terça-feira, 12 de março de 2013

Um trânsito assassino, uma imprensa sem escrúpulos, uma sociedade voyeur

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Um braço aqui, uma vida acolá. O trânsito brasileiro segue sua trajetória assassina. Agora com atropelamento online, em vídeo, para a apreciação imediata da distinta sociedade brasileira. Com contagem de page views e, ao lado, anunciantes torcendo para que haja mais cliques. Assistimos a tudo isso sem questionar – como se tivesse sido sempre assim. Banalizamos a morte. E o horror.

Não posso dizer quando começou. Mas virou mesmo regra a imprensa repetir sem constrangimento imagens de mortes ao vivo. O Brasil Urgente, da Band, mostrou nesta segunda-feira, várias vezes (o fenômeno da repetição tornou-se célebre com a queda das torres gêmeas) o vídeo do atropelamento fatal de um ciclista no Recife. Ele atravessava a faixa - no sinal verde.

Em meio a esse voyeurismo mórbido, a tragédia do adolescente e a desgraça do trânsito brasileiro tornam-se apenas ativos para atrair audiência - e anunciantes. Sem perceber, entre um e outro zapeamento, a sociedade na sala-de-jantar vai achando isso normal. "Tá vendo, mulher? Olha como ele voou!" Ou então: “Mereceu. O semáforo ficou vermelho enquanto atravessava”.

O UOL (supostamente dirigido a um público mais crítico) não ficou atrás e publicou a seguinte chamada: "Câmeras em PE mostram atropelamento e morte de ciclista". Isso podia ser visto na home do portal, acima de uma notícia sobre um go-go boy. Mais à esquerda, o Big Brother Brasil. Um pouco mais à direita e o leitor poderia encontrá-los, lá estavam eles – os amigos patrocinadores.

No dia 25 de fevereiro, o próprio UOL dava a seguinte chamada para outro vídeo: "Imagens mostram homem sendo perseguido e espancado até a morte no centro de Porto Alegre". De fato se tratava de um espancamento cruel. Como se vários covardes do MMA – esses que dão marretadas em cabeças alheias - se juntassem para matar um ser humano. O portal também convidava, exultante: "Assista a cenas da agressão em Porto Alegre".

Mesmo a história do jovem que atropelou o ciclista (e foi ao Tamanduateí jogar seu  braço) não ganha contornos mínimos de uma reflexão necessária sobre a nossa violência diária. São mais de 40 mil mortes por ano no trânsito brasileiro. Foram mais de 40 mil mortes em 2011. O equivalente a 165 tragédias de Santa Maria. Sem falar dos feridos, mutilados.

Lamenta-se a estupidez deste ou daquele motorista, mas, em poucos dias, lá estamos nós falando de outra coisa - e não desse genocídio. Dessa cultura de Fórmula 1, dessa cultura que mitificou Ayrton Senna, o piloto que ultrapassava sempre (era o que importava), desse espírito capitalista de chegar à frente do outro (seja como for) que o álcool costuma potencializar nos canalhas.

Cada profissional de jornalismo é conivente com essa incitação à violência, esse horror à contextualização, essa banalização do crime. Esta não se dá somente no caso dos apresentadores mais truculentos, aqueles de programas ordinários, cheios de certezas taliônicas. E sim no principal portal do país. Esses jornalistas (que se esqueceram do que estudaram) estão patrocinando uma guinada de nossas percepções para a aceitação da barbárie.

Mas o país não vai parar para refletir sobre a dimensão regressiva dessa sordidez. A sordidez no trânsito, a sordidez da imprensa, a sordidez da indiferença, a sordidez da falta de reflexão sobre a sordidez. Estamos a cada dia (a cada programa televisivo, a cada primeira página de portal) celebrando o que há de mais desumano em nossas ruas. E incivilizado.

Nem mesmo a desconfiança de que tudo isso possa acontecer com um de nós (a morte, a mutilação, a exploração invasiva da imagem) nos leva a pensar em algo contra essa implosão – da ética e do bom senso. No caso da imprensa, há quem diga que seria "censura". No caso do trânsito, não nos importamos em abrir alas para o próximo patife passar. Ambos são símbolos perfeitos destes tempos sombrios.

