quarta-feira, 18 de julho de 2012

Um cantor indígena, a feira literária das elites e a nossa “barbárie cultural”
 
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
 
A expressão “barbárie cultural” está em um texto na parede da Casa do Núcleo, um espaço alternativo (local de shows e cursos, sede de uma gravadora e produtora) localizado no bairro de Alto de Pinheiros, em São Paulo. Refere-se à perda irreparável que é ignorarmos culturas de outros países e povos, diante do massacre ao qual somos diariamente submetidos pela indústria do entretenimento – com viés, claro, estadunidense e europeu.

Lembrei-me da “barbárie cultural” ao ver vídeos com músicas de Wakay, um índio Funi-ô alagoano radicado em Salvador. Ele canta em yathe, seu idioma materno, e em português. A apresentação de seu trabalho fala de ritmos marcados pelos pés (como nas danças indígenas) e da presença de sons de pássaros e água corrente. Considera-se na missão de espalhar as tradições dos primeiros habitantes das terras brasileiras.


Pode-se até não gostar das músicas. Ou do autor. Mas é preciso reconhecer que faz circular um conjunto diferente de imagens, de conceitos, de olhares, em relação ao que estamos acostumados. Só a divulgação do texto em idioma indígena já valeria a experiência. O Brasil tem hoje cerca de 180 idiomas, além do português. Eles representam séculos de tradição, de riqueza cultural. Mas muitos estão em extinção. Os demais seguem desconhecidos, enquanto aprendemos inglês, espanhol e alemão.

O cientista social Emir Sader escreveu este mês um texto sobre a Flip, a Feira Literária Internacional de Paraty, que vai ao encontro dessa ideia de barbárie cultural. Está no blog da Boitempo Editorial. Ele critica a elitização do evento, que, para ele, tanto poderia ser realizado em Ibiza, em Cannes ou no Havaí: “Parece que se joga justamente com o exclusivismo, com o gasto enorme que se pode fazer, para dizer: 'Eu estive na Flip, em Paraty'.”

Sader menciona uma ausência específica na Flip: a de representantes da literatura e do ensaísmo latino-americanos, que tiveram “pouca ou nenhuma presença” no evento, no início de julho. De fato, basta passar os olhos na relação dos debatedores para observar a ausência dos vizinhos. E olhem que se trata de uma das literaturas mais ricas do planeta.

Não por coincidência, o criador do Núcleo Contemporâneo, onde fica a Casa do Núcleo, investe na coleta de CDs e informações sobre música da América Latina. É o músico Benjamin Taubkin, membro do Fórum Europeu de Música do Mundo. Ele considera a música desse continente (por conta da diversidade de estilos e culturas) uma das mais inspiradoras e vivas do planeta.

A cultura dos povos indígenas está para a cultura brasileira assim como a cultura produzida na América Latina: distante, desconhecida. Lutar contra a barbárie, no Brasil, significa lutar contra o desconhecimento monumental relativo às mais de 200 nações indígenas distribuídas por nosso território. E implica disposição para conhecer mais seus idiomas, suas danças, sua musicalidade.

Os indígenas estão se movimentando, a duras penas. Temos neste texto apenas um exemplo, com Wakay. Mas o vídeo tem pouquíssimos acessos no YouTube. Outros estão fazendo ou aprendendo a fazer filmes – um cinema com outro olhar, outra luz, que ainda não chega em nossos aparelhos hollywoodianos.

Entre os brancos ditos civilizados (inclusive os que se consideram ilustradíssimos), a barbárie cultural é uma doença contagiosa, uma praga que nos confina em pontos cada vez mais isolados de nosso território possível.

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terça-feira, 10 de julho de 2012

Fantástico celebra superação “da natureza”, mas ignora planeta econômico
 
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
 
O repórter Clayton Conservani, do Fantástico, obteve uma especialização “radical”. Ele sai pelo mundo "desafiando" a natureza. No domingo o programa dedicou mais de meia hora à sua suposta façanha de correr por centenas de quilômetros no Saara. Ele chegou a chamar de “herói” um colega que, como ele, conseguiu atingir o objetivo.
 
