Grandes Patifes da Literatura (I) -
Fernando Vidal Olmos
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Começo com Fernando Vidal Olmos uma série sobre patifes. Eles estão entre os melhores personagens da literatura mundial. A cada domingo espero falar de um deles.
Fernando é o personagem central de “Sobre Heróis e Tumbas” (1961), obra-prima de Ernesto Sabato (1911-2011). Aos 50 anos, é um dos grandes romances do século XX. E da história. Livro-mor de cabeceira deste jornalista-blogueiro.
A terceira parte do livro chama-se “Informe sobre Cegos”. É o relato de um paranoico – Fernando. É machista, cínico, violento. Segundo ele mesmo, “um canalha”.
Este trecho do livro resume o perfil de Fernando e, ao mesmo tempo, mostra as possíveis reflexões que a literatura nos oferece sobre essa temática – canalhices, patifarias. Um convite para pensarmos a ética (e sua ausência) no dia-a-dia:
XXX
“Ocorre-me que ao ler a história de Norma Pugliese alguns de vocês pensarão que sou um canalha. Desde já lhes digo que acertaram. Considero-me um canalha e não tenho o menor respeito por minha pessoa. Sou um indivíduo que se aprofundou em sua própria consciência, e quem é que, tendo se afundado nos vincos de sua consciência, poderá respeitar-se?
Ao menos considero-me honesto, pois não me engano sobre mim mesmo nem tento enganar os demais. Vocês talvez me perguntem, então, como enganei sem o menor escrúpulo tantos infelizes e mulheres que cruzaram meu caminho. Mas acontece que há enganos e enganos, senhores. Esses enganos são pequenos, não têm importância. Da mesma forma que não se pode qualificar de covarde um general que ordena uma retirada com vistas a um avanço definitivo. São e eram enganos táticos, circunstanciais, transitórios, em favor de uma verdade maior, de uma desapiedada investigação. Sou um investigador do Mal, e como se poderia investigar o Mal sem afundar-se até o pescoço na sujeira? Vocês me dirão que ao que tudo indica eu encontro um vivo prazer em fazê-lo, em vez da indignação ou do asco que deveria sentir um autêntico investigador que se vê forçado a fazê-lo por desagradável obrigação. Também está correto e eu o reconheço publicamente. Vêem como sou honrado? Não disse em momento algum que sou boa pessoa: disse que sou um investigador do Mal, o que é muito diferente. E além disso reconheci que sou um canalha. Que mais podem pretender de mim? Um canalha insigne, isso sim. E orgulhoso de não pertencer a essa espécie de fariseus que são tão ruins como eu mas que pretendem ser honoráveis indivíduos, pilares da sociedade, corretos cavalheiros, eminentes cidadãos a cujos enterros vai uma enorme quantidade de gente e cujas crônicas logo aparecem nos jornais sérios. Não: se sair alguma vez nesses jornais, será, sem dúvida, na seção policial. De modo que estou muito longe de sentir-me envergonhado.
Detesto essa universal comédia dos sentimentos honoráveis. Sistema de convenções que se manifesta já na linguagem: suprema falsificadora da Verdade com vê maiúsculo. Convenções que ao substantivo "velhinho" antepõem o adjetivo "pobre"; como se todos não soubéssemos que um mau-caráter que envelhece nem por isso deixa de ser mau-caráter, senão que, pelo contrário, agrava seus maus sentimentos com o egoísmo e o rancor que adquire ou incrementa com as cãs. Teria de se fazer um monstruoso auto-de-fé com todas essas palavras apócrifas, elaboradas pelo sentimentalismo popular, consagradas pelos hipócritas e defendidas pela escola e pela polícia: "veneráveis anciãos" (a maior parte já merece que se cuspa neles), "distintas matronas" (em sua quase totalidade movidas pela vaidade e pelo egoísmo mais cru), etcétera. Para não falar dos "pobres ceguinhos" que constituem o motivo deste Informe. E devo dizer que se esses pobres ceguinhos me temem é justamente porque sou um canalha, porque sabem que sou um deles, um sujeito sem piedade que não vai se deixar afugentar com besteiras e lugares-comuns. Como poderiam temer um desses infelizes que os ajudam a cruzar a rua em meio à lacrimosa simpatia estilo filme de Disney com passarinhos e fitinhas coloridas de Natal?
