terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Cobertura da Globo no Pinheirinho é o debate Lula x Collor do século 21

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

É a manipulação jornalística do século. Seu protagonista, a Rede Globo. O tema, a Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos. Vítimas: as 2 mil famílias despejadas pela polícia – mulheres, crianças e idosos na mira de balas (não somente de borracha), retiradas com violência de suas casas, atiradas em alojamentos sem infra-estrutura. Um arsenal de violações de direitos humanos, naturalizado pela principal emissora do país.

Cabe assinalar que não sou dos que costumam demonizar a priori a Rede Globo. Considero-a melhor que as demais emissoras – à exceção das educativas. Elogiei várias vezes, nos últimos meses, pelo Twitter, coberturas feitas pelo Fantástico, que tem sido um raro espaço (em toda a imprensa brasileira) para reportagens investigativas. Foi pelo repórter Eduardo Faustino que ficamos sabendo de esquema de fraude nas bombas de combustíveis, que vimos com detalhes a venda – ilegal - de terras do Incra.

Mais uma concessão à Globo? Não sou dos que consideram o Big Brother Brasil o último lixo da televisão brasileira. Vejo na reação anual contra ele uma indignação de verão, metonímica, cíclica, confortável, uma cortina de fumaça em relação a programas muito piores e mais nocivos; programas, em várias emissoras, que estimulam as violências, as mencionadas violações de direitos humanos etc.

Feitas as ressalvas, mostremos por que a Globo constrange a democracia com sua cobertura da reintegração de posse em São José dos Campos.

Primeiro foi o Fantástico. Um professor de Jornalismo em São Paulo, Francisco Bicudo, resumiu da seguinte forma a cobertura do programa dominical: “Pinheirinho = fábrica de traficantes”. De fato, a emissora elegeu como tema central a imagem de três barracos que seriam a “cracolândia” local. Os termos relacionados ao tráfico foram determinantes para se contar a história daquele povo – até então desconhecida pela maior parte da população brasileira. A edição servia para justificar a brutalidade estatal.

Não havia ali nem sombra da isenção proclamada pela emissora. E isso foi comprovado na manhã seguinte, no Bom Dia, Brasil. O jornal matutino fez uma cobertura digna da desocupação. Com as mesmas imagens e entrevistas exibidas pelo Fantástico, conseguiu mostrar o drama dos moradores. Sem criminalizá-los. A apresentadora Carla Vilhena chegou a fazer algo que quase ninguém na grande imprensa faz: questionou a utilização da palavra “invadida” para definir a área.

Aqui cabe explicar que “invasão” e “ocupação” são palavras opostas para o mesmo fenômeno. Movimentos de sem-teto e sem-terra (e não somente eles) utilizam, em todo o mundo, esse recurso político. Chamam de “ocupação”. É um recurso considerado legítimo por muita gente que está longe de ser “bandida" – ou mesmo revolucionária. Alinhada aos proprietários de terra, a grande imprensa usa a palavra “invasão”. E somente ela. Por que não usa as duas? Porque não é isenta.

A MÁGICA DAS EDIÇÕES

Carla Vilhena e os editores do Bom Dia, Brasil mostraram que, na própria Rede Globo, não se enxerga um fato da mesma forma. É elementar no jornalismo. O matutino, aliás, enfatizou que se tratava de uma massa falida do especulador Naji Nahas - um personagem que o restante da imprensa está fazendo questão de esquecer no episódio. Nahas nunca pagou IPTU à prefeitura de São José dos Campos. Mas o telespectador não sabe disso. A escolha de determinados temas (e imagens, frases, palavras) chama-se “edição”.

Mas teria acontecido algo entre o Fantástico e o Bom Dia, Brasil? Nas redes sociais houve uma reação imediata contra a emissora. Deploramos imediatamente a abordagem sórdida do Fantástico – desumana, cínica, abjeta. E comemoramos uma abordagem mais serena durante a manhã. Algo ainda longe de questionar os excessos policiais e as escolhas da “justiça” brasileira (que não tem a mesma disposição para retirar empresas e famílias ricas de áreas “invadidas”).

