Relato dos Tenharim presos: “Somos inocentes. Estamos sem chuva, sem céu, sem nossos rituais. Isso é Justiça?”
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Cinco
indígenas da etnia Tenharim estão presos desde o dia 30 de janeiro, em
Porto Velho, acusados – num processo kafkiano – de assassinar três
pessoas em dezembro de 2013. O blog reproduz aqui depoimentos dos
acusados obtidos pela antropóloga Rebeca Campos Ferreira, do Ministério
Público Federal. Eles declaram inocência. E relatam não conseguir se
adaptar às condições do presídio: sem a comida tradicional deles, sem
rede, sem cocar, sem rituais. “Não tem quase sol, nem chuva, nem o céu”.
Um sexto indígena foi denunciado à Justiça em abril, o cacique Aurelio
Tenharim. “A justiça ouviu o povo branco e os poderosos, por isso que
prendeu a gente e deixa a gente aqui?”
Para entender mais o caso
– que envolve um apartheid contra os indígenas e a destruição da sede
da Funai, em dezembro, em Humaitá - leia este relato que fiz na Agência
Pública, após cinco dias em Humaitá (AM) e região: “A batalha de Humaitá”. E este artigo no blog: “O sonho do pajé, a conta de luz ou a galinha?”
Segue
o relato feito pela antropóloga, que inclui queixas sobre falta de
apoio jurídico da Funai e das organizações de apoio aos povos indígenas:
Em 22 de maio de 2014 eu, Rebeca Campos Ferreira, Perita em
Antropologia do Ministério Publico Federal, estive na Penitenciaria de
Médio Porte Pandinha, em Porto Velho – RO, com os indígenas Gilson
Tenharim, professor da aldeia Campinho-hũ, de 19 anos; Gilvan Tenharim,
irmão do anterior e, como ele, também professor da aldeia Campinho-hũ,
de 24 anos; Valdinar Tenharim, agente indígena de saneamento da aldeia
Campinho-hũ, de 30 anos; Domiceno Tenharim, professor e cacique da
aldeia Taboca, de 33 anos; e Simeão Tenharim, agente indígena de saúde
da aldeia Marmelos, de 36 anos. Na ocasião ouvi a narrativa que segue
transcrita, “um apelo” como chamaram os indígenas, para ser repassada
aos parentes, às autoridades e à sociedade brasileira. A narrativa a
seguir foi realizada por todos eles, simultaneamente.
(Os intertítulos e explicações não fazem parte do relato original de Rebeca.)
“Queremos registrar o que a gente passa aqui.
Tem
alimentação sim, mas não é da nossa cultura e a gente não está
acostumado com isso, e está fazendo mal pra gente, dá dor na barriga, dá
diarreia. A gente não tem gosto de comer, estamos acostumados com
outras coisas de comer, o que a gente comia sempre, de caça, de pesca, é
diferente. Estamos há três dias sem comer. Se comer vamos passar mal. É
melhor não comer. A gente queria pelo menos ter nossa alimentação da
cultura. A gente não consegue dormir assim.
Não podemos ter
rede. Nosso corpo não é acostumado com isso aqui. E não tem quase sol,
nem chuva, nem o céu. Isso atinge toda nossa cultura. A cultura que a
gente está acostumado e nossos parentes que estão lá. Nossos filhos,
nossas mulheres, nossos pais, e os mais velhos. E nós perdemos nosso
pai, que era cacique. [Ivan Tenharim, morto em dezembro após cair da
moto.] E nem pudemos fazer os rituais dele. Nem as outras cerimônias que
tem que fazer nessa época. O povo da aldeia está sem cacique agora.
Isso preocupa demais a gente.
Isso é fora da nossa cultura. E a
nossa cultura aqui a gente não tem liberdade de fazer. A gente não pode
ter cocar nem fazer nossos rituais. Nem dançar, pintar, nossa cultura,
nossas coisas. Isso vem pro nosso corpo também. Nosso corpo e nosso
espírito sofre, e do nosso povo lá, a gente se preocupa muito.
E
depois de tudo que já fizeram com nossos parentes desde 500 anos quando
os brancos chegaram. E tudo que eles passaram. E com a estrada também.
[A Rodovia Transamazônica.] Mas naquele tempo não tinha lei. E hoje tem
lei pra nós índios. Somos tratados de forma esquisita. É tudo contra
índio. Mas a gente não é empecilho para o Governo, a gente é aliado para
um mundo melhor pra todo mundo. A gente não é contra branco. Somos
aliados, queremos um mundo melhor para todo mundo.
“Nós não somos seres humanos aqui”
A
gente está sentindo muito aqui. Estamos longe da terra, dos parentes, a
gente perdeu nosso cacique, sofremos tudo aquilo, do povo branco, da
polícia, estamos aqui presos, sem saber das coisas, com medo. Nós não
somos seres humanos aqui. Mas nós somos brasileiros também. A gente
enfraquece, a gente está magoado. Toda nossa família enfraquece. Nossa
terra enfraquece.
Nossa esperança é Deus agora, são vocês do
Ministério Público Federal, dos nossos parentes lá fora, de quem puder
ajudar a gente.
A gente não fez isso que falaram na televisão. A
gente não é aquilo que eles falaram. Por que fazem isso com nós
indígenas? A gente está em risco, aqui, e nossas famílias lá na nossa
terra. A gente não tem proteção. O governo não cumpre nossos direitos,
nem lá fora nem aqui dentro da cadeia. Estamos em risco. A gente
desgostou da vida.
E na aldeia, não podemos fazer os rituais da
morte do nosso cacique, a gente não pode fazer os rituais do novo
cacique, nosso povo está sem rumo, sem direção. Nem nossa festa vai ter
esse ano, ela acontece desde sempre do nosso povo. São os espíritos
nossos, somos nós todos que sofremos. Nem a cerimônia do nosso falecido
pai e cacique aconteceu, isso é ruim para o espírito. Pode vir coisa
ruim, coisa pior do que isso. A gente não tem liberdade. A gente está
sem vida. E a gente é inocente. Não somos o que eles disseram. Queremos
registrar essa mensagem para a sociedade.
“Perdemos o pai, o cacique e a vida”
Estamos
sem ritual, sem nossa cultura, sem cocar, sem nossa família e a terra
onde a gente nasceu, sem liberdade. A gente vive de cabeça baixa aqui.
Estamos sendo injustiçados. É assim que é a justiça dos brancos?
Perdemos
o pai, o cacique e a vida. Estamos presos. Estamos sendo injustiçados, a
gente não fez isso. Perdemos tudo aqui. É justiça isso? Tudo que
falaram da gente é mentira, a televisão, os brancos, mentiram e fizeram
isso com a gente. Tudo que a gente sofreu, nós e nosso povo, desde que
tudo isso começou, e quando a gente veio preso. Não deixaram a gente
voltar para casa, a gente nao sabia o que estava acontecendo. Mas
sabemos que eles fizeram coisa errada com a gente, enganaram, levaram
para fora da terra e prenderam, enganaram a gente e os irmãos. [Eles se
referem a um artifício utilizado no momento da prisão, quando foram
atraídos para fora das aldeias.]
Não sabemos direito nada ainda,
eles não passam informação, não falam nada. Nem FUNAI, nem os que
defendem a gente. Quem defende a gente? Como que é que funciona isso? A
gente não entende isso, porque não fizemos, e não entendemos o que vai
acontecer com a gente daqui pra frente. O que vai acontecer com a gente?
A gente sofreu muito naquela época e está sofrendo muito agora. O povo
nosso também. Hoje a aldeia está abandonada.
Nosso apelo é que
as pessoas tenham mais amor com o povo indígena. Que trate a gente de
forma civilizada. A gente pede para a FUNAI vir aqui, falar com a gente,
defender a gente, a gente quer saber quem abraçou nosso caso, quem está
pela gente.
“A Funai não está fazendo nada”
A
FUNAI não está fazendo nada, só o Domingues da FUNAI de Humaitá que vem
ver a gente, e os que sabem dessas leis lá de Brasília da FUNAI não. A
gente quer eles aqui pra falar com a gente. A gente não sabe o que está
acontecendo, estamos sentindo que ninguém está pela gente das
autoridades, só vocês [MPF] e nossos irmãos, nosso povo. A gente precisa
ter alguém que defenda a gente. E queremos a FUNAI para informar e
proteger.
A gente pede ao Dr. Julio [Araujo/ MPF-AM] e ao Dr.
Ricardo [Tavares], pro CIMI que pode ajudar a gente também com advogado.
Alguém tem que defender a gente e dizer pra gente o que está
acontecendo. A gente agradece muito o Ministério Público Federal, de
Manaus e daqui de Porto Velho, Dra. Rebeca [Campos Ferreira/ MPF-RO], o
Dr. Filipe [Albernaz/ MPF-RO], por vocês terem vindo aqui ontem e hoje,
por vocês lutarem pela gente, por estar aqui ouvindo a gente. É como se
fosse nossos irmãos aqui, pra gente isso é muito bom.
Foi bom
ter visto nossos parentes ontem com vocês, agradecemos por ter trazidos
eles, por eles poderem entrar com vocês. A gente esta sentindo muita
falta da nossa família e da nossa terra. Quando eles vêm é bom, quando
vocês vêm é bom. É bom saber que alguém se preocupa com a gente.
“Estamos com muito medo”
Não
queremos ir pra Manaus. Não. Lá a gente vai ficar pior. Lá nossa
família não tem como ir ver a gente. Estamos preocupados, com medo. Com
muito medo.
E queremos um advogado. Queremos que alguém lute
pela gente lá fora. Pelos nossos direitos. É um vazio pra gente aqui.
Não sabemos o que fazer e o que acontece. A gente manda um recado para
os parentes também ajudarem a gente. Eles já ajudam muito nesse tempo
todo. Pra eles virem ver a gente quando é dia de vir. Isso é bom. A
gente pede para os parentes ficarem perto da gente, e que eles estejam
perto também dos advogados, da FUNAI, do Ministério Público, e de quem
vai ajudar a gente.
Pedimos pra ser informados do que acontece.
Pedimos pra não ir pra Manaus. E pra ajudarem a gente e protegerem e
lutarem pela gente. E para o advogado que acompanhou tudo, o Dr. Ricardo
[Tavares], pedimos pra ele vir aqui falar com a gente. Ele viu como foi
que fizeram com a gente. Não foi certo o que a polícia fez. Prenderam a
gente irregular, levaram para fora da terra indígena, não explicaram
nada, não trataram a gente como ser humano. Mentiram, enganaram, diziam
coisas pra gente. Pressionaram.
E para o Dr. Julio [Araujo/
MPF-AM] nos ajudar e ajudar nosso povo. E para o Ministério Público
daqui de Rondônia, Dr. Filipe, Dra. Rebeca, e de Manaus, continuem com a
gente, e o que a gente pede. E o CIMI se puder ajudar.
Não deixem a gente desprotegidos.
“Queremos defesa, quem lute pela gente”
A
gente não quer ir pra Manaus. Nossa vontade mesmo, a gente acredita em
Deus, é voltar pra nossa terra e fazer as cerimônias que tem que fazer
pelo nosso povo.
Pedimos para as lideranças nossas para auxiliar
também, em tudo, para as lideranças nossas estarem com a FUNAI, com
advogado, com juiz, com o Ministério Publico. A gente pede pra saber
como está nossa situação, quem está pela gente, e que a FUNAI esteja
pela gente também, e que o Ministério Público não deixe a gente.
O
procurador da FUNAI veio uma vez, mas parece que a FUNAI não está dando
atenção nem prioridade. Queremos defesa, queremos quem lute pela gente.
Estamos sem nada, sem família, sem terra, sem cultura, sem liberdade e
sem saber como é nossa situação.
Ainda bem que nossos parentes e
vocês [MPF] estão com a gente. A gente agradece os parentes nossos,
nossas lideranças, o Domingues da FUNAI, Dr. Rebeca (MPF-RO), Dr. Filipe
(MPF-RO), Dr. Julio (MPF-AM), Dr. Ricardo. Por favor, leva essas nossas
palavras pra eles.
“Não somos aquilo que passou na televisão”
A
gente está sentindo muito aqui, nosso corpo, nossa cultura, e nosso
povo, a gente está preocupado com o que vai ser dos rituais que não vão
ser feitos. Mas a gente acredita em Deus, que vai ser feito justiça pra
gente. Apelo nosso é pra parar com preconceito e discriminação, para ter
mais amor com os indígenas, e não acontecer mais o que aconteceu com a
gente com ninguém. Não fizemos aquilo e não somos aquilo que passou na
televisão.
Queremos ter nossos direitos, queremos saber como
está nosso caso, queremos ser defendidos e protegidos. Não queremos ir
pra Manaus. Queremos voltar pra nossa terra com nossa família, fazer os
rituais pro nosso povo que não pode mais ficar sem. Somos inocentes.
Estamos
sofrendo muito aqui com isso, e nosso povo lá fora. Acreditamos em Deus
e nos nossos parentes, nossas lideranças, nas autoridades que vão
ajudar a acabar com essa injustiça que nosso povo sofreu.
Viemos pra cá de madrugada, ninguém disse pra onde a gente ia. A gente tem medo.
Queremos
sair daqui. Não queremos ir pra Manaus. Queremos provar que não somos
aquilo e não fizemos aquilo. Queremos saber o que acontece, a gente não
entende.
“É o massacre dos espíritos nossos”
Tiraram
a gente da terra, prenderam a gente, não deixaram a gente se despedir. A
gente não sabia o que acontecia. Não podemos ficar aqui, nem sem saber
de nada, e nosso povo não pode ficar sem ritual, sem cerimônia. É o
massacre dos espíritos nossos. E tem que fazer cerimônia funeral do
cacique. Sem as festas desestrutura tudo, o povo inteiro, se a gente não
fizer, vai ser agora em julho, ficamos todos desprotegidos, o povo todo
fica desprotegido espiritualmente, e vêm coisas ruins, não pode
interromper porque isso é desde o começo do nosso povo, e nunca ficou
sem fazer. Fica tudo desnorteado, nossa cultura e nosso povo. Sem
direção, a gente aqui e nosso povo inteiro lá. A comunidade inteira
perde.
E a angústia nossa aumentou com essa história da gente ir
pra Manaus. E fica ainda mais longe, a gente sabe que lá não tem como
ver os parentes. Não podemos ficar sem ver nossos parentes. A gente não
come mais, é muita preocupação, não tem como acostumar nosso corpo e
nosso espírito. A gente aqui não pode cantar, nao pode pintar, não pode
dançar, não é vida pra gente isso aqui. Não conseguimos dormir aqui. Não
pode ter rede, não acostumamos deitar aqui.
A gente nunca
passou por isso, nem de ficar sem ritual, nem nosso povo. Nem de ficar
fora da aldeia. Nem de ficar preso. É preconceito com indígena. A
justiça ouviu o povo branco e os poderosos, por isso que prendeu a gente
e deixa a gente aqui? A justiça tem que seguir a lei. E a gente é ser
humano.
Nosso apelo é esse. Para a sociedade ver que não somos
aquilo que passou, somos inocentes, estamos sofrendo muito aqui. A gente
só quer voltar para nossa terra e nossa família. Queremos que as
autoridades escutem a gente, entendam isso. E a gente agradece todos
nossos parentes que nunca saíram do nosso lado e todo mundo que está
lutando pela gente. Mas não deixem a gente desprotegidos, nem ir pra
Manaus, nem aqui como a gente está”.
TWITTER:
@blogOutroBrasil
NO FACEBOOK:
Outro Brasil
jornalismo, geografia, literatura, cinema. Utopia, resistência. 'Indignem-se!' (Stéphane Hessel). 'Nem tudo é sórdido' (Ernesto Sabato - 1911-2011)
Mostrando postagens com marcador #amazonia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador #amazonia. Mostrar todas as postagens
terça-feira, 3 de junho de 2014
quinta-feira, 17 de maio de 2012
Por que não boicotamos empresas ligadas a
assassinatos, desmatamento, espancamentos?
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Ativistas do Greenpeace estão agarrados há três
dias à corrente da âncora de um navio, no Maranhão. Tentam impedir
que ele saia do país com um carregamento de 30 mil toneladas de
ferro-gusa, matéria-prima do aço. A organização denuncia
utilização, na cadeia produtiva, de trabalho escravo, desrespeito a povos indígenas e
desmatamento – ou seja, floresta queimada para virar carvão,
utilizado ilegalmente pelas siderúrgicas.
A Amazônia não seria destruída sem o aval dos
consumidores. O Greenpeace lembra que, entre os clientes do minério
extraído na Amazônia (PA, AM e TO) estão as montadoras Ford,
General Motors, Nissan, Mercedes e BMW. E a produtora de equipamentos
agrícolas John Deere. Isto conforme o estudo “Carvoaria Amazônia:como a indústria de aço e ferro gusa está destruindo a floresta”.
A pergunta é: por que o brasileiro não leva a
sério propostas de boicote? Por que essas empresas não sofrem um
mísero arranhão em suas vendas?
Quando falo que boicoto a empresa Gol Linhas
Aéreas as pessoas estranham. E muito. É como se eu estivesse
falando grego. A maioria nem sabe que seu dono, “Nenê”
Constantino de Oliveira, é acusado pelo pistoleiro João Marques dos
Santos de ser mandante de oito assassinatos. Um deles, em 2001,
contra o líder comunitário Márcio Leonardo de Sousa Brito. Por
esse caso o empresário foi indiciado, em 2008, pela Polícia Civil.
Constantino já foi denunciado por outros crimes. É acusado de tentativa de homicídio duplamente qualificado contra o próprio genro. O empresário estaria insatisfeito com sua interferência nos negócios da família e por não querer dividir o patrimônio de uma empresa chamada Viação Satélite. “Nenê” vai a júri popular por conta disso. E segue, desde março de 2011, em prisão domiciliar.
Constantino já foi denunciado por outros crimes. É acusado de tentativa de homicídio duplamente qualificado contra o próprio genro. O empresário estaria insatisfeito com sua interferência nos negócios da família e por não querer dividir o patrimônio de uma empresa chamada Viação Satélite. “Nenê” vai a júri popular por conta disso. E segue, desde março de 2011, em prisão domiciliar.
