Quem
será um dos 117 mortos de hoje no trânsito? Mais um indiferente?
por
ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
A
indiferença em relação à crescente matança no trânsito
brasileiro é brutal. O Estadão divulgou hoje dados consolidados do
Ministério da Saúde: em 2010, foram 42.844 mortos. Um crescimento
de 13,9% em relação a 2009, com 37.594 mortos.
Sempre
me pergunto o porquê do embotamento em relação ao tema. Motivos
religiosos, que enxergam “fatalidade” nesse extermínio? Motivos
econômicos, que levam os jornais (patrocinados pelas grandes
montadoras) a naturalizar o problema?
O
fato é que, diariamente, 117 pessoas morreram no trânsito em 2010.
E o número está crescendo, apontam os gráficos. Caminhamos
velozmente para 50 mil mortos por ano no trânsito. Mais de três
salas de aula por dia. Em 20 anos serão eliminados 1 milhão de
brasileiros.
Somente
entre motociclistas foram 10.825 mortos em 2010. Fora os feridos,
mutilados. (Basta ir numa clínica de fisioterapia para ver os
estragos.) Isso representa cerca de 25% do total de mortos. A
Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) do município de São Paulo
diz que “apenas” 8% dos 512 motociclistas mortos na cidade em
2011 eram motoboys.
A
morte está na esquina. No próximo poste. Mas nos acostumamos a essa
lógica absurda de apropriação do espaço público. Para chegarmos
logo aos locais de trabalho, assassinamos a função da rua como
espaço socializador. E, de quebra, autorizamos o extermínio diário
de brasileiros.
Quem
são eles? Apenas playboys andando a 280 quilômetros por hora, a
ostentar seus carrões e horizontes culturais estreitos? Não: são
famílias, são crianças, são mulheres. Em boa parte assassinadas.
Empregadas domésticas, pedreiros, estudantes – em poucos casos um
grande empresário ou filho de político. A matança é de classe
média. E de pobres.
Essas
pessoas estão bem perto da gente. Conhecemos, em nosso círculo,
alguém que foi esmagado, algum adolescente com sua vida furtada. Em
muitos casos, um parente. Choramos por eles. E conhecemos também os
algozes. Em muitos casos, tomamos cervejinha com esses pilotos, andamos no
mesmo carro com o motorista alucinado, participamos de conversas
toscas sobre os últimos modelos de armas - de carros.
Claro
que nem toda morte no trânsito é fruto de irresponsabilidade
individual, do motorista ou do pedestre. Mas basta andar nas estradas
de São Paulo para perceber os potenciais assassinos, grudando na
traseira do seu carro, dando fechadas inacreditáveis, tudo por
alguns segundos a menos em seus trajetos. E eles são legitimados:
não há uma revolta na sociedade pela direção “perigosa” -
potencialmente assassina.
Aos
indivíduos que protagonizam a matança devemos somar a
responsabilidade coletiva. O papel de uma sociedade doente. Os mesmos
jornais que se acostumaram com a barbárie do trânsito são os que
promovem a lógica do automóvel como um dos bens supremos da
sociedade. É uma espécie de religião, como bem sabem os que
convivem diretