Como é
ter uma filha. Criá-la. Amá-la. E ouvir os disparates do resto da
humanidade
por ALCEU
LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Eu tenho
uma filha. Ela tem 12 anos. Mora comigo. Ela é o infinito. Uma
multiplicação de possibilidades. Mas a percepção de boa parte das
pessoas é estreita, restritiva. Quando perguntam sobre ela, querem
encaixá-la em algum estereótipo. A começar da catalogação:
“pré-adolescente”, “criança”, “moça”. A continuar pela
descrição (e projeção) física: “vai dar trabalho”.
(As frases
são acompanhas de risinhos, de uma espécie de cumplicidade às
avessas, uma certa cordialidade corrosiva. Esperam que eu ria junto,
que eu confirme alguma sina, alguma adversidade estrutural. Parece
que eu devo ser destinado a sofrer por ter uma filha, e não o
contrário: que ela vai me dar muitas alegrias, que ela vai continuar
dando sentidos extras à minha vida.)
Quase
ninguém pergunta como ela é. Quais os traços de personalidade. O
que ela gosta de estudar. Que livros já leu. Que filmes já viu.
Como ela percebe as amigas, os professores, o mundo adulto, as
cidades onde ela viveu, o que a revolta. O que a comove. O que causa
nela indignação, aflição. O que ela rejeita. O que ela celebra. O
que ela abomina. O que a faz sorrir.
Ela não
pode ser um infinito e um arremedo ao mesmo tempo. Sendo ela o
infinito, o problema está em quem a reduz. Este é um exercício
diário, o passatempo principal da nossa sociedade: reduzir,
catalogar. Sim, vá lá, faço isso diariamente com adultos. Catalogo
os canalhas, os patifes incorrigíveis, os grandissíssimos filhos de
uma puta, os vermes, os indiferentes, os cúmplices. Os entreguistas,
os traidores, os pusilânimes. Eu olho em volta e os vejo – lá
estão.
(Em outros
cantos vejo heróis, vejo resistentes. Olho para a minha filha e
projeto todos eles, vejo nos olhos dela que ela não nasceu para
oprimir ninguém. Mas ninguém nunca me perguntou: sua filha é uma
boa pessoa? Tem boa índole?)
No caso das crianças, considero a redução precoce de seus traços de personalidade um baita de um atrevimento. Uma pretensão. Uma decisão anômala, descabida, deslocada, extemporânea. Uma proposição absurda. Sigo acreditando – enfaticamente – que essa personalidade está em construção. Que ela não é uma mulher de 18 anos. Uma moça de 30 anos. Uma adolescente de 40 anos. Vejo-a como ela é: um ser humano de 12 anos.
“Mas ela vai dar trabalho, hem?” As perguntas se repetem. Ou as exclamações: “Sua filha vai dar trabalho!” Os tons variam. Às vezes, mais reticentes, en passant: “Ela vai dar trabalho...”
No caso das crianças, considero a redução precoce de seus traços de personalidade um baita de um atrevimento. Uma pretensão. Uma decisão anômala, descabida, deslocada, extemporânea. Uma proposição absurda. Sigo acreditando – enfaticamente – que essa personalidade está em construção. Que ela não é uma mulher de 18 anos. Uma moça de 30 anos. Uma adolescente de 40 anos. Vejo-a como ela é: um ser humano de 12 anos.
“Mas ela vai dar trabalho, hem?” As perguntas se repetem. Ou as exclamações: “Sua filha vai dar trabalho!” Os tons variam. Às vezes, mais reticentes, en passant: “Ela vai dar trabalho...”
“Dar trabalho”? Já pensaram no que está embutido
nessa palavra? “Trabalho”? Por que associar uma vida (e suas potencialidades) à palavra "trabalho"? A minha filha, com licença, não dá e não dará trabalho. Antes de mais nada, ela é um indivíduo - em si. Possui uma vida própria, um recorte específico,
uma existência muito particular. Mas... pensem. O que vocês querem realmente dizer
com isso?
Tá bom,
tá bom, eu sei que, em muitos casos, vocês não têm intenções
negativas, mentes abomináveis. Que não estão perpetuando a sexualização
precoce, que não estão insinuando que ela tenha atributos que
simplesmente não são atributos da sua idade. Mas... veja só. Em
outros casos desconfio. Fico com a orelha em pé. Os dois pés atrás.
Cotovelo e punhos a postos.
E por
isso escrevo. Porque a minha filha de 12 anos é o infinito e porque
ela deve ser preservada. Delicadamente preservada. Linguisticamente
preservada. Como toda criança deste planeta.
