domingo, 8 de janeiro de 2012

Grandes Patifes da Literatura (III) -
Paulo Honório


por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Depois de dois personagens da literatura argentina (Fernando Vidal Olmos e Juan Pablo Castel, ambos de Ernesto Sabato), inauguro com Paulo Honório a literatura brasileira nesta série sobre patifes.

Assim como Olmos e Castel, o protagonista de “São Bernardo” (1934) narra sua paranoia em primeira pessoa. Como Castel, o pintor de “O Túnel” (1948), mergulha nos ciúmes. “Boa em demasia”, Madalena é uma das mulheres mais humilhadas da literatura brasileira. (Como tal, parece ironia ela ser uma professora.)

Uma diferença em relação a Sabato é que as ficções de Graciliano Ramos têm um lado político mais acentuado - em meio ao mesmo existencialismo. Paulo Honório representa os proprietários de terra – e também o capital. Para ele Casimiro Lopes (o jagunço) é uma propriedade, Madalena é uma propriedade. Todos são extensões das terras de São Bernardo - obtidas de Padilha "sem remorsos".

Em artigo para a Revista Universitária do Audiovisual, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Henrique Dias Soares de Barros aplica especificamente a Paulo Honório o conceito de "homem subterrâneo", desenvolvido pelo crítico Antonio Cândido em relação à obra de Graciliano como um todo. O nome vem da obra (existencialista) de Dostoievski, também conhecida como "Homem do Subsolo".

Graciliano era leitor de Dostoievski. Cândido identifica nesses "homens subterrâneos" um conflito entre um ser social, "ligado à necessidade de ajustar-se a certas normas convencionais para sobreviver", e um ser profundo, "revoltado contra elas, inadaptado, vendo a marca da contingência e fragilidade em tudo e em si mesmo".

Reproduzo abaixo o capítulo dezenove: um momento especial (poético e de grande profundeza psicológica) dentro de uma das obras-chave de nossa literatura. Aqui Paulo Honório ganha contornos humanos – mas em meio ao delírio. “Encolerizo-me e enterneço-me”, diz ele.

Não se pode perder de vista a condição de patrão de Paulo Honório. Nem ele mesmo a perde, como neste trecho sobre Mestre Caetano: "Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar".

Paulo, Fernando e Juan bem poderiam também estar numa coletânea sobre literatura e saúde mental. “Não quero luz”, diz ele a Maria das Dores. A descrição de Paulo Honório de suas violências - como no caso dos dois argentinos – se desenrola em sua alma "agreste" em meio a um profundo tormento:

SÃO BERNARDO, CAPÍTULO DEZENOVE

Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.

E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.

Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.

Emoções indefiníveis me agitam - inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.

Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.

Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.

- Casimiro! Casimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao pé da janela, vigiando.

- Casimiro! A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador. Detenho-a: não quero luz.

O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. Digo baixinho: - Madalena! A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos. Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.

- Madalena...

A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a Mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranquila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra Mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião! A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.

Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se de manso, os passos de Seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo.

Agora Seu Ribeiro está conversando com Dona Glória no salão. Esqueço que eles me deixaram e que esta casa está quase deserta.

- Casimiro! Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com o chapéu de couro de sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota.

Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar.

Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito.

Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências. Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estábulo.

O salão fica longe: para irmos lá temos de atravessar um corredor comprido. Apesar disso a palestra de Seu Ribeiro e Dona Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras.
Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha? Se eu convencesse Madalena de que ela não tem razão ... Se lhe explicasse que é necessário vivermos em paz...
Não me entende. Não nos entendemos.

O que vai acontecer será muito diferente do que esperamos. Absurdo.

Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem. Quanto às corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e acabou com elas a pau. E foram tapados os buracos de grilos.

Repito que tudo isso continua a azucrinar-me. O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.

LEIA MAIS:
Grandes Patifes da Literatura (I) – Fernando Vidal Olmos
Grandes Patifes da Literatura (II) – Juan Pablo Castel

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2 comentários:

Havvah disse...

O incrível é que sempre existe uma justificativa,para personagens ou para as pessoas,do porque de tal comportamento doentio.

Thiago Quintella de Mattos disse...

Estou indo agora ler o sobre o Juan Pablo Castel! Adoro El Tunel, estudamos muito esta obra nas aulas do Mestrado em Ciência Política.