalismo, esses personagens só podem atuar a partir da omissão do Estado (e das polícias) e de uma legião de indiferentes.

Não estou falando de algo sem base acadêmica. Especialistas nos temas (exploração e abuso sexual), como a assistente social Eva Faleiros, professora aposentada da Universidade de Brasília, dizem que esse tipo de ignonímia ocorre a partir de um certo Pacto do Silêncio. Não se tratam somente de pessoas próximas, de familiares, por exemplo, a ignorar algum caso de violência sexual. Mas de grupos inteiros, até municípios inteiros.

Na melhor das hipóteses, esse Pacto do Silêncio ocorre por conta de medo de represálias físicas. Nas piores hipóteses, por conveniência social, profissional, financeira etc.

O PACTO JORNALÍSTICO

E onde entra o jornalismo nisso tudo? Ora, a mídia contribui diariamente para esse Pacto do Silêncio. Não se trata de sabotar uma reportagem pautada, como fez Olhos Azuis. Mas sabotar a própria pauta, ignorá-la. Isso ocorre por decisão (ou omissão) do Pauteiro – o Pauteiro Indiferente. Por decisão irrevogável do editor – o Editor Cúmplice. Por inexistência de interesse de repórteres – os Repórteres Distraídos.

Escrevo esses apelidos por conta de Olhos Azuis, personagem real flagrado por Eliane Brum, mas pensando também na literatura de Roberto Arlt. O argentino é autor da obra-prima “Os Sete Loucos” (1929), onde cria personagens como O Astrólogo e O Rufião Melancólico. Autor de obras preciosas sobre submundo, como os brasileiros Plínio Marcos e João Antônio, Arlt (também jornalista) bem poderia ter escrito algo sobre alguém como Olhos Azuis – ou sobre o Pauteiro Indiferente.

As abordagens da imprensa em relação à exploração sexual são eventuais, e não sistemáticas. E por isso - em meio às honrosas exceções - escondem uma certa hipocrisia social. Em 2006 escrevi sobre isso, no site da Agência Repórter Social:


- Jornalistas e leitores retomam por instantes um certo peso na consciência coletiva e os aliviam em seguida, enquanto as raízes do problema não são efetivamente expostas ou debatidas. Um círculo vicioso explica essa discrição dos meios de comunicação: se uma das raízes sociais do problema é o tal “pacto do silêncio”, os sussurros da mídia são a sua mais completa tradução.

O que é pior? A reportagem copiada de Olhos Azuis ou a omissão cotidiana de jornalistas brasileiros?

Onde está o “mal”? Antes de mais nada na exploração sexual, claro - mas e os signatários do Pacto do Silêncio, quem são eles?

Seriam os leitores? Eles não deveriam também pressionar os editores por não varrer a sordidez do País para debaixo do tapete?

Não que apenas o cidadão comum deva ser responsabilizado. Que se discuta política - em escala. Por isso falo também nesse artigo do papel dos governos:

- Os orçamentos para preservação de direitos fundamentais são pífios. Aos sussurros da mídia correspondem as migalhas do setor público. A começar do governo federal. Não podemos pensar que seja um mérito enorme ou suficiente ele ter criado há poucos anos um Disque Denúncia. Não fez nada mais que a obrigação. O que acontece é que esse tipo de tema não está na grande agenda nacional.

Vale registrar que, entre 2005 e 2010, foram registrados 25.175 casos de exploração sexual de crianças e adolescentes, segundo o Disque 100. As capitais que mais denunciaram casos foram Salvador, Rio de Janeiro, Fortaleza, São Paulo e Natal.

Se esses números não fazem parte da grande agenda nacional é também porque o jornalismo define determinadas prioridades. Só há um Pacto do Silêncio na mídia porque há uma Pauta Barulhenta (a pauta econômica):

- A obsessão por crescimento e temas econômicos esmaga estruturalmente a noção de que, antes do PIB, dos juros ou qualquer indicador econômico, temos a obrigação de oferecer o mínimo de dignidade às nossas crianças. Essa dívida nem começou a ser paga e tem juros monstruosos. Primeiro as crianças precisam de condições normais para se desenvolver. Sem serem molestadas, estupradas, vendidas. Depois a gente discute o País.


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Um comentário:

SRTA. LÓRI CAPITU disse...

Muito boa essa reflexão... sigo lendo! :)