A
expressão “barbárie cultural” está em um texto na parede da
Casa do Núcleo, um espaço alternativo (local de shows e cursos, sede de uma
gravadora e produtora) localizado no bairro de Alto de Pinheiros, em
São Paulo. Refere-se à perda irreparável que é ignorarmos culturas de
outros países e povos, diante do massacre ao qual somos diariamente
submetidos pela indústria do entretenimento – com viés, claro,
estadunidense e europeu.
Lembrei-me
da “barbárie cultural” ao ver vídeos com músicas de Wakay, um
índio Funi-ô alagoano radicado em Salvador. Ele canta em yathe, seu
idioma materno, e em português. A apresentação de seu trabalho
fala de ritmos marcados pelos pés (como nas danças indígenas) e da
presença de sons de pássaros e água corrente. Considera-se na
missão de espalhar as tradições dos primeiros habitantes das
terras brasileiras.
Pode-se
até não gostar das músicas. Ou do autor. Mas é preciso reconhecer
que faz circular um conjunto diferente de imagens, de conceitos, de
olhares, em relação ao que estamos acostumados. Só a divulgação
do texto em idioma indígena já valeria a experiência. O Brasil tem
hoje cerca de 180 idiomas, além do português. Eles representam
séculos de tradição, de riqueza cultural. Mas muitos estão em
extinção. Os demais seguem desconhecidos, enquanto aprendemos
inglês, espanhol e alemão.
O
cientista social Emir Sader escreveu este mês um texto sobre a Flip,
a Feira Literária Internacional de Paraty, que vai ao encontro dessa
ideia de barbárie cultural. Está no blog da Boitempo Editorial. Ele
critica a elitização do evento, que, para ele, tanto poderia ser
realizado em Ibiza, em Cannes ou no Havaí: “Parece
que se joga justamente com o exclusivismo, com o gasto enorme que se
pode fazer, para dizer: 'Eu estive na Flip, em Paraty'.”
Sader
menciona uma ausência específica na Flip: a de representantes da literatura e do ensaísmo
latino-americanos, que tiveram “pouca ou nenhuma presença” no
evento, no início de julho. De fato, basta passar os olhos na
relação dos debatedores para observar a ausência dos vizinhos. E
olhem que se trata de uma das literaturas mais ricas do planeta.
Não
por coincidência, o criador do Núcleo Contemporâneo, onde fica a
Casa do Núcleo, investe na coleta de CDs e informações sobre
música da América Latina. É o músico Benjamin Taubkin, membro do
Fórum Europeu de Música do Mundo. Ele considera a música desse
continente (por conta da diversidade de estilos e culturas) uma das
mais inspiradoras e vivas do planeta.
A
cultura dos povos indígenas está para a cultura brasileira assim
como a cultura produzida na América Latina: distante, desconhecida.
Lutar contra a barbárie, no Brasil, significa lutar contra o
desconhecimento monumental relativo às mais de 200 nações indígenas
distribuídas por nosso território. E implica disposição para
conhecer mais seus idiomas, suas danças, sua musicalidade.
Os
indígenas estão se movimentando, a duras penas. Temos neste texto
apenas um exemplo, com Wakay. Mas o vídeo tem pouquíssimos acessos
no YouTube. Outros estão fazendo ou aprendendo a fazer filmes – um
cinema com outro olhar, outra luz, que ainda não chega em nossos
aparelhos hollywoodianos.
Entre
os brancos ditos civilizados (inclusive os que se consideram
ilustradíssimos), a barbárie cultural é uma doença contagiosa, uma praga que nos confina em pontos cada vez mais isolados de nosso território possível.
O repórter Clayton
Conservani, do Fantástico, obteve uma especialização “radical”.
Ele sai pelo mundo "desafiando" a natureza. No domingo o
programa dedicou mais de meia hora à sua suposta façanha de correr
por centenas de quilômetros no Saara. Ele chegou a chamar de “herói”
um colega que, como ele, conseguiu atingir o objetivo.