Se se perfilassem todos os canalhas que há no planeta, que formidável exército se veria, que amostragem inesperada! Desde criancinhas de brancos aventais ("a pura inocência da meninice") até corretos funcionários públicos, que, no entanto, levam papéis e lápis para suas casas. Ministros, governadores, médicos e advogados em sua quase totalidade, os já mencionados pobres velhinhos (em imensas quantidades), as também mencionadas matronas que agora dirigem sociedades que ajudam o leproso ou o cardíaco (depois de ter galopado em suas carreiras em camas alheias e de ter contribuído precisamente para o incremento das doenças do coração), gerentes de grandes empresas, jovenzinhas de aparência frágil e olhos de gazela (mas capazes de depenar qualquer idiota que creia no romantismo feminino ou na fragilidade e desamparo de seu sexo), inspetores municipais, funcionários coloniais, embaixadores condecorados, etcétera, etcétera. CANALHAS, MARCHEM! Que exército, meu Deus! Avancem, filhos da puta! Nada de parar, nem de choramingar, agora que os espera o que lhes tenho preparado!
CANALHAS, DIREITA!
Formoso e edificante espetáculo.
Cada um dos soldados ao chegar ao estábulo será alimentado com suas próprias canalhices, convertidas em excremento real (não metafórico). Sem consideração alguma nem arranjos. Que ao filhinho do senhor ministro não se lhe permita comer pão duro em vez de sua caça correspondente. Não, senhor! Ou se fazem as coisas como é devido ou não vale a pena fazer nada. Que coma sua merda. E mais ainda: que coma toda a sua merda. bom seria que admitíssemos que cada um coma uma quantidade simbólica. Nada de símbolos: cada um há de comer sua exata e total canalhice. É justo, compreende-se: não se pode tratar um infeliz que simplesmente esperou com alegria a morte de seus progenitores para receber uns trocados da mesma forma que alguns desses anabatistas de Mineápolis que aspiram ao céu explorando negros na Guatemala. Não, senhor! JUSTIÇA E MAIS JUSTIÇA! A cada um a merda que lhe corresponda, ou nada. Não contem comigo, ao menos para safadezas desse tipo.
E que conste que minha posição não só é inexpugnável senão desinteressada, já que, como reconheci, em minha condição de perfeito canalha, integrarei as filas do exército coprófago. Só reivindico o mérito de não enganar ninguém.
E isso me faz pensar na necessidade de inventar previamente algum sistema que permita detectar a canalhice em personagens respeitáveis e medi-la com exatidão para descontar de cada um a quantidade que merece que se lhe desconte. Uma espécie de canalhômetro que indique com uma agulha a quantidade de merda produzida pelo Senhor X em sua vida até este Juízo Final, a quantidade a deduzir em consideração à sinceridade ou boa disposição, e a quantidade líquida que deve tragar, uma vez feitas as contas.
E, depois de realizada a medição exata em cada indivíduo, o imenso exército deverá se pôr em marcha até seus estábulos, onde cada um de seus integrantes consumirá sua própria e exata sujeira. Operação infinita, como se vê (e aí residiria a piada), porque ao defecar, em virtude do princípio da conservação dos excrementos, expulsariam a mesma quantidade ingerida. Quantidade que volta a ser colocada diante de seus focinhos, mediante um movimento de inversão coletiva a uma voz de comando militar, devendo ser ingerida novamente.
E assim, ad infinitum”.
LEIA MAIS:
Grandes Patifes da Literatura (2) - Juan Pablo Castel
Fernando Vidal Olmos
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Começo com Fernando Vidal Olmos uma série sobre patifes. Eles estão entre os melhores personagens da literatura mundial. A cada domingo espero falar de um deles.