Não só todos continuam de olho nas promoções
da empresa como as divulgam nas redes sociais. Solidariedade a
brasileiros assassinados? Bobagem: melhor garantir a passagem mais
baratinha. Simplesmente não conheço mais ninguém – nem uma única
pessoa – que compartilhe da minha proposta específica de boicote à
Gol. E ainda me olham como se como se eu lutasse contra moinhos de
vento.
Essa lógica do “cada um por si”, essa Lei de
Gerson aplicada ao consumo, pode ser vista também em São Paulo. E
não somente relacionada ao consumo de produtos. Tão importante
quanto economizar uns trocos na compra, numa sociedade
mercantilizada, é ter prestígio social. Ir a lugares “bem
freqüentados”. Que o diga o sucesso de uma das festas mais
badaladas da cidade, uma referência no meio teatral, que atende pelo
nome de Gambiarra.
Essa festa – não raro freqüentada por globais,
por gente descoladíssima- é organizada pela atriz Anna Cecília
Junqueira. Ela disse à jornalista Eliane Brum, da revista Época,
ser sócia de um “condomínio” no Pará. Não são bem um
condomínio as terras controladas por seu pai, um fazendeiro da
região de Ribeirão Preto (SP). No Pará, conta Eliane
(provavelmente a melhor repórter do Brasil), o que eles têm é uma
fazenda grilada, em uma área de conservação, com intensa extração
de madeira em seu interior.
Conheci Anna Cecília quando ela era jornalista,
no Estadão. Depois virou atriz. É uma mulher muito bonita,
simpática. Difícil não gostar dela. Indagada por Eliane sobre o
que acontecia no Pará, demonstrou confiança nos relatos familiares.
Mudou imediatamente seu nome no Facebook, para não ser incomodada –
e bola pra frente. Enviei a ela perguntas a ela sobre o caso, em
fevereiro, mas Anna nunca me respondeu.
Eventualmente somos informados dessas faces
ocultas (e não tão belas) de pessoas e empresas, mas não movemos
um músculo para protestar. “Bora para a Gambiarra, dançar até o
sol nascer?” E lá vamos nós. Não houve nenhum movimento de
protesto contra os Junqueira, Anna Cecília ou sua festa para
descolados, tudo segue conforme o antigo script – não importa que
a Amazônia esteja sendo grilada ou despedaçada.
Em Curitiba, no início do mês, um jovem de 18
anos ficou assustado no badalado James Bar e saiu correndo. Ele
descobriu que estava sem dinheiro para pagar toda a conta, de R$ 60.
Foi alcançado por seguranças e espancado. No hospital, teve sua
perna amputada. Os donos do bar insistem que o segurança (de 110 kg)
fez o procedimento correto. A amputação da perna de um brasileiro é
definida como um “acidente”.
Desta vez a passividade não foi absoluta. Protestos
contra o bar motivaram seu fechamento por um dia, nesta quarta-feira.
Mas por um único dia - ele reabriria nesta quinta. Não faltará
quem pague para entrar. E o mesmo vale para dezenas (centenas) de bares e boates
pelo Brasil que têm na truculência de seus seguranças uma de suas
marcas mais bem definidas. Mexer do bolso desses patrões não é
considerado uma estratégia válida.
Poderíamos invocar a famosa cordialidade, como
bem definida por Sergio Buarque de Holanda, para tentar explicar essa
falta de memória do brasileiro. Ou esse déficit de atitude política no
momento do consumo. Mais importante é estar bem com os amigos (que
vão à Gambiarra ou ao James Bar), viajar baratinho pela Gol para o
Nordeste (para curtir a vida), ligar o carrão – eventualmente
construído a partir de carvão da Amazônia e mão-de-obra escrava.
Se alguém fala algo sobre boicotar a Gol é visto
como um extra-terrestre. Uma espécie de ingênuo. Ou então um
“radical”. Boicotar, eu? Não faz parte do nosso vocabulário,
das nossas práticas de povo devidamente oprimido e despolitizado. A
indignação se inverte: em vez de nos rebelarmos contra pilantras,
assassinos, grileiros, torcemos o nariz para o sujeito que propõe o
boicote e o consumo consciente como armas. “Que cara chato”.
Esse tipo de comportamento não representa apenas
indiferença ante as dores dos demais. Do ponto de vista coletivo,
possui um efeito bumerangue: as vítimas somos todos nós. Mesmo
assim ocorre a alienação coletiva. Ela possui sintomas parecidos
com o daquela síndrome por que passam pessoas sequestradas, pela
qual elas desenvolvem dependência e até afeto por seus algozes.