Sim, não
se trata do problema único do universo, da maior violência possível
contra uma criança. Há fome, há mortes, há trabalho infantil,
tráfico internacional de órgãos. Minha filha, especificamente ela,
é um poço de privilégios: nasceu num canto da humanidade que se
alimenta, não é subnutrida. A casa dela tem telefone, saneamento
básico. Estuda em uma boa escola, está lendo Gabriel García
Márquez.
Ocorre
que a existência de violências mais explícitas não anula a
existência de violências mais sutis. Minha filha (assim como cada
criança do mundo) merece ser vista como ela é. E não como as
pessoas projetam, não pelo que elas percebem em si mesmas – ou no
conjunto da humanidade sórdida.
Está bem,
dirão que eu carrego nas tintas contra os adultos. Vá lá. Bem sei
que nem toda humanidade é sórdida. Mas sempre (e obsessivamente) me
chama a atenção a repetição do bordão negativo - “ela vai dar
trabalho, vai dar trabalho”. Como o coelho com pressa de Lewis
Carroll. Não somente a repetição, o chavão, mas a ausência de
algum equivalente positivo: “Ela é um anjo. Ela vai ser a solução.
Está sendo.”
As pessoas
são hobbesianas. Estão longe de acreditarem no bom selvagem.
Nenhum problema em relação a isso, quando pensamos no
conjunto da humanidade adulta – em boa parte acanalhada, ou refém
de pactos entre patifes. O meu problema é com as crianças. Não
temos o direito de projetar nossas frustrações (para ser até
simpático com algumas projeções mais rústicas) em cada filho de
amigo nosso. Devemos olhá-la como o caleidoscópio possível. Como a
pedra a ser burilada.
Como a
jóia mais exuberante da coroa. A minha filha de 12 anos é assim. E
cada menina de 12 anos tem isso dentro dela – mais ou menos
desenvolvido. A possibilidade de que seja uma pessoa que faça
diferença. Que aja contra a desigualdade, que sinta o drama
(esfomeado, violentado) de bilhões de pessoas, que seja coerente,
como adulta, com o senso de justiça ainda existente na infância. Ou
na adolescência.
Essas
pessoas são especiais. Devem ser o nosso motivo diário de sorrisos
– e de esperança. E não o nosso alvo. Nosso motivo de inveja ou
despeito. Voluntário ou involuntário. Devem ser o conjunto dos
dicionários, o conjunto das palavras possíveis, devem ser o
universo multiplicado.
Elas devem
ser (do ponto de vista estilístico) Jorge Luis Borges, o narrador do
infinito, e não o jornalista redutor de cada esquina. Devem ser
celebradas. Cada uma delas é o Prêmio Nobel de Literatura e de
Ciência – e é aquele que vai salvar as nossas vidas. Antes disso,
são o que são – são plenas.
As nossas
crianças (entre elas a minha filha de 12 anos, a pessoa mais
importante do mundo) merecem ser vistas como tais. Como a soma. O
movimento. A utopia.
E não um
ponto congelado em nossas retinas tão fatigadas.
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16 comentários:
Lindo texto, Alceu. Tô aqui emocionada. Talvez porque alguns acontecimentos recentes me fizeram ter uma reflexão parecida hoje. E principalmente porque ela é o infinito. Eles são.
Beijos, obrigada
Mariana.
de um modo bem egoísta, obrigado por ter escrito tudo isso
Parabéns por esse texto (e pelo blog), fiquei sem palavras.
Deliciosamente tocante. Obrigado. Abraços.
como sempre meu amigo sabe dar vida as palavras...concordo totalmente com a realidade maravilhosa da criação de uma menina. bjs
Nossa Alceu, que palavras sábias!Amei o texto e faço das suas palavras a minha. Tenho 04 filhos e até hoje me rotulam "Louca!". Louca porque? Porque tenho na minha vida 04 pessoas que significam e são para mim"Infinito"! Estão atadas em mim por um fio indivisível chamado amor. Somos uma soma. Uma soma de conquistas e desafios. Uma amiga me diz: Vcs formam um bloco. E é assim, o que afeta um afeta todos! Os desafios ficam menores porque os enfrentamos em 05 pessoas. Sempre ouvi o mesmo, "Nossa, como vc dá conta? Vc é louca!" É Alceu, que bom que existem pessoas como vc que soube colocar suas palavras que , no mínimo, irão colocar as pessoas para refletir um pouco e pensar melhor quando for dizer alguma coisa tipo " Vai dar trabalho hem?"
Como o ser humano as vezes é finito...Quando foi feito para ser infinito... abços.