A mensagem embutida é que cabe ao homem superar as dificuldades "da natureza". Há que se seguir em frente, apesar dos pés em carne viva. É preciso se sacrificar no Saara “em nome da filha”, do outro lado do oceano, porque ele “treinou” e é um marido sensível e dedicado.
 
O mesmo programa falava (em poucos segundos) de mais de cem mortos por inundação na Rússia. O programa poderia ter informado que nem sempre se pode desafiar a natureza. Mas foi tudo muito rapidinho, pois era preciso falar das peripécias do repórter no Saara. Ficamos sabendo que o governo russo abriu uma investigação. E só.
 
Na Baía de Guanabara, pescadores brasileiros estão sendo mortos apenas por insistirem em ir ao mar. Para trabalhar. Estão contrariando interesses econômicos. Nada de recompensa por desafiarem a natureza numa atividade ancestral. Dois deles foram amarrados ao barco, no fim de junho. Morreram afogados. Nos três últimos anos mais dois foram assassinados. Outros, ameaçados.
 
Por que a Globo não manda Conservani pescar na Guanabara? E por que a emissora não reserva alguns minutos para defender a vida de pescadores?
 
O presidente da Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar), Alexandre Anderson, fez um depoimento emocionado, no fim de junho. Por conta dos amigos mortos, e das ameaças que o motivam a desistir de ir ao mar. Ele também falou dos filhos – e dos filhos de colegas ameaçados. Em nome dos filhos (e da vida), pensa que já não poderá mais pescar em seu território. Quer desistir.
 
A mesma televisão que, com câmeras indiscretas, invade o rosto de celebridades para mostrar suas lágrimas (por qualquer apelo emocional barato) não mostra o depoimento emocionado de Anderson, em fala na OAB do Rio. O depoimento tem larga importância econômica. Cultural. Política. Literária. Social. É um documento que valoriza o ser humano, em meio à adversidade. É um depoimento fantástico.
 
No entanto, os telespectadores são obrigados a assistir ao pé de Clayton Conservani em carne viva. Condoem-se de suas dificuldades no deserto, compartilham de sua necessidade de “superação”.
 
E os mortos na Guanabara? Não treinaram o suficiente? Não são “heróis”? E o adolescente de 15 anos que foi morto há alguns dias, também no Rio, morto e empalado, com os olhos arrancados, apenas por ser homossexual, ele não estava apto a enfrentar “a natureza”? Quantos segundos esse ser humano recebeu de nossa atenção?
 
Estamos em julho. Não é época de inundação no Brasil. E sim na Rússia. Em janeiro os jornais falarão burocraticamente dos “desastres” causados pela chuva – e não pela ocupação irresponsável dos solos urbanos. Não seremos informados que, por motivos econômicos, pela imposição do sistema, milhões de seres humanos são obrigados a morar precariamente em encostas, em locais de risco.
 
Mas, vejam só, lá vem a perigosíssima tempestade de areia no Saara. Clayton Conservani vai enfrentá-la e nos redimir dos pecados.
 
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segunda-feira, 9 de julho de 2012

Os homens e o mar: depoimento emocionado de pescador resume a história do Brasil
 
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
 
Tem de ser visto. E divulgado. O depoimento do pescador Alexandre Anderson, em ato na OAB no fim de junho, tem um valor histórico que ainda não foi percebido pela sociedade brasileira – nem mesmo por seus resquícios de esquerda.
 
Se Ernest Hemingway consagrou a história de “O Velho e o Mar”, temos na matança de pescadores na Baía de Guanabara a síntese – literária e histórica – de um país violento.
 
Em pleno Rio de Janeiro, jovens pescadores como Almir e João estão sendo sistematicamente mortos por lutarem por seus direitos. “Nós só queremos ficar no mar”, diz Anderson no vídeo. Chorando. “Por que nos perseguem?”
 