A mensagem embutida é
que cabe ao homem superar as dificuldades "da natureza". Há
que se seguir em frente, apesar dos pés em carne viva. É preciso se
sacrificar no Saara “em nome da filha”, do outro lado do oceano,
porque ele “treinou” e é um marido sensível e dedicado.
O mesmo programa falava
(em poucos segundos) de mais de cem mortos por inundação na Rússia.
O programa poderia ter informado que nem sempre se pode desafiar a
natureza. Mas foi tudo muito rapidinho, pois era preciso falar das
peripécias do repórter no Saara. Ficamos sabendo que o governo
russo abriu uma investigação. E só.
Na Baía de Guanabara,
pescadores brasileiros estão sendo mortos apenas por insistirem em ir
ao mar. Para trabalhar. Estão contrariando interesses econômicos. Nada de
recompensa por desafiarem a natureza numa atividade ancestral. Dois
deles foram amarrados ao barco, no fim de junho. Morreram afogados. Nos três últimos anos mais dois
foram assassinados. Outros, ameaçados.
Por que a Globo não
manda Conservani pescar na Guanabara? E por que a emissora não
reserva alguns minutos para defender a vida de pescadores?
O presidente da
Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar), Alexandre
Anderson, fez um depoimento emocionado, no fim de junho. Por conta
dos amigos mortos, e das ameaças que o motivam a desistir de ir ao
mar. Ele também falou dos filhos – e dos filhos de colegas
ameaçados. Em nome dos filhos (e da vida), pensa que já não
poderá mais pescar em seu território. Quer desistir.
A mesma televisão que,
com câmeras indiscretas, invade o rosto de celebridades para mostrar
suas lágrimas (por qualquer apelo emocional barato) não mostra o depoimento emocionado de Anderson, em fala na OAB do Rio.
O depoimento tem larga importância econômica. Cultural. Política.
Literária. Social. É um documento que valoriza o ser humano, em
meio à adversidade. É um depoimento fantástico.
No entanto, os
telespectadores são obrigados a assistir ao pé de Clayton
Conservani em carne viva. Condoem-se de suas dificuldades no deserto,
compartilham de sua necessidade de “superação”.
E os mortos na
Guanabara? Não treinaram o suficiente? Não são “heróis”? E o
adolescente de 15 anos que foi morto há alguns dias, também no Rio,
morto e empalado, com os olhos arrancados, apenas por ser homossexual, ele não estava apto a
enfrentar “a natureza”? Quantos segundos esse ser humano recebeu
de nossa atenção?
Estamos em julho. Não
é época de inundação no Brasil. E sim na Rússia. Em janeiro os
jornais falarão burocraticamente dos “desastres” causados pela
chuva – e não pela ocupação irresponsável dos solos urbanos.
Não seremos informados que, por motivos econômicos, pela imposição
do sistema, milhões de seres humanos são obrigados a morar
precariamente em encostas, em locais de risco.
Mas, vejam só, lá vem a
perigosíssima tempestade de areia no Saara. Clayton Conservani vai enfrentá-la e
nos redimir dos pecados.
Tem de ser
visto. E divulgado. O depoimento do pescador Alexandre Anderson, em
ato na OAB no fim de junho, tem um valor histórico que ainda não
foi percebido pela sociedade brasileira – nem mesmo por seus
resquícios de esquerda.
Se Ernest
Hemingway consagrou a história de “O Velho e o Mar”, temos na
matança de pescadores na Baía de Guanabara a síntese – literária
e histórica – de um país violento.
Em pleno
Rio de Janeiro, jovens pescadores como Almir e João estão sendo
sistematicamente mortos por lutarem por seus direitos. “Nós só
queremos ficar no mar”, diz Anderson no vídeo. Chorando. “Por
que nos perseguem?”
O
depoimento resume uma história de espoliações. E de assassinatos.
De um país ainda majoritariamente litorâneo – e que faz vistas
grossas para os 500 anos de pilhagem. De pirataria. Sintetiza ainda o
grito possível dos excluídos – entre lágrimas.
Anderson
representa a Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar). Aqui
ele fala emocionado sobre o assassinato dos companheiros Almir
Nogueira do Amorim (40 anos) e João Luiz Telles Penetra (45 anos), o
Pituca. Diz que sabe quem são os mandantes – e que eles também
estão dentro do governo estadual, do governo municipal.
A fala do
pescador foi feita apenas seis dias após os homicídios, no dia 23
de junho – enquanto o mundo olhava para a Rio+20. Dias antes, no
dia 18, Almir e Pituca estavam em uma mesa na Cúpula dos Povos.
Enquanto a ministra do Meio Ambiente atacava não empresários ou
latifundiários, mas ambientalistas.
Seguem o vídeo, divulgado pela Anistia Internacional (que move uma ação urgente em defesa dos pescadores), e a transcrição,
feita pelo blog:
“Vocês
são homens do mar, então vão morrer no mar”
“Quando
a gente enterra um companheiro vai um pedaço de nós ali dentro. A
gente está enterrando gente, nossa alma está ali dentro também.
Até a nossa alma de luta nos tiram. Falei outro dia num discurso:
'Podem acabar com nossa vida, mas nossa alma de luta não. E estão
levando nossa alma de luta sim, gente'.
O mais
triste disso tudo é você ver os companheiros mortos. O mais triste
disso tudo é que ninguém faz nada. Só vocês. Mas parece que é
muito pouco. Parece que quem deveria fazer, sabendo que deveria
fazer, não faz.
Nós
sepultamos o Almirzinho. Eu vi todo aquele caixão lacrado, pesado de
água. Não um pescador, não um de nós ali dentro. Eu vi o nosso
sonho ali dentro, junto. Eu vi nossa luta dentro de um Pituca, em
Paquetá. Ele foi enterrado com uma foto segurando um peixe, gente.
Jesus buscou um pescador para acompanhá-lo.
Por que
nos perseguem? Nós só queremos ficar no mar.
Nós
sabemos que foi um aviso. Nós temos certeza que foi um aviso. Hoje a
Baía de Guanabara está em luto. Os Homens do Mar estão em luto.
Uma coisa que eu não vi, desde que fundamos os Homens do Mar:
estamos com medo. Não vimos isso, nem com a morte do Paulo [Santos
Souza, em 2009], nem com o assassinato do Márcio [Amaro, em 2010].
Hoje temos
medo. Medo porque estamos sendo mortos, amarrados no próprio barco.
Medo porque eles foram mortos, respirando a água do seu próprio
mar. Dando um sinal: 'Vocês são homens do mar? Então vão morrer
no mar!”. Eles fizeram isso com o Paulo? Não, mataram na frente da
família. Fizeram com o Márcio? Mataram na frente da família.
Agora não: 'Vocês são homens do mar, vão morrer no mar”, esse é
o recado que estamos recebendo. 'Continua, que vocês vão todos ser
mortos'.
Eu não
sei o papel daqui pra frente. Meus companheiros estão calados. A
Baía de Guanabara está calada. Os barcos não saíram pro mar,
desde segunda-feira. Os barcos estão na areia da praia. A tristeza
está nos nossos olhos. Na nossa família. E a gente olha pra um
lado, olha pro outro, e (…) não é como antigamente.
Não foi
uma morte, gente. Isso é uma crueldade. Eles amarraram nosso
companheiro, deixaram ele se afogar lentamente. Até as 11 da manhã
de domingo achamos que estavam desaparecidos. Toda uma comunidade,
ninguém imaginou que eles seriam assassinados.
Eles
estavam justamente no caminho daquele maldito pier do Comperj [o
maior complexo petroquímico do Rio]. Eles foram mortos na água que drena o [Rio] Guaxindiba, que é alvo da nossa luta, de preservar
aquele meio ambiente. Nós fazemos parte do meio ambiente. Quando eu
falei que nós, pescadores, somos parte da Baía de Guanabara, isso é
verdade, mas a gente não quer morrer respirando a água da Baía de
Guanabara.
