sábado, 14 de janeiro de 2012

“Milagre em Milão”: fábula de Vittorio De Sica sobre desocupação de sem-teto segue atual

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Em tempos de iminente desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), um filme do italiano Vittorio de Sica ajuda a pensar – 60 anos depois - em alguns aspectos de uma reintegração de posse. E da oposição entre a classe trabalhadora (os sem-teto) e a burguesia. Quem vence essa disputa?

Economicamente não há final feliz: no final de “Milagre em Milão” (1951) o terreno é revertido para o proprietário. Mas os comunistas De Sica e Zavattini (o roteirista principal) não viam o mundo apenas com lentes econômicas. O que eles sugerem ali, além de uma utopia, é uma caracterização da burguesia a partir do ridículo.

- Quem são eles? – pergunta  o novo dono do terreno, senhor Mobbi.
- Pobres – responde o antigo dono.
- O que fazem?


O filme quase se chamou “Os pobres atrapalham”. Mas foi vetado - os italianos estavam preocupados com a imagem do país no exterior. O filme é baseado no livro “Totó, o Bom”, do próprio Cesare Zavattini.


A desumanidade do dono do terreno, o senhor Mobbi, está diretamente associada a sequências patéticas. Do outro lado, em clima surreal, Totó e sua turma desconstroem as ações policiais com humor e dignidade – os jatos d’água, as bombas de fumaça, as ordens. Nada ali pode afetar a dignidade dos sem-teto.

Não se trata apenas de uma resistência por meio de porretes e barricadas – que, em determinado momento, também acontecem. Vittorio de Sica busca na poesia – e na união dos trabalhadores – a possibilidade de superação daquela violência.

Em meio à fleuma dos sem-teto, são os patrões e seus mandantes que se sentem acuados. “Essa gente não merece piedade”, diz Mobbi, titubeante. “Todos sentimos frio, somos todos iguais”, afirma, em outro momento, obviamente sem convencer. “Todos temos cinco dedos nas mãos”.

Quem quiser pensar no cinema de Vittorio de Sica deve abandonar os estereótipos sobre realismo. Ou melhor, abandonar mesmo a idéia de que seus filmes sejam propriamente realistas. Sim, “Ladrões de Bicicleta” (1948) é um dos clássicos do movimento que se chamou neorealismo – e mudou o cinema e o mundo, no pós-guerra.

Ao lado do roteirista Cesare Zavattini, De Sica criou obras de profundo romantismo. Ainda que com atores amadores e locações na própria cidade, características do neorealismo. O homem que estava por trás desses atores e cenários era um homem romântico.

Em uma das cenas de “Milagre em Milão” os sem-teto, com frio, buscam um lugar ao sol no terreno ocupado, ao lado de uma ferrovia. Mas literalmente um lugar ao sol. Logo me veio a lembrança de um vídeo gravado em apoio à Ocupação Pinheirinho, onde um militante lê uma poesia de cordel:


Esse cordel remete a Glauber Rocha, à disputa de classes nos sertões. A “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Em meio à possibilidade de massacre, trata-se também de uma estética que está sendo proposta por De Sica (e por Glauber) – ou contraproposta à dominação linear, cinzenta. O céu se destaca ao fundo.


É para o céu que Totó e os demais sem-teto rumam no fim do filme – na sequência que inspirou Steven Spielberg a fazer a famosa cena de “E.T.”

Trata-se, assumidamente, de uma proposta de fuga, de um contraponto que não seja apenas um confronto físico, contra os tanques e escavadeiras. Mas um confronto de visões de mundo. Vale assinalar que o filme, na época, não agradou nem os comunistas durões nem os conservadores.

Nas nuvens, sobrevoando Milão, os sem-teto estão felizes. Sabem que venceram a batalha pela dignidade. O letreiro do fim do filme repropõe a esperança:

- Em direção a um sonho onde “bom dia” queira dizer verdadeiramente “bom dia”.



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