O depoimento resume uma história de espoliações. E de assassinatos. De um país ainda majoritariamente litorâneo – e que faz vistas grossas para os 500 anos de pilhagem. De pirataria. Sintetiza ainda o grito possível dos excluídos – entre lágrimas.
 
Anderson representa a Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar). Aqui ele fala emocionado sobre o assassinato dos companheiros Almir Nogueira do Amorim (40 anos) e João Luiz Telles Penetra (45 anos), o Pituca. Diz que sabe quem são os mandantes – e que eles também estão dentro do governo estadual, do governo municipal.
 
A fala do pescador foi feita apenas seis dias após os homicídios, no dia 23 de junho – enquanto o mundo olhava para a Rio+20. Dias antes, no dia 18, Almir e Pituca estavam em uma mesa na Cúpula dos Povos. Enquanto a ministra do Meio Ambiente atacava não empresários ou latifundiários, mas ambientalistas.
 
Seguem o vídeo, divulgado pela Anistia Internacional (que move uma ação urgente em defesa dos pescadores), e a transcrição, feita pelo blog:


“Vocês são homens do mar, então vão morrer no mar”

“Quando a gente enterra um companheiro vai um pedaço de nós ali dentro. A gente está enterrando gente, nossa alma está ali dentro também. Até a nossa alma de luta nos tiram. Falei outro dia num discurso: 'Podem acabar com nossa vida, mas nossa alma de luta não. E estão levando nossa alma de luta sim, gente'.

O mais triste disso tudo é você ver os companheiros mortos. O mais triste disso tudo é que ninguém faz nada. Só vocês. Mas parece que é muito pouco. Parece que quem deveria fazer, sabendo que deveria fazer, não faz.

Nós sepultamos o Almirzinho. Eu vi todo aquele caixão lacrado, pesado de água. Não um pescador, não um de nós ali dentro. Eu vi o nosso sonho ali dentro, junto. Eu vi nossa luta dentro de um Pituca, em Paquetá. Ele foi enterrado com uma foto segurando um peixe, gente. Jesus buscou um pescador para acompanhá-lo.

Por que nos perseguem? Nós só queremos ficar no mar.

Nós sabemos que foi um aviso. Nós temos certeza que foi um aviso. Hoje a Baía de Guanabara está em luto. Os Homens do Mar estão em luto. Uma coisa que eu não vi, desde que fundamos os Homens do Mar: estamos com medo. Não vimos isso, nem com a morte do Paulo [Santos Souza, em 2009], nem com o assassinato do Márcio [Amaro, em 2010].

Hoje temos medo. Medo porque estamos sendo mortos, amarrados no próprio barco. Medo porque eles foram mortos, respirando a água do seu próprio mar. Dando um sinal: 'Vocês são homens do mar? Então vão morrer no mar!”. Eles fizeram isso com o Paulo? Não, mataram na frente da família. Fizeram com o Márcio? Mataram na frente da família. Agora não: 'Vocês são homens do mar, vão morrer no mar”, esse é o recado que estamos recebendo. 'Continua, que vocês vão todos ser mortos'.

Eu não sei o papel daqui pra frente. Meus companheiros estão calados. A Baía de Guanabara está calada. Os barcos não saíram pro mar, desde segunda-feira. Os barcos estão na areia da praia. A tristeza está nos nossos olhos. Na nossa família. E a gente olha pra um lado, olha pro outro, e (…) não é como antigamente.

Não foi uma morte, gente. Isso é uma crueldade. Eles amarraram nosso companheiro, deixaram ele se afogar lentamente. Até as 11 da manhã de domingo achamos que estavam desaparecidos. Toda uma comunidade, ninguém imaginou que eles seriam assassinados.

Eles estavam justamente no caminho daquele maldito pier do Comperj [o maior complexo petroquímico do Rio]. Eles foram mortos na água que drena o [Rio] Guaxindiba, que é alvo da nossa luta, de preservar aquele meio ambiente. Nós fazemos parte do meio ambiente. Quando eu falei que nós, pescadores, somos parte da Baía de Guanabara, isso é verdade, mas a gente não quer morrer respirando a água da Baía de Guanabara.