Está
muito triste pra gente. Muito triste. Eu não estou mais dormindo. Eu
disse esta semana em reunião na Ahomar que, se tiver de morrer mais
alguém, que morra eu, que seja um bom preço. Vão acabar com a
Ahomar, gente, vão acabar com o grupo. Éramos onze, nós somos
oito. Somos oito, estão matando o grupo da Ahomar, estão nos
matando.
Eu não
quero acreditar que seja uma coisa particular. Eu queria acreditar
que fosse alguma coisa individual, um problema individual. Mas não
está indo para esse lado. Eu vi lágrima nos olhos do curraleiro [há
rivalidade entre pescadores artesanais e curraleiros], quando eu
perguntei ontem: 'Vocês viram alguma coisa?'. 'Alexandre, nós não
matamos o companheiro, Alexandre”. Eu falei: 'Eu sei disso'. 'Estão
botando a culpa na gente, esses malditos desses jornais. Única coisa
que a gente viu foi aquele navio maldito, que passa sem nome, sem
placa, sem identidade, quase afundando nossos barcos' .
Eu peço
que as autoridades investiguem. E investiguem muito. Isso serviu
de recado para alguém. Já recebemos o recado. A gente não vai mais
para o mar, não. Eles conseguiram o que queriam, nos tiraram da
água. Tiraram os homens do mar da sua casa.
Há alguns
anos atrás nós falávamos, eu mesmo usei o mar para proteção.
Quando dava alguma coisa de ruim na nossa praia a gente corria pro
mar. Hoje a gente tem como correr pro mar, onde a gente vai correr?
Hoje só tem o caminho do cemitério pra gente.
Peço às
autoridades deste país que investiguem a morte do Pituca e do
Almirzinho. Que investiguem a morte de Paulo, que investiguem a morte
de Márcio. Vão encontrar que tudo tem uma grande relação. Desde
que nós começamos a fazer a parte da campanha contra o uso
industrial do Guaxindiba começamos a receber muita ameaça. Nesse
mesmo momento o DPO [Destacamento de Policiamento Ostensivo] da
Praia de Mauá fechou, 35 mil pessoas ficaram sem policiamento. O
único DPO da Praia de Mauá. Nesse mesmo momento começamos a ser
perseguidos.
Numa
dessas perseguições a viatura que estava comigo, perseguida, atirou
contra os malfeitores que vinham, não identificados. Nessa mesma
época os diretores começaram a falar que estavam sendo visitados
por homens armados.
Nós
sabemos quem são. Sabemos de onde está vindo. São pessoas que
ganham muito dinheiro com todo esse processo de industrialização da
Baía de Guanabara. São pessoas que trabalham na segurança,
fornecendo água, transporte aquaviário, transporte terrestre para
esses empreendimentos. São pessoas que estão dentro do governo do
estado. São pessoas que estão dentro do governo municipal. São
pessoas que estão dentro da segurança pública local.
Nós
estamos alertando. 'Vai morrer mais gente, está muito difícil'. Eu
aviso ao programa [aponta para alguém], está muito difícil.
Apareceu um barco, tem dois meses, todo perfurado de balas. O
pescador ficou quatro dias na porta da delegacia local e não
conseguiu fazer um R.O. [Registro de Ocorrência] No final o cara
falou: 'Vou te prender. Vai embora daqui'. Ficou um bicho. O barco
está lá todo perfurado.
Nós temos
histórico de barcos todos perfurados de bala, à noite. Nós
escutamos estampidos de tiros. Antigamente a gente escutava barulho à
noite, sabe do quê? Da última barca de Paquetá, quando ia para o
Rio de Janeiro. Hoje a gente escuta estampido de tiro de fuzil, de
pistola.
O pescador
está sendo expulso. Agora vem o jornal e diz que não tem relação,
que o pescador é que está matando pescador. Onde, gente? Falaram
isso do Paulo, no começo: 'É conflito de pesca'. Daqui a pouco vão
botar a culpa neles, que eles é que se amarraram e se suicidaram.
Cada um amarrou o outro.