Fernando é o personagem central de “Sobre Heróis e Tumbas” (1961), obra-prima de Ernesto Sabato (1911-2011). Aos 50 anos, é um dos grandes romances do século XX. E da história. Livro-mor de cabeceira deste jornalista-blogueiro.
A terceira parte do livro chama-se “Informe sobre Cegos”. É o relato de um paranoico – Fernando. É machista, cínico, violento. Segundo ele mesmo, “um canalha”.
Este trecho do livro resume o perfil de Fernando e, ao mesmo tempo, mostra as possíveis reflexões que a literatura nos oferece sobre essa temática – canalhices, patifarias. Um convite para pensarmos a ética (e sua ausência) no dia-a-dia:
XXX
“Ocorre-me que ao ler a história de Norma Pugliese alguns de vocês pensarão que sou um canalha. Desde já lhes digo que acertaram. Considero-me um canalha e não tenho o menor respeito por minha pessoa. Sou um indivíduo que se aprofundou em sua própria consciência, e quem é que, tendo se afundado nos vincos de sua consciência, poderá respeitar-se?
Ao menos considero-me honesto, pois não me engano sobre mim mesmo nem tento enganar os demais. Vocês talvez me perguntem, então, como enganei sem o menor escrúpulo tantos infelizes e mulheres que cruzaram meu caminho. Mas acontece que há enganos e enganos, senhores. Esses enganos são pequenos, não têm importância. Da mesma forma que não se pode qualificar de covarde um general que ordena uma retirada com vistas a um avanço definitivo. São e eram enganos táticos, circunstanciais, transitórios, em favor de uma verdade maior, de uma desapiedada investigação. Sou um investigador do Mal, e como se poderia investigar o Mal sem afundar-se até o pescoço na sujeira? Vocês me dirão que ao que tudo indica eu encontro um vivo prazer em fazê-lo, em vez da indignação ou do asco que deveria sentir um autêntico investigador que se vê forçado a fazê-lo por desagradável obrigação. Também está correto e eu o reconheço publicamente. Vêem como sou honrado? Não disse em momento algum que sou boa pessoa: disse que sou um investigador do Mal, o que é muito diferente. E além disso reconheci que sou um canalha. Que mais podem pretender de mim? Um canalha insigne, isso sim. E orgulhoso de não pertencer a essa espécie de fariseus que são tão ruins como eu mas que pretendem ser honoráveis indivíduos, pilares da sociedade, corretos cavalheiros, eminentes cidadãos a cujos enterros vai uma enorme quantidade de gente e cujas crônicas logo aparecem nos jornais sérios. Não: se sair alguma vez nesses jornais, será, sem dúvida, na seção policial. De modo que estou muito longe de sentir-me envergonhado.
Detesto essa universal comédia dos sentimentos honoráveis. Sistema de convenções que se manifesta já na linguagem: suprema falsificadora da Verdade com vê maiúsculo. Convenções que ao substantivo "velhinho" antepõem o adjetivo "pobre"; como se todos não soubéssemos que um mau-caráter que envelhece nem por isso deixa de ser mau-caráter, senão que, pelo contrário, agrava seus maus sentimentos com o egoísmo e o rancor que adquire ou incrementa com as cãs. Teria de se fazer um monstruoso auto-de-fé com todas essas palavras apócrifas, elaboradas pelo sentimentalismo popular, consagradas pelos hipócritas e defendidas pela escola e pela polícia: "veneráveis anciãos" (a maior parte já merece que se cuspa neles), "distintas matronas" (em sua quase totalidade movidas pela vaidade e pelo egoísmo mais cru), etcétera. Para não falar dos "pobres ceguinhos" que constituem o motivo deste Informe. E devo dizer que se esses pobres ceguinhos me temem é justamente porque sou um canalha, porque sabem que sou um deles, um sujeito sem piedade que não vai se deixar afugentar com besteiras e lugares-comuns. Como poderiam temer um desses infelizes que os ajudam a cruzar a rua em meio à lacrimosa simpatia estilo filme de Disney com passarinhos e fitinhas coloridas de Natal?