Está muito triste pra gente. Muito triste. Eu não estou mais dormindo. Eu disse esta semana em reunião na Ahomar que, se tiver de morrer mais alguém, que morra eu, que seja um bom preço. Vão acabar com a Ahomar, gente, vão acabar com o grupo. Éramos onze, nós somos oito. Somos oito, estão matando o grupo da Ahomar, estão nos matando.

Eu não quero acreditar que seja uma coisa particular. Eu queria acreditar que fosse alguma coisa individual, um problema individual. Mas não está indo para esse lado. Eu vi lágrima nos olhos do curraleiro [há rivalidade entre pescadores artesanais e curraleiros], quando eu perguntei ontem: 'Vocês viram alguma coisa?'. 'Alexandre, nós não matamos o companheiro, Alexandre”. Eu falei: 'Eu sei disso'. 'Estão botando a culpa na gente, esses malditos desses jornais. Única coisa que a gente viu foi aquele navio maldito, que passa sem nome, sem placa, sem identidade, quase afundando nossos barcos' .

Eu peço que as autoridades investiguem. E investiguem muito. Isso serviu de recado para alguém. Já recebemos o recado. A gente não vai mais para o mar, não. Eles conseguiram o que queriam, nos tiraram da água. Tiraram os homens do mar da sua casa.

Há alguns anos atrás nós falávamos, eu mesmo usei o mar para proteção. Quando dava alguma coisa de ruim na nossa praia a gente corria pro mar. Hoje a gente tem como correr pro mar, onde a gente vai correr? Hoje só tem o caminho do cemitério pra gente.

Peço às autoridades deste país que investiguem a morte do Pituca e do Almirzinho. Que investiguem a morte de Paulo, que investiguem a morte de Márcio. Vão encontrar que tudo tem uma grande relação. Desde que nós começamos a fazer a parte da campanha contra o uso industrial do Guaxindiba começamos a receber muita ameaça. Nesse mesmo momento o DPO [Destacamento de Policiamento Ostensivo] da Praia de Mauá fechou, 35 mil pessoas ficaram sem policiamento. O único DPO da Praia de Mauá. Nesse mesmo momento começamos a ser perseguidos.

Numa dessas perseguições a viatura que estava comigo, perseguida, atirou contra os malfeitores que vinham, não identificados. Nessa mesma época os diretores começaram a falar que estavam sendo visitados por homens armados.

Nós sabemos quem são. Sabemos de onde está vindo. São pessoas que ganham muito dinheiro com todo esse processo de industrialização da Baía de Guanabara. São pessoas que trabalham na segurança, fornecendo água, transporte aquaviário, transporte terrestre para esses empreendimentos. São pessoas que estão dentro do governo do estado. São pessoas que estão dentro do governo municipal. São pessoas que estão dentro da segurança pública local.

Nós estamos alertando. 'Vai morrer mais gente, está muito difícil'. Eu aviso ao programa [aponta para alguém], está muito difícil. Apareceu um barco, tem dois meses, todo perfurado de balas. O pescador ficou quatro dias na porta da delegacia local e não conseguiu fazer um R.O. [Registro de Ocorrência] No final o cara falou: 'Vou te prender. Vai embora daqui'. Ficou um bicho. O barco está lá todo perfurado.

Nós temos histórico de barcos todos perfurados de bala, à noite. Nós escutamos estampidos de tiros. Antigamente a gente escutava barulho à noite, sabe do quê? Da última barca de Paquetá, quando ia para o Rio de Janeiro. Hoje a gente escuta estampido de tiro de fuzil, de pistola.

O pescador está sendo expulso. Agora vem o jornal e diz que não tem relação, que o pescador é que está matando pescador. Onde, gente? Falaram isso do Paulo, no começo: 'É conflito de pesca'. Daqui a pouco vão botar a culpa neles, que eles é que se amarraram e se suicidaram. Cada um amarrou o outro.