Eu
estive com os curraleiros de Magé, curraleiro que tinha mais
dinheiro está com a casa trincada. O que conseguiu ganhar algum
dinheiro o cara tem um Chevette 94. Eles estão chorando, chorando de
indignação. Eu estive com o pessoal de Paquetá, eles não querem
nem falar. Pessoal só faz assim, aponta na direção dos terminais,
aqueles malditos terminais. Aponta na direção da Ahomar.
Essa luta
deu muita morte gente, vamos parar. Nessa luta não estamos lutando
com o Golias, não. Estamos lutando com o próprio capeta, meu irmão.
Não estão lutando com Golias. Golias, Davi ganhou. A gente não
ganha mais essa luta não.
Estou
muito triste. Estou achando que vou largar tudo. Não quero mais ver
companheiros mortos. Não quero enterrar mais ninguém dos Homens do
Mar. Não quero. Vou fazer um trato. Se isso não der um
encaminhamento, eu vou largar a luta, vou largar o grupo. Estou
cansado de enterrar, estou cansado de avisar: 'Estão matando, gente.
Estão perseguindo, estão na minha porta'. Estou cansado de ver meu
muro cheio de buraco de bala, estou cansado de ver barco de pescador
cheio de buraco de bala, estou cansado de ver mulher de pescador
dizer: 'Meu filho, você vai morrer'.
Eu não
posso ver mais meus filhos. Os companheiros que estão do meu lado
não estão mais aguentando também. Será que neste país aqui a
gente está vivendo um estado democrático, gente? Isso é pior que a
ditadura. Está aqui do lado. Está tudo acontecendo aqui do lado.
Não tem
jeito. Eu não ia falar sobre isso. Mas não estou conseguindo. Quem
matou Paulo, quem matou Márcio, quem matou o João, que é o Pituca,
quem matou o Almirzinho, eu queria dar o recado: 'Para. Para que a
gente vai embora'.” (Alexandre Anderson, presidente da Associação de Homens e Mulheres do Mar)
A foto de J. Duran Machfee mostra um cachorro fazendo xixi em uma foto gigante do
prefeito Gilberto Kassab, em pleno Minhocão, em si um símbolo da
degradação paulistana. Por que ela não representa a realidade?
Sim, o cachorro lá
esteve, no insinuante Elevado Costa e Silva, e por ali batizou o cartaz com a
imagem do prefeito. A foto está sendo reproduzida com júbilo nas
redes sociais. Todos comemoram o gesto involuntário do cão como um
grande feito.
E, no entanto, o
prefeito dorme diariamente o sono tranquilo dos injustos. O
higienista Kassab, um prefeito que já chamou (aos berros) um cidadão
de “vagabundo”, não enfrenta reação popular. De gênero nenhum
– nem violenta, nem humorística, nem desorganizada. A indignação
não se manifesta.
Ou seja: essa imagem da
agência Futura Press esconde uma passividade geral. Está varrendo a
política municipal de exclusões sistemáticas para debaixo do
tapete. Quando vemos a foto, rimos o nosso riso distante e achamos
(não racionalmente, mas achamos) que algo está sendo feito contra
esse político retrógrado, autoritário, esse soldado das elites. Como diria René Magritte*, "isto não é um protesto".
(*O pintor surrealista belga questionou a fronteira entre realidade e representação ao pintar um cachimbo e legendá-lo: "Isto não é um cachimbo".)
Uma das decisões
recentes dessa triste prefeitura foi a de proibir a distribuição de
sopa no centro da cidade. Antes tinha, agora não tem. Alguém teve uma ideia genial: fazer, nesta
quinta-feira, um sopão em frente da “casa do Kassab”, ou seja,
diante da própria prefeitura, ao lado do Viaduto do Chá. Ótimo!
Uma excelente oportunidade da massa ir lá e dar seu recado, seu
grito!