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quinta-feira, 7 de março de 2013

Sobre Feliciano, Calheiros. E sobre analfabetismo político e midiático

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Do jeito que as coisas vão no cenário político brasileiro, duas coisas: 1) a bancada evangélica fundamentalista só crescerá ao longo dos anos; 2) a bancada ruralista, cada vez mais santificada, continuará dando as cartas no Congresso. Cito dois exemplos mais conhecidos, entre outras bancadas movidas a conflito de interesses: empreiteiras, ensino privado, saúde privada etc.

Interesse público, na atividade desses excelentíssimo senhores? Estamos longe disso. Com as honrosas exceções. Mas não dá para seguirmos canalizando as nossas indignações para uma estrada estéril. Ou para uma nuvem etérea, ineficaz, distante da política real. É possível, sim, equilibrar utopia e pragmatismo. Ocorre que isso exige um combate rigoroso à ingenuidade.

Passou da hora dessa gente bronzeada pensar a política como um todo. As indignações específicas são bem-vindas, desde que inseridas numa percepção maior do que é o sistema partidário, do que é o sistema eleitoral. Marco Feliciano, Jair Bolsonaro, Renan Calheiros? Podemos desprezar mais ou menos este ou aquele (eu voto nesse terceiro senhor, muito mais poderoso), mas os problemas estão bem mais embaixo.

Ou seja, entre petições virtuais, protestos reais e gritos nas redes sociais, precisamos participar mais efetivamente da vida política. Efetividade, nesse caso, implica um grau muito maior de informações sobre como funcionam as instituições: o Congresso, o sistema representativo, o Judiciário, a imprensa.

Isso passa pela revogação do anafalbetismo midiático. Ou seja, pela noção de que a imprensa graúda se movimenta em ondas, de acordo com interesses específicos. O caos informativo (que os donos dos meios de comunicação definem como exercício de democracia...) é apenas aparente. Que o diga a questão agrária – violentamente reduzida, nos grandes jornais, a “invasões” dos sem-terra contra pobres proprietários impolutos.

O refinamento de nossa percepção política exige uma disposição muito maior para obter informações. Seja na academia, seja em meios alternativos: livros, novas mídias. Estamos dispostos a alavancar essa rede de informações contra-hegemônicas? Financiá-la, inclusive?

As discussões regulares sobre temas estruturais também são necessárias. A relação entre os problemas, também. Trata-se de um sistema cheio de buracos, e não apenas de um nome ou outro mal escolhido, de um ou outro personagem sórdido, que seria uma excrescência do sistema. Estamos dispostos a reservar parte de nosso tempo semanal para esse debate? (Esse combate necessário?)

Se não tivermos essa visão de conjunto nossa indignação seguirá enxugando gelo. Os genocídios no trânsito, no campo, as agressões a mulheres e a homossexuais, a corrupção, a especulação imobiliária, a violência urbana (inclusive a policial) compõem uma mesma sinfonia do desprezo à vida, um mesmo concerto de celebração do lucro a qualquer custo, do oportunismo como valor inevitável.

Sem essa percepção orgânica cada brasileiro indignado poderá incorrer no erro de atacar numa ponta o que pratica na outra. De ser o psicótico que gruda na traseira do carro da frente enquanto acha que o mensalão foi a pior – e única – manifestação de que há algo errado na política. É tempo de observar o quanto o cinismo brasiliense não reflete o cinismo perpetuado diariamente em nossa sociedade violenta.

Quando falo de uma indignação “em ponta de faca”, enxugando gelo, devo assinalar que esse costuma ser um passo provável - e despolitizado- para o desânimo.

Desistências e indiferença alimentam diariamente o jogo dos inimigos. Os gritos por cidadania não podem ser apenas espasmos, performances sem maiores consequências. Devem ser canalizados para ações conjuntas – e racionais - por outras bancadas parlamentares (e estas são fundamentais), outras visões de mundo, outras práticas, outro fôlego, outra política.

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