Eu estive com os curraleiros de Magé, curraleiro que tinha mais dinheiro está com a casa trincada. O que conseguiu ganhar algum dinheiro o cara tem um Chevette 94. Eles estão chorando, chorando de indignação. Eu estive com o pessoal de Paquetá, eles não querem nem falar. Pessoal só faz assim, aponta na direção dos terminais, aqueles malditos terminais. Aponta na direção da Ahomar.

Essa luta deu muita morte gente, vamos parar. Nessa luta não estamos lutando com o Golias, não. Estamos lutando com o próprio capeta, meu irmão. Não estão lutando com Golias. Golias, Davi ganhou. A gente não ganha mais essa luta não.

Estou muito triste. Estou achando que vou largar tudo. Não quero mais ver companheiros mortos. Não quero enterrar mais ninguém dos Homens do Mar. Não quero. Vou fazer um trato. Se isso não der um encaminhamento, eu vou largar a luta, vou largar o grupo. Estou cansado de enterrar, estou cansado de avisar: 'Estão matando, gente. Estão perseguindo, estão na minha porta'. Estou cansado de ver meu muro cheio de buraco de bala, estou cansado de ver barco de pescador cheio de buraco de bala, estou cansado de ver mulher de pescador dizer: 'Meu filho, você vai morrer'.

Eu não posso ver mais meus filhos. Os companheiros que estão do meu lado não estão mais aguentando também. Será que neste país aqui a gente está vivendo um estado democrático, gente? Isso é pior que a ditadura. Está aqui do lado. Está tudo acontecendo aqui do lado.

Não tem jeito. Eu não ia falar sobre isso. Mas não estou conseguindo. Quem matou Paulo, quem matou Márcio, quem matou o João, que é o Pituca, quem matou o Almirzinho, eu queria dar o recado: 'Para. Para que a gente vai embora'.” (Alexandre Anderson, presidente da Associação de Homens e Mulheres do Mar)
 

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sábado, 7 de julho de 2012

Cachorro faz xixi na foto do Kassab. Mas a imagem não representa a realidade
 
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
 
A foto de J. Duran Machfee mostra um cachorro fazendo xixi em uma foto gigante do prefeito Gilberto Kassab, em pleno Minhocão, em si um símbolo da degradação paulistana. Por que ela não representa a realidade?
 
Sim, o cachorro lá esteve, no insinuante Elevado Costa e Silva, e por ali batizou o cartaz com a imagem do prefeito. A foto está sendo reproduzida com júbilo nas redes sociais. Todos comemoram o gesto involuntário do cão como um grande feito.
 
E, no entanto, o prefeito dorme diariamente o sono tranquilo dos injustos. O higienista Kassab, um prefeito que já chamou (aos berros) um cidadão de “vagabundo”, não enfrenta reação popular. De gênero nenhum – nem violenta, nem humorística, nem desorganizada. A indignação não se manifesta.


Ou seja: essa imagem da agência Futura Press esconde uma passividade geral. Está varrendo a política municipal de exclusões sistemáticas para debaixo do tapete. Quando vemos a foto, rimos o nosso riso distante e achamos (não racionalmente, mas achamos) que algo está sendo feito contra esse político retrógrado, autoritário, esse soldado das elites. Como diria René Magritte*, "isto não é um protesto".
 

(*O pintor surrealista belga questionou a fronteira entre realidade e representação ao pintar um cachimbo e legendá-lo: "Isto não é um cachimbo".)

Uma das decisões recentes dessa triste prefeitura foi a de proibir a distribuição de sopa no centro da cidade. Antes tinha, agora não tem. Alguém teve uma ideia genial: fazer, nesta quinta-feira, um sopão em frente da “casa do Kassab”, ou seja, diante da própria prefeitura, ao lado do Viaduto do Chá. Ótimo! Uma excelente oportunidade da massa ir lá e dar seu recado, seu grito!

Segundo os próprios organizadores, compareceram cerca de 200 pessoas. Em 10 milhões de paulistanos, 200 heróis se dispuseram a fazer o Sopão do Prefeito Diferenciado, ele que está fechando saraus nas periferias, ele que promoveu de modo sórdido a limpeza da cracolândia (ou seja, a violência sistemática contra humanos que moram na rua), ele que faz uma gestão pública às avessas – contra o cidadão.