Segundo os próprios
organizadores, compareceram cerca de 200 pessoas. Em 10 milhões de
paulistanos, 200 heróis se dispuseram a fazer o Sopão do Prefeito
Diferenciado, ele que está fechando saraus nas periferias, ele que
promoveu de modo sórdido a limpeza da cracolândia (ou seja, a
violência sistemática contra humanos que moram na rua), ele que faz
uma gestão pública às avessas – contra o cidadão.
Duzentas pessoas.
Duzentos paulistanos corajosos e criativos. Indignadíssimos,
exercendo corretamente sua cidadania no Largo do Patriarca. Eles são
um exemplo. De resto, se não há aplausos em relação a esse
político lamentável (e sua política do escárnio), há, sim, muita
distração, muita timidez. Muita indignação ligada no automático.
E a imagem do cachorro revolucionário esconde esse silêncio.
Ernesto
Sabato mostra por que é impossível explicar conceitos avançados da
física
O
escritor argentino Ernesto Sabato (1911-2011) foi um físico
consagrado, antes de se dedicar à literatura. Em Paris, trabalhou no
laboratório dos Irmãos Curie. Sua convivência com os surrealistas
foi decisiva para abandonar a ciência – e se tornar um crítico
ferrenho dela.
É
a ciência um assunto recorrente em seus ensaios. Em “Nós e o
Universo” (1945), ele escreveu algo sobre a teoria de Albert
Einstein que se encaixa perfeitamente em discussões contemporâneas.
Por exemplo, a “partícula de Deus”, recém-descoberta por
cientistas, anunciada hoje em Genebra.
Segue
o tópico do ensaio, intitulado “Divulgação”:
“Alguém
me pede uma explicação da teoria de Einstein. Com muito entusiasmo,
falo de tensores e geodésicas tetradimensionais.
- Não entendi uma única palavra –
me diz, estupefato.
Reflito
um instante e logo, com menos entusiasmo, dou uma explicação menos
técnica, conservando algumas geodésicas, mas fazendo intervir
aviadores e disparos de revólver.
- Já entendi quase tudo – diz meu
amigo, com bastante alegria. - Mas há algo que ainda não entendo:
essas geodésicas, essas coordenadas...
Deprimido,
mergulho em uma longa concentração mental e acabo por abandonar
para sempre as geodésicas e as coordenadas; com verdadeira
ferocidade, me dedico exclusivamente a aviadores que fumam enquanto
viajam à velocidade da luz, a chefes de estação que disparam um
revólver com a mão direita e verificam tempos com um cronômetro
que têm na mão esquerda, a trens, sinos e vermes de quatro
dimensões.
- Agora sim, agora entendi a
relatividade! - exclama meu amigo com alegria.
-
Sim – respondo amargamente -, mas agora não
é mais a relatividade”.
Não
entendo de física nuclear. Por isso devo ter sido um dos tantos a
ler a notícia sobre a descoberta de uma partícula, segundo os
pesquisadores "consistente com o Bóson de Higgs", por
conta do nome midiático que deram a ela, "partícula de Deus".
É assim que ela está descrita na imprensa – e não somente a
brasileira.
Temos
assim um gigantesco paradoxo. Uma pesquisa gigantesca feita por
físicos para tentar entender o universo, levando o nome daquele que,
por fé, bilhões de pessoas definem como seu criador e mantenedor.
Leio
que o apelido foi dado no livro "The
God Particle: If the Universe Is the Answer, What Is the Question?" (1993), de Leon Lederman (prêmio Nobel de Física em 1988) e
Dick Teresi. Não havia uma intenção religiosa por trás. Peter
Higgs é ateu. Ou seja: os dois autores venderam mais livros por conta dessa comparação. O que também acontece com os jornais.
Lederman
brincou no livro que os editores não o deixariam batizar a partícula
de “Goddamn Particle”, ou Partícula Maldita. Alegou que deu o
nome por ser ela “tão central na física hoje, tão crucial para
o entendimento final da estrutura da matéria, e, no entanto, tão
indefinida”.