Sua prima Rosângela
O texto me toca, fui uma promessa de trabalho ao meus pais, como toda menina é: uma maldição, é assim que me sentia. Agora tenho as minhas duas meninas e o sortilégio lhes é lançado desde pequeninas...crescemos assim, jocosamente condenadas a fazer algo errado e nem sabemos o que.
Alceu, não lhe conheço, seu blog me foi apresentado pela Mariana, mãe do Benjamin, minha "colega" de sala, na escola de nossos filhos. Lindo seu texto, porque nos completa e nos reflete inteiramente. Obrigada! Diria ainda, que todas essas projeções começam, na verdade, quando nossos filhos estão em nossa barriga. Porque todo mundo foi, um dia, um bebê... Um forte abraço, Ana Luiza
Pois é, Alceu, tenho um menino de 4 anos e meio (quatro anos e Meio!) e ouço as mesmas coisas. A erotização da infância parece que está presente em todos os lugares, faixas etárias, classes sociais... Quando conto uma história sobre o meu filho, com a ideia de ressaltar um raciocínio interessante, uma demonstração do desenvolvimento da linguagem surpreendente, ou uma simples gracinha de criança, as pessoas surgem com os comentários de sempre, esses que remetem ao garanhão de olhos azuis que já está no caminho certo para se dar muito bem com as mulheres. Até nos diálogos comigo, a própria mãe!, as pessoas tratam como uma artimanha para seduzir o sexo oposto. Fico constrangida, mas não posso sair por aí dando um puxão de orelha em cada um que faz um comentário desagrável. O que fazer para que os adultos deixem as crianças viverem a infância em paz? Continue contribuindo com as suas reflexões,esses adultos ainda vão dar muito trabalho. Bjs
Mariana, Renato, Cauê, Chico, Mônica, Rosângela, Cigarra, Ana e Thelma, grato pelas palavras! A pergunta da Thelma é decisiva: "O que fazer para que os adultos deixem as crianças viverem a infância em paz?"
Eu repito... "O que fazer para que os adultos deixem as crianças viverem a infância em paz?" Comentários que envolvem erotização, sexismo e homofobia chegam aos meus ouvidos, porque sou mãe de um menino de seis anos, que adora bichos de pelúcia, inclusive um cachorro cor de rosa. É difícil dizer de modo educado que meu filho vai bem, obrigada, mas que a cabeça de quem o olha por essas lentes... vai mal, muito mal...
Lindo texto... Como mulher que já foi uma menina... emocionante. É maravilhoso como uma pessoa que não conheço pessoalmente, foi capaz de tocar o meu coração. Texto brilhante
Esse texto veio em boa hora; me fez lembrar a questão da maioridade penal, que tem sido debatida e muitos torcem para que os jovens respondam por seus crimes. As crianças são o infinito... e parte da sociedade é responsável por jogá-las onde estão, no crime, na violência. Não pensam que uma ínfima minoria é dona da riqueza desse país, enquanto muitas dessas crianças são jogadas nas periferias das grandes cidades, junto com suas famílias, na pobreza e sem direito à cidadania. Imaginemos essas crianças tendo direitos iguais às demais, certamente não seria essa realidade que vivemos hoje.
Muito bom texto, gostaria de ver muitos dos seus textos, pois aponta para reflexões, para o despertar da consciência. É mesmo emocionante e de uma sensibilidade que nos toca.
grato, Zelia. Não tinha pensado na relação com a maioridade penal. Muito bem observado. Também os que tiveram menos oportunidades têm essa potencialidade embutida. São muita coisa - mas vítimas de uma violência multiplicada.
Muito sensibilizada pelas suas palavras. Sinto cada uma delas a respeito do meu filho, que já não está mais aqui e, mesmo assim, está.
Excelentes observações, que descubro apenas três anos depois, mas ainda na idade exata dos meus filhos. Obrigado, Alceu.
Minha mulher e eu curtimos cada fase do desenvolvimento deles, ouvindo vez ou outra despaupérios como "Vocês vão ver quando nascer, não dormirão mais!" e depois "Vocês vão ver quando começar a andar, o trabalho que vai dar!". Ouvimos o "Vocês vão ver quando tiver oito anos, uma idade terrível!" e "Vão ver quando estiverem saindo sozinhos!". É como se nos lançassem uma praga, uma espécie de "vocês hão de sofrer, eu quero!".
E nós nos deliciando a cada fase, a cada conquista, a cada passo de amadurecimento daqueles dois seres humanos, na busca da felicidade, e que têm se mostrado inclinados a uma existência na ética e na consideração pelo próximo. E não é para isto que um casal trabalha ao planejar gerar uma criança?
Faz muito bem você em se indignar com insinuações como o "dar trabalho". A pessoa que diz isso foi incompetente na educação de uma criança e deseja a sua frustração para o outro.
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