Sim: o brasileiro possui uma indisfarçável e
sórdida Síndrome de Estocolmo.
PS: algumas amigas observam que deixaram de comprar roupas na Zara, após a revelação, no ano passado, de que a marca utilizava mão-de-obra escrava.
NO TWITTER:
PS: algumas amigas observam que deixaram de comprar roupas na Zara, após a revelação, no ano passado, de que a marca utilizava mão-de-obra escrava.
NO TWITTER:
Publicado por
Alceu Castilho, jornalista.
en
09:21
1 comentarios
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no XCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Etiquetas:
#amazonia,
#bmw,
#boicote,
#desmatamento,
#ford,
#gambiarra,
#gm,
#gol,
#greenpeace,
#industriaautomobilistica,
#johndeere,
#mercedes,
#neneconstantino,
#nissan,
#vegasbar
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
Que revista vai falar dos refugiados do Haiti no Acre?
Mais de 800 refugiados haitianos estão ao redor da praça central de Brasiléia, no Acre, e em um hotel da cidade. O Blog da Amazônia, do acreano Altino Machado, está dando o caso com destaque. Luciano Martins Costa, jornalista de São Paulo, assinou com ele, nesta segunda-feira, reportagem feita no município: “Crise humanitária se instala na fronteira do Acre com a Bolívia”.
A invisibilidade da Amazônia é tamanha na grande imprensa que os autores apontam o tema como essencial. Eles contam que a “chamada grande imprensa” compareceu à cidade vizinha de Epitaciolândia, onde os primeiros grupos de refugiados foram alojados (em 2010, antes de irem para Brasiléia) no ginásio de esportes. “Mas a curiosidade jornalística foi se esvaindo conforme a situação se agravava”, relatam.
Eles dizem que a possibilidade de um colapso, “com a eclosão de uma crise humanitária de graves proporções”, aumenta a cada dia. Antes de chegarem ao Brasil, os haitianos passaram por República Dominicana, Panamá, Equador, Peru e Bolívia – e só no Acre tiveram uma acolhida. Entre os 800 refugiados,300 estão em hotel com capacidade para 80 pessoas.
“Uma ação da Organização dos Estados Americanos, sempre bem relacionada com a Sociedade Interamericana de Imprensa, poderia inibir o tratamento criminoso que os migrantes recebem de autoridades corruptas na Bolívia”, escrevem os dois jornalistas. “Uma reportagem numa revista de circulação nacional poderia sensibilizar os organismos multilaterais para aliviar o sofrimento dos refugiados”.
SENADOR COBRA GOVERNO FEDERAL
O senador Anibal Diniz (PT-AC) pronunciou-se ontem sobre o caso no plenário do Senado. Ele leu, na íntegra, a reportagem de Costa e Machado. Diniz cobrou o governo federal:
- Infelizmente, até o momento, o governo federal não se manifestou a respeito. Só o governo do Acre tem feito esforços no sentido de garantir alimentação e hospedagem para esses haitianos todos os dias, mas os recursos são finitos.
Segundo o blog do Altino Machado, o senador cobrou posicionamento do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Defesa, do Ministério da Justiça, da Secretaria de Relações Institucionais do Governo e da Secretaria de Direitos Humanos.
- Esperamos que haja, urgentemente, uma reunião interministerial para tratar desse problema, porque, verdadeiramente, até agora, o governo federal não se manifestou a respeito. É como se o problema não estivesse acontecendo.
REPERCUSSÃO
O jornal britânico The Guardian repercutiu nesta terça-feira a história dos refugiados, na reportagem "Brazil warns of humanitarian crisis as Haitians arrive in their thousands".
Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Mais de 800 refugiados haitianos estão ao redor da praça central de Brasiléia, no Acre, e em um hotel da cidade. O Blog da Amazônia, do acreano Altino Machado, está dando o caso com destaque. Luciano Martins Costa, jornalista de São Paulo, assinou com ele, nesta segunda-feira, reportagem feita no município: “Crise humanitária se instala na fronteira do Acre com a Bolívia”.
A invisibilidade da Amazônia é tamanha na grande imprensa que os autores apontam o tema como essencial. Eles contam que a “chamada grande imprensa” compareceu à cidade vizinha de Epitaciolândia, onde os primeiros grupos de refugiados foram alojados (em 2010, antes de irem para Brasiléia) no ginásio de esportes. “Mas a curiosidade jornalística foi se esvaindo conforme a situação se agravava”, relatam.