BIOLOGIA,
FÍSICA E COMUNICAÇÃO
Intenção
não religiosa à parte, é fato que estamos lendo sobre essa partícula
(com destaque nos jornais e portais) por conta dessas quatro
letrinhas: “Deus”. Tentemos imaginar um título na linha:
“Descoberta partícula proposta por Peter Higgs”. Nem vou cogitar
o uso da palavra “bóson” no título. Leríamos?
Saiu
nestes dias uma notícia de uma pesquisa feita por um biólogo. Lendo
trabalhos acadêmicos feitos por médicos veterinários, ele percebeu que estavam
recheados de referências religiosas. Ao contrário dos biólogos,
alegou, mais influenciados pela teoria evolucionista.
A
definição de alguém como criacionista chega a ser uma espécie de
ofensa científica. O geógrafo Aziz Ab'Saber, falecido este ano, não
gostava da ex-ministra Marina Silva, e, para desqualificá-la,
chamou-a uma vez exatamente de “criacionista”.
Como
não sou biólogo nem físico, prefiro falar de comunicação. Existe
nesse caso da “partícula de Deus” algo extremamente
representativo da batalha ambígua de discursos na qual vivemos. Excepcionalmente, a redução (ou a ambiguidade) no batismo da partícula não foi proposta por um jornalista, mas por um físico renomado. E esperto.
Esses
discursos (o científico e o religioso) se sobrepõem, formam uma só massa – sem trocadilhos,
aqui, com o termo da física, mas pensando no formato dos meios de comunicação. É como se dois corpos pudessem ocupar
um mesmo espaço. Deus e a partícula de Higgs.
À parte a transformação de tudo em mercadoria, não
acho isso necessariamente ruim. O tema pode ser utilizado nas aulas
de Biologia e Física como fator motivador. Só está faltando
explicar melhor por que Deus foi invocado nesse tema: como signo
do imponderável.
Uma piadinha de cientista. Do jeito que é divulgado fica parecendo que
descobriram uma pista para comprovar sua existência.
Cimi
aponta atropelamento sistemático de líderes indígenas no MS
O
secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi),
Cleber Busato, denunciou na manhã desta segunda-feira, em audiência
no Senado, o atropelamento sistemático de lideranças indígenas no
Mato Grosso do Sul.
Ele
contou que morreu ontem um cacique, atropelado na semana passada,
quando andava de bicicleta. Conhecido como Zezinho, ele chegou a
participar da Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro, durante a Rio+20.
Segundo o site do Cimi, era líder de uma organização guarani, do
acampamento Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante. Estava na UTI em
Dourados (MS).
Busato
também relatou a morte de três filhos de uma mesma liderança,
Damiana, guerreira Kaiowá Guarani do tekohá Apyka'i. Na semana
passada, dois desses filhos foram atropelados na rodovia que passa
pelo acampamento, em Dourados. “Um deles pelo funcionário da usina
de cana”, afirmou, na audiência da Comissão de Direitos Humanos,
transmitida pela TV Senado.
Esse
funcionário estava de moto. Segundo o secretário-adjunto do Cimi,
já teria tentado atear fogo com óleo diesel nos barracos – entre
eles o de Agnaldo, um dos filhos atropelados. Os dois filhos de
Damiana, Agnaldo Cari de Souza e Wagner Freitas, foram enterrados ao
lado do filho atropelado em 2011, Sidnei. Wagner morreu na hora, no
dia 25 de junho. O marido de Damiana, Hilário, também foi morto por
atropelamento.
Segundo
o Cimi, atropelamentos ocorrem também em outros estados. Mas o caso
mais grave é o do Mato Grosso do Sul. “Essa situação é
potencializada pela demora dos procedimentos de regularização das
terras indígenas", afirma Busato.
Egon
Heck, coordenador regional do Cimi no Mato Grosso do Sul, escreveu
ontem artigo sobre os atropelamentos, antes da morte de Zezinho. “Os
indígenas são mortos nas estradas que nem cachorro, que se mata e
fica aí jogado", escreveu, baseado em relato de indígenas.
“Isso em função da impunidade total em que ficam os responsáveis
por essas mortes. Em geral, os causadores fogem sem prestar socorro e
sequer são identificados”.