por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
A Folha relata hoje que uma reunião entre o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD) definiu o uso ostensivo da PM na Cracolândia, no centro de São Paulo. Desde o início do mês, dependentes e moradores de rua têm sido tocados como gado e agredidos pela polícia – em vez de uma ação com foco na saúde e assistência social.
A reportagem mostra que o fator eleitoral foi determinante na escolha dos métodos e do momento da investida. “A definição de data e hora teve combustível político”, informam Cátia Seabra e Rogério Pagnan.
É que, no dia 23 de dezembro, Dilma Rousseff anunciou – em São Paulo – a participação dos movimentos sociais em um plano contra o crack. “Atento à movimentação e sob cobrança do eleitorado, Alckmin temia que o PT assumisse a bandeira”, diz a Folha.
Dilma fez o anúncio do plano junto com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha – um possível candidato ao governo estadual em 2014.
A partir dessa informação fica mais evidente que o show de horrores na região da Luz em São Paulo é também um show político. Tortura? Viaturas passando por cima da perna de moradores de rua? Dependentes sendo enxotados e agredidos? Um cinegrafista impedido de fazer seu trabalho?
Tudo se torna mero detalhe no reino paralelo dos políticos cínicos. Dor, sofrimento? Um componente a mais para cálculos eleitorais. Trabalho de alguns meses do Tribunal de Justiça para tentar afastar crianças e adolescentes da dependência? Às favas o Estatuto da Criança e do Adolescente – prioridade, no Brasil, é manter o quinhãozinho de poder, o latifúndio eleitoral.
LOCUS HORRENDUS
O termo “Cracolândia” ficou consagrado no imaginário paulista ao definir a área, na região da Luz, utilizada pelos dependentes do crack. É lugar de aglomeração de seres humanos (crianças inclusive), com seus dramas, suas demandas por saúde, por assistência social - demandas por poder público.
Mas, com a incorporação do termo pejorativo, essas pessoas foram transformadas em um lugar – e não qualquer lugar. Mas um locus horrendus, conforme uma tradição da literatura romântica. Essa é uma expressão latina para “lugar horrível”. Opõe-se a locus amoenus – uma descrição da paisagem ideal.
A paisagem do locus horrendus é decadente. Isolada. Lúgubre. Inquietante. As definições da Porto Editora ajudam a entender por que as descrições da Cracolândia (jornalísticas ou não) remetem ao inferno dos católicos, ao umbral dos espíritas – a lugares que se deve evitar a qualquer custo.
Em uma visão higienista, esses lugares supostamente dantescos devem ser varridos do espaço público. Principalmente quando atrapalham o “desenvolvimento” da cidade. Mais particularmente, os interesses imobiliários. Essa ação tem de ser feita pelo poder público. Como não pode assumir sua desumanidade, ele disfarça sua violência com argumentos diversos – cínicos, portanto.
A reportagem da Folha – feita por repórteres atentos não à saúde, mas aos meandros da política brasileira – mostra que à frente das motivações desses agentes está a disputa eleitoral. Esta, hipertrofiada, é tomada por aqueles senhores e senhoras como algo perfeitamente legítimo, como “um pilar da democracia”.
Essa violência contra cidadãos brasileiros – todos com os mesmos direitos que os nossos – precisa ser chamada pelos nomes precisos. Eles atendem por higienismo, por gentrificação, por tortura, por censura, por violação (sistemática e estatal) de direitos humanos. Por politicagem e por cinismo.
Que as pessoas que moram no centro de São Paulo e foram atiradas ao crack sejam resgatadas em sua humanidade. Nas políticas e nos discursos. Locus horrendus é o Senado, é a Câmara. São os gabinetes dos nossos políticos diferenciados. Os cafezinhos e hotéis onde se dão gargalhadas e se fazem negociatas.
E que os brasileiros não se enganem com esse verniz de democracia cordial – ou amena. Em nosso país ela presume a violência.
Estamos, os paulistas e brasileiros, no reino da Cinicolândia. A violência tornou-se apenas uma moeda eleitoral.
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