Cesare Battisti, o cinismo, Lula, Haddad, Maluf e
o ator em cada um de nós
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Interessam-me os contornos psicológicos da cena
em que Fernando Haddad e Lula observam Paulo Maluf, no momento em que
este sela o acordo para apoiar o candidato petista à prefeitura
paulistana. Observem. Lula é um ator bem mais tarimbado, mas mesmo
ele revela, em sua face, um incômodo evidente. Haddad? Esse gostaria
de estar em qualquer outro lugar do planeta. Maluf está com sua cara
cínica de sempre.
Utilizo a noção de cinismo pensando em uma frase do escritor italiano Cesare Battisti. Hoje um asilado político, ele passou três anos em um presídio comum, no Brasil. Na Itália também vivera na cadeia. A convivência com os presos comuns motivou-o a fazer uma comparação – em entrevista ao portal Vermelho - com o comportamento habitual que temos em sociedade:
- Essas pessoas, quando te falam, te falam de uma
maneira... porque não têm nada mais a perder. E na cadeia, o
cinismo, essa estrutura de defesa que precisamos na rua, lá não
existe. Porque você está submetido a uma pressão tal que isso tudo
aí não tem o menor sentido. Então quando fala com alguém, fala de
verdade. É por isso que eu aprendi a conhecer o Brasil sob a palavra
dos presos.
Battisti fala de uma certa máscara social. Em
muitos casos, dirá a maioria, inevitável. Caetano Veloso já falou
sobre “o valor necessário do ato hipócrita”. E nem é preciso
utilizar termos negativos para apontarmos condutas que não
exatamente seriam as mais autênticas. Por trás da máscara pode
haver um objetivo nobre: diplomático, político, um ato de
generosidade, de preservação da paz.
Mas quem dera o movimento dos disfarces fosse
majoritariamente esse: em prol do bem estar do outro, ou de um mundo
melhor. Esse grande teatro humano abriga diariamente a perfídia, o
cálculo egoísta, a negação de uma igualdade de fato entre os
interlocutores. Abriga a agressão, o desprezo, violências diversas
contra o outro – tomado como adversário, figura a ser enganada, vencida.
Essa atuação coletiva pode ainda representar uma
violência contra cada um de nós mesmos. Contra os próprios princípios,
convicções, em nome de conveniências. E aí vem o constrangimento.
A dificuldade maior de disfarçar, de sorrir de uma forma que não
seja amarela, de olhar expansivamente no olho dos demais. De viver
uma comunicação plena, e não implícita, distante, simbólica.
Assimilamos isso mais facilmente quando ocorre de maneira eventual: quase todos passamos por situações assim. (Meu falecido
pai, não – adotava a linha “doa a quem doer”, e sofria muito
por conta disso.) Mas, em determinados círculos, isso não ocorre
um dia aqui, outro ali. Torna-se a prática cotidiana. A regra. E
quem é ator quase o tempo todo?
Os políticos, por exemplo. Mas não só eles.
Lembro-me de uma amiga que abominava um colega nosso. Por conta da
habilidade que ele tinha, alegava ela, em praticar o mimetismo. De
acordo com a personalidade de cada interlocutora, esse rapaz agia
como se concordasse plenamente com o que ela dizia. Modulava sua voz
de acordo com a dela, utilizava frases que ela utilizaria, contraía
os músculos da face em uníssono – com objetivos de conquistá-la, manipulá-la.
O objetivo de Lula e Haddad ao aproximar-se de um símbolo do deboche era e é bem definido: amealhar mais tempo de televisão. E votos. Ganhar as eleições. E, com isso, supostamente gerir os bens públicos de uma forma melhor que os adversários. O que, em tese, incluiria combater patifes muito parecidos com aqueles que, por acaso, eles tenham apertado as mãos. Anulam-se, aparentemente, para ganhar acolá. Isto na melhor das hipóteses, claro.
O objetivo de Lula e Haddad ao aproximar-se de um símbolo do deboche era e é bem definido: amealhar mais tempo de televisão. E votos. Ganhar as eleições. E, com isso, supostamente gerir os bens públicos de uma forma melhor que os adversários. O que, em tese, incluiria combater patifes muito parecidos com aqueles que, por acaso, eles tenham apertado as mãos. Anulam-se, aparentemente, para ganhar acolá. Isto na melhor das hipóteses, claro.
Em algum momento a cena do trio revirou o estômago
da sociedade paulista. Esta sociedade é excludente, ela é
agressiva, ela é violenta, ela é uma enorme Casa Grande. Aceita
diariamente hipócritas e cínicos de bom grado. Nas repartições,
na universidade, no meio empresarial – e também no meio político. A imagem dos
três choca mais porque Maluf (esse senhor procurado pela Interpol) é
exatamente símbolo de uma degradação maior. Não somente de uma
política canastrona, mas de uma vulgaridade explícita.
Queremos empurrar essa vulgaridade para debaixo do
tapete. Escondê-la, fazer de conta que ela não existe, que vivemos
em um mundo mais próximo do ideal. Queremos políticos (e não somente políticos) que façam
jogo sujo, mas que sejam capazes de conviver na nossa sala de jantar.
Com máscaras, mas com rasgos de autenticidade, resquícios de algo
genuíno, migalhas de utopia.
Lula e Haddad talvez adorassem ser muito mais que
rasgos, resquícios e migalhas. Mas não nos envergonhamos apenas por
eles, pelo que eles estão perdendo ou deixaram de ter (e que Maluf nunca teve). E sim
pelo pacto coletivo que permite toda essa miséria. Pela falta de
alternativas, pelo silêncio sem face dos desiludidos.
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