Duzentas pessoas. Duzentos paulistanos corajosos e criativos. Indignadíssimos, exercendo corretamente sua cidadania no Largo do Patriarca. Eles são um exemplo. De resto, se não há aplausos em relação a esse político lamentável (e sua política do escárnio), há, sim, muita distração, muita timidez. Muita indignação ligada no automático. E a imagem do cachorro revolucionário esconde esse silêncio.
 

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quarta-feira, 4 de julho de 2012

Ernesto Sabato mostra por que é impossível explicar conceitos avançados da física

O escritor argentino Ernesto Sabato (1911-2011) foi um físico consagrado, antes de se dedicar à literatura. Em Paris, trabalhou no laboratório dos Irmãos Curie. Sua convivência com os surrealistas foi decisiva para abandonar a ciência – e se tornar um crítico ferrenho dela.

É a ciência um assunto recorrente em seus ensaios. Em “Nós e o Universo” (1945), ele escreveu algo sobre a teoria de Albert Einstein que se encaixa perfeitamente em discussões contemporâneas. Por exemplo, a “partícula de Deus”, recém-descoberta por cientistas, anunciada hoje em Genebra.

Segue o tópico do ensaio, intitulado “Divulgação”:

 
“Alguém me pede uma explicação da teoria de Einstein. Com muito entusiasmo, falo de tensores e geodésicas tetradimensionais.

- Não entendi uma única palavra – me diz, estupefato.
 
Reflito um instante e logo, com menos entusiasmo, dou uma explicação menos técnica, conservando algumas geodésicas, mas fazendo intervir aviadores e disparos de revólver.
 
- Já entendi quase tudo – diz meu amigo, com bastante alegria. - Mas há algo que ainda não entendo: essas geodésicas, essas coordenadas...
 
Deprimido, mergulho em uma longa concentração mental e acabo por abandonar para sempre as geodésicas e as coordenadas; com verdadeira ferocidade, me dedico exclusivamente a aviadores que fumam enquanto viajam à velocidade da luz, a chefes de estação que disparam um revólver com a mão direita e verificam tempos com um cronômetro que têm na mão esquerda, a trens, sinos e vermes de quatro dimensões.
 
- Agora sim, agora entendi a relatividade! - exclama meu amigo com alegria.
 
- Sim – respondo amargamente -, mas agora não é mais a relatividade”.
 
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Quem leria sobre a nova descoberta da física se ela não se chamasse “partícula de Deus”?
 
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
 
Não entendo de física nuclear. Por isso devo ter sido um dos tantos a ler a notícia sobre a descoberta de uma partícula, segundo os pesquisadores "consistente com o Bóson de Higgs", por conta do nome midiático que deram a ela, "partícula de Deus". É assim que ela está descrita na imprensa – e não somente a brasileira.
 
Temos assim um gigantesco paradoxo. Uma pesquisa gigantesca feita por físicos para tentar entender o universo, levando o nome daquele que, por fé, bilhões de pessoas definem como seu criador e mantenedor.
 
Leio que o apelido foi dado no livro "The God Particle: If the Universe Is the Answer, What Is the Question?" (1993), de Leon Lederman (prêmio Nobel de Física em 1988) e Dick Teresi. Não havia uma intenção religiosa por trás. Peter Higgs é ateu. Ou seja: os dois autores venderam mais livros por conta dessa comparação. O que também acontece com os jornais.
 
Lederman brincou no livro que os editores não o deixariam batizar a partícula de “Goddamn Particle”, ou Partícula Maldita. Alegou que deu o nome por ser ela “tão central na física hoje, tão crucial para o entendimento final da estrutura da matéria, e, no entanto, tão indefinida”.
 