Se se perfilassem todos os canalhas que há no planeta, que formidável exército se veria, que amostragem inesperada! Desde criancinhas de brancos aventais ("a pura inocência da meninice") até corretos funcionários públicos, que, no entanto, levam papéis e lápis para suas casas. Ministros, governadores, médicos e advogados em sua quase totalidade, os já mencionados pobres velhinhos (em imensas quantidades), as também mencionadas matronas que agora dirigem sociedades que ajudam o leproso ou o cardíaco (depois de ter galopado em suas carreiras em camas alheias e de ter contribuído precisamente para o incremento das doenças do coração), gerentes de grandes empresas, jovenzinhas de aparência frágil e olhos de gazela (mas capazes de depenar qualquer idiota que creia no romantismo feminino ou na fragilidade e desamparo de seu sexo), inspetores municipais, funcionários coloniais, embaixadores condecorados, etcétera, etcétera. CANALHAS, MARCHEM! Que exército, meu Deus! Avancem, filhos da puta! Nada de parar, nem de choramingar, agora que os espera o que lhes tenho preparado!
CANALHAS, DIREITA!
Formoso e edificante espetáculo.
Cada um dos soldados ao chegar ao estábulo será alimentado com suas próprias canalhices, convertidas em excremento real (não metafórico). Sem consideração alguma nem arranjos. Que ao filhinho do senhor ministro não se lhe permita comer pão duro em vez de sua caça correspondente. Não, senhor! Ou se fazem as coisas como é devido ou não vale a pena fazer nada. Que coma sua merda. E mais ainda: que coma toda a sua merda. bom seria que admitíssemos que cada um coma uma quantidade simbólica. Nada de símbolos: cada um há de comer sua exata e total canalhice. É justo, compreende-se: não se pode tratar um infeliz que simplesmente esperou com alegria a morte de seus progenitores para receber uns trocados da mesma forma que alguns desses anabatistas de Mineápolis que aspiram ao céu explorando negros na Guatemala. Não, senhor! JUSTIÇA E MAIS JUSTIÇA! A cada um a merda que lhe corresponda, ou nada. Não contem comigo, ao menos para safadezas desse tipo.
E que conste que minha posição não só é inexpugnável senão desinteressada, já que, como reconheci, em minha condição de perfeito canalha, integrarei as filas do exército coprófago. Só reivindico o mérito de não enganar ninguém.
E isso me faz pensar na necessidade de inventar previamente algum sistema que permita detectar a canalhice em personagens respeitáveis e medi-la com exatidão para descontar de cada um a quantidade que merece que se lhe desconte. Uma espécie de canalhômetro que indique com uma agulha a quantidade de merda produzida pelo Senhor X em sua vida até este Juízo Final, a quantidade a deduzir em consideração à sinceridade ou boa disposição, e a quantidade líquida que deve tragar, uma vez feitas as contas.
E, depois de realizada a medição exata em cada indivíduo, o imenso exército deverá se pôr em marcha até seus estábulos, onde cada um de seus integrantes consumirá sua própria e exata sujeira. Operação infinita, como se vê (e aí residiria a piada), porque ao defecar, em virtude do princípio da conservação dos excrementos, expulsariam a mesma quantidade ingerida. Quantidade que volta a ser colocada diante de seus focinhos, mediante um movimento de inversão coletiva a uma voz de comando militar, devendo ser ingerida novamente.
E assim, ad infinitum”.
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Grandes Patifes da Literatura (2) - Juan Pablo Castel
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Um comentário:
Q maravilha ler nosso inesquecível Ernesto Sábato em português....Nunca tive essa oportunidade. Obrigada!!! E esse relato...UMA PÉROLA!!!!!
Novamente ...OBRIGADA!!!!
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