Eles dizem que a possibilidade de um colapso, “com a eclosão de uma crise humanitária de graves proporções”, aumenta a cada dia. Antes de chegarem ao Brasil, os haitianos passaram por República Dominicana, Panamá, Equador, Peru e Bolívia – e só no Acre tiveram uma acolhida. Entre os 800 refugiados,300 estão em hotel com capacidade para 80 pessoas.
“Uma ação da Organização dos Estados Americanos, sempre bem relacionada com a Sociedade Interamericana de Imprensa, poderia inibir o tratamento criminoso que os migrantes recebem de autoridades corruptas na Bolívia”, escrevem os dois jornalistas. “Uma reportagem numa revista de circulação nacional poderia sensibilizar os organismos multilaterais para aliviar o sofrimento dos refugiados”.
SENADOR COBRA GOVERNO FEDERAL
O senador Anibal Diniz (PT-AC) pronunciou-se ontem sobre o caso no plenário do Senado. Ele leu, na íntegra, a reportagem de Costa e Machado. Diniz cobrou o governo federal:
- Infelizmente, até o momento, o governo federal não se manifestou a respeito. Só o governo do Acre tem feito esforços no sentido de garantir alimentação e hospedagem para esses haitianos todos os dias, mas os recursos são finitos.
Segundo o blog do Altino Machado, o senador cobrou posicionamento do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério da Defesa, do Ministério da Justiça, da Secretaria de Relações Institucionais do Governo e da Secretaria de Direitos Humanos.
- Esperamos que haja, urgentemente, uma reunião interministerial para tratar desse problema, porque, verdadeiramente, até agora, o governo federal não se manifestou a respeito. É como se o problema não estivesse acontecendo.
REPERCUSSÃO
O jornal britânico The Guardian repercutiu nesta terça-feira a história dos refugiados, na reportagem "Brazil warns of humanitarian crisis as Haitians arrive in their thousands".
Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
NO TWITTER:
NO FACEBOOK:
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
A batalha (virtual) de Belo Monte – parte IV
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Adio o último post da série (uma tentativa de conclusão) para notícias extraordinárias. É que o tema Belo Monte tornou-se, nos últimos dias, onipresente na internet. É uma espécie de “jornal instantâneo”, paralelo aos demais fatos – e praticamente concorrendo com as notícias do Código Florestal, em temperatura alta. Virou quase um trabalho de Sísifo tentar dar conta do que está sendo divulgado nas redes sociais.
A notícia mais interessante, nesta quarta-feira, foi a divulgação do vídeo feito por jovens da Amazônia contrários à usina. É uma resposta ao vídeo feito pelos estudantes de Engenharia da Unicamp, “Tempestade em Copo D’Água” – que, por sua vez, rebatia aquele feito pelos atores globais (como vimos na parte II da série).
De fato. É que, em todos os relatos que citei até agora, tratavam-se de pessoas de fora daquela região. Claro, o conceito de “região” estará sempre em disputa na Geografia, e Belém ainda não é Altamira, mas só a diversidade étnica (negros e indígenas, além de brancos) protagonizarem o vídeo já justificaria sua elaboração. É o mundo dos “igarapés”, e não dos “rios” - um abismo em relação à cultura do Sul Maravilha.
Não que o apoio dos ativistas do Sul não seja bem-vindo. A articulação para se viabilizar o filme “Belo Monte – Anúncio de uma Guerra”, como vimos na parte IV, ilustra perfeitamente as possibilidades (internacionais) de divulgação do que está acontecendo no Pará.
É o Pará o Estado da matança de camponeses. Do trabalho escravo. Do desmatamento. Do gado substituindo a floresta em São Félix do Xingu. É ao Pará (Estado que pode em breve ser dividido em três) que o “jornal instantâneo de Belo Monte” deve voltar suas atenções, neste instante.
Até por um motivo muito simples: como o jornalista e blogueiro Altino Machado insiste em seu blog (hoje pendurado no portal Terra), a grande mídia não mantém correspondentes na Amazônia. À exceção de Altino (em Rio Branco) e de Lúcio Flávio Pinto (em Belém), são poucas as vozes locais capazes de reverberar o que dizem as populações locais – e olhem que Altino faz questão de dizer que entende de Acre, não de Amazônia...
O Brasil não é coberto pela grande imprensa. A velha piada de que “o Acre não existe” poderia valer para a Amazônia inteira - se pensarmos em termos midiáticos. Aquela paranoia em relação à retirada da Amazônia do mapa do Brasil pelos americanos ilustra à perfeição o que acontece: esse seria o mapa do País conforme visto pelos seus principais meios de comunicação – sem a Amazônia.
Por isso comemoramos o chute certeiro dos estudantes de Belém. Não porque o vídeo traga grandes novidades, ou tenha altíssimo nível técnico - é até mais discursivo que informativo. Mas por ampliar o leque de vozes; por lembrar mais visivelmente que Altamira existe, Belo Monte existe, os povos da Amazônia existem e gritam que não querem a usina. E a opinião pública quer saber disso, sim – à revelia do olhar imposto por quem detém o poder.
***
E a velocidade está mesmo altíssima em relação a Belo Monte na internet. Ainda ontem começou a ser divulgado outro vídeo em resposta aos engenheiros da Unicamp, chamado “O Belo Monstro e o Belo Castelo”, feito por Gabriel de Barcelos. É muito bem feito. Dá voz às comunidades e lembra que pelo menos um ativista contra a usina – Ademir Federicci, o Dema – foi assassinado, em 2001. Vale reservar 15 minutos para vê-lo:
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Adio o último post da série (uma tentativa de conclusão) para notícias extraordinárias. É que o tema Belo Monte tornou-se, nos últimos dias, onipresente na internet. É uma espécie de “jornal instantâneo”, paralelo aos demais fatos – e praticamente concorrendo com as notícias do Código Florestal, em temperatura alta. Virou quase um trabalho de Sísifo tentar dar conta do que está sendo divulgado nas redes sociais.
A notícia mais interessante, nesta quarta-feira, foi a divulgação do vídeo feito por jovens da Amazônia contrários à usina. É uma resposta ao vídeo feito pelos estudantes de Engenharia da Unicamp, “Tempestade em Copo D’Água” – que, por sua vez, rebatia aquele feito pelos atores globais (como vimos na parte II da série).
O que há de tão especial na realização desse vídeo? No
Twitter, a jornalista @verenaglass comemorou: “Grandioso!”. Outras reações
foram vibrantes, superlativas. Como se todos os contrários à usina tivessemos
feito um gol.
De fato. É que, em todos os relatos que citei até agora, tratavam-se de pessoas de fora daquela região. Claro, o conceito de “região” estará sempre em disputa na Geografia, e Belém ainda não é Altamira, mas só a diversidade étnica (negros e indígenas, além de brancos) protagonizarem o vídeo já justificaria sua elaboração. É o mundo dos “igarapés”, e não dos “rios” - um abismo em relação à cultura do Sul Maravilha.
Não que o apoio dos ativistas do Sul não seja bem-vindo. A articulação para se viabilizar o filme “Belo Monte – Anúncio de uma Guerra”, como vimos na parte IV, ilustra perfeitamente as possibilidades (internacionais) de divulgação do que está acontecendo no Pará.
É o Pará o Estado da matança de camponeses. Do trabalho escravo. Do desmatamento. Do gado substituindo a floresta em São Félix do Xingu. É ao Pará (Estado que pode em breve ser dividido em três) que o “jornal instantâneo de Belo Monte” deve voltar suas atenções, neste instante.
Até por um motivo muito simples: como o jornalista e blogueiro Altino Machado insiste em seu blog (hoje pendurado no portal Terra), a grande mídia não mantém correspondentes na Amazônia. À exceção de Altino (em Rio Branco) e de Lúcio Flávio Pinto (em Belém), são poucas as vozes locais capazes de reverberar o que dizem as populações locais – e olhem que Altino faz questão de dizer que entende de Acre, não de Amazônia...
O Brasil não é coberto pela grande imprensa. A velha piada de que “o Acre não existe” poderia valer para a Amazônia inteira - se pensarmos em termos midiáticos. Aquela paranoia em relação à retirada da Amazônia do mapa do Brasil pelos americanos ilustra à perfeição o que acontece: esse seria o mapa do País conforme visto pelos seus principais meios de comunicação – sem a Amazônia.
Por isso comemoramos o chute certeiro dos estudantes de Belém. Não porque o vídeo traga grandes novidades, ou tenha altíssimo nível técnico - é até mais discursivo que informativo. Mas por ampliar o leque de vozes; por lembrar mais visivelmente que Altamira existe, Belo Monte existe, os povos da Amazônia existem e gritam que não querem a usina. E a opinião pública quer saber disso, sim – à revelia do olhar imposto por quem detém o poder.
***
E a velocidade está mesmo altíssima em relação a Belo Monte na internet. Ainda ontem começou a ser divulgado outro vídeo em resposta aos engenheiros da Unicamp, chamado “O Belo Monstro e o Belo Castelo”, feito por Gabriel de Barcelos. É muito bem feito. Dá voz às comunidades e lembra que pelo menos um ativista contra a usina – Ademir Federicci, o Dema – foi assassinado, em 2001. Vale reservar 15 minutos para vê-lo:
LEIA MAIS:
Assinar:
Postagens (Atom)