A Rede Globo teria recuado? Optado por uma cobertura mais equilibrada - e humana - com medo de perder audiência? Que nada. À noite, viria ele – o Jornal Nacional.

Estamos a falar do programa que, em 1989, tornou-se uma referência negativa na televisão brasileira. A edição manipulada do último debate entre Lula e Collor, a poucos dias da eleição, foi admitida recentemente por um dos chefes do Jornalismo à época, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni:

Sim, o Jornal Nacional abandonou a teoria embutida na edição do Fantástico, aquela do Pinheirinho como um local de tráfico. Mas a trocou pela imagem dos vândalos. Imagens de pessoas furtando uma loja foram exibidas logo no início da edição. Ou seja: além de “invasores”, os moradores do Pinheirinho seriam “vândalos”. E, apesar dos esforços da equipe do Bom Dia Brasil, ninguém desmentiu a imagem anterior, a dos “traficantes”.


Ou seja: estamos diante de um verdadeiro e monumental estelionato jornalístico. Digno de ser estudado nas Faculdades de Comunicação. Com um agravante em relação ao debate entre Lula e Collor: naquela ocasião houve um exagero do bom desempenho de Collor no debate; e um exagero do mau desempenho (que existiu) de Lula, muito nervoso naquele dia. Em outras  palavras: a Globo mais aumentou do que inventou.

O que está acontecendo esta semana, portanto, de São José dos Campos para o Brasil, é a construção calculada de uma imagem coletiva: em vez de milhares de famílias vítimas de casuísmo (judiciário) e violência (policial), aqueles brasileiros são apresentados como “invasores vândalos e traficantes”. Alguns jornalistas, particularmente desprovidos de ética e caráter, instalados em revistas de circulação nacional, já propagam com prazer repugnante essa distorção.

Desta forma, os meios de comunicação cumprem com eficácia seu papel de jagunços da desigualdade. Se a polícia (a mando do Executivo e do Judiciário) aperta seus gatilhos e humilha in loco, os latifundiários da comunicação e seus jornalistas amestrados atacam e agridem, de longe, famílias inteiras de brasileiros. É a Tropa de Choque Midiática, a aplicar rasteiras e pontapés virtuais na dignidade das vítimas. Suas armas são algumas palavras e alguns botões.

PS: a reportagem desta terça-feira do Bom Dia, Brasil, da mesma Rede Globo, é mais uma vez equilibrada. Expõe, sim, a posição da polícia e do governador. Mas põe ênfase no destino dos moradores - que são chamados de "ocupantes", não invasores. Carla Vilhena diz que muita coisa poderia ter sido feita, já que a ocupação data de 2004. Mas o programa não tem a mesma audiência do Fantástico e do Jornal Nacional.

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4 comentários:

Bruno Pessa disse...

Bem analisado, parabéns!

Pacheco disse...

A cobertura do caso de Pinheirinhos está sendo igual a da ocupação dos estudantes da USP. É sempre a mesma história, o "justissimo" governo paulista x os "vandalos e invasores".

Fiquei surpreso em saber que pelo menos a edição do Bom Dia Brasil destoa do resto da emissora.

Cabeda disse...

Penso ser muito louvável sua posição em defesa da isenção, da imparcialidade e da verdade.

Mas deixei de crer há bastante tempo na verdade absoluta.

Parabéns pelo trabalho.

Cabeda disse...

Sobre a reportagem sobre a adulteração das bombas de combustível, vale um reparo.

A Band saiu muitos meses na frente mas a Globo publicou-a como furo. Mais uma das milhões de mentiras da Vênus Platinada. Veja link abaixo:

Globo repete série especial do Jornal da Band http://televisao.uol.com.br/colunas/flavio-ricco/2012/01/09/fantastico-repete-serie-especial-do-jornal-da-band.htm