BIOLOGIA, FÍSICA E COMUNICAÇÃO
 
Intenção não religiosa à parte, é fato que estamos lendo sobre essa partícula (com destaque nos jornais e portais) por conta dessas quatro letrinhas: “Deus”. Tentemos imaginar um título na linha: “Descoberta partícula proposta por Peter Higgs”. Nem vou cogitar o uso da palavra “bóson” no título. Leríamos?
 
Saiu nestes dias uma notícia de uma pesquisa feita por um biólogo. Lendo trabalhos acadêmicos feitos por médicos veterinários, ele percebeu que estavam recheados de referências religiosas. Ao contrário dos biólogos, alegou, mais influenciados pela teoria evolucionista.
 
A definição de alguém como criacionista chega a ser uma espécie de ofensa científica. O geógrafo Aziz Ab'Saber, falecido este ano, não gostava da ex-ministra Marina Silva, e, para desqualificá-la, chamou-a uma vez exatamente de “criacionista”.
 
Como não sou biólogo nem físico, prefiro falar de comunicação. Existe nesse caso da “partícula de Deus” algo extremamente representativo da batalha ambígua de discursos na qual vivemos. Excepcionalmente, a redução (ou a ambiguidade) no batismo da partícula não foi proposta por um jornalista, mas por um físico renomado. E esperto.
 
Esses discursos (o científico e o religioso) se sobrepõem, formam uma só massa – sem trocadilhos, aqui, com o termo da física, mas pensando no formato dos meios de comunicação. É como se dois corpos pudessem ocupar um mesmo espaço. Deus e a partícula de Higgs.
 
À parte a transformação de tudo em mercadoria, não acho isso necessariamente ruim. O tema pode ser utilizado nas aulas de Biologia e Física como fator motivador. Só está faltando explicar melhor por que Deus foi invocado nesse tema: como signo do imponderável.

Uma piadinha de cientista. Do jeito que é divulgado fica parecendo que descobriram uma pista para comprovar sua existência.
 

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segunda-feira, 2 de julho de 2012

Cimi aponta atropelamento sistemático de líderes indígenas no MS
 
O secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber Busato, denunciou na manhã desta segunda-feira, em audiência no Senado, o atropelamento sistemático de lideranças indígenas no Mato Grosso do Sul.

Ele contou que morreu ontem um cacique, atropelado na semana passada, quando andava de bicicleta. Conhecido como Zezinho, ele chegou a participar da Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro, durante a Rio+20. Segundo o site do Cimi, era líder de uma organização guarani, do acampamento Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante. Estava na UTI em Dourados (MS).
 
Busato também relatou a morte de três filhos de uma mesma liderança, Damiana, guerreira Kaiowá Guarani do tekohá Apyka'i. Na semana passada, dois desses filhos foram atropelados na rodovia que passa pelo acampamento, em Dourados. “Um deles pelo funcionário da usina de cana”, afirmou, na audiência da Comissão de Direitos Humanos, transmitida pela TV Senado.
 
Esse funcionário estava de moto. Segundo o secretário-adjunto do Cimi, já teria tentado atear fogo com óleo diesel nos barracos – entre eles o de Agnaldo, um dos filhos atropelados. Os dois filhos de Damiana, Agnaldo Cari de Souza e Wagner Freitas, foram enterrados ao lado do filho atropelado em 2011, Sidnei. Wagner morreu na hora, no dia 25 de junho. O marido de Damiana, Hilário, também foi morto por atropelamento.
 
Segundo o Cimi, atropelamentos ocorrem também em outros estados. Mas o caso mais grave é o do Mato Grosso do Sul. “Essa situação é potencializada pela demora dos procedimentos de regularização das terras indígenas", afirma Busato.
 
Egon Heck, coordenador regional do Cimi no Mato Grosso do Sul, escreveu ontem artigo sobre os atropelamentos, antes da morte de Zezinho. “Os indígenas são mortos nas estradas que nem cachorro, que se mata e fica aí jogado", escreveu, baseado em relato de indígenas. “Isso em função da impunidade total em que ficam os responsáveis por essas mortes. Em geral, os causadores fogem sem prestar socorro e sequer são identificados”.
 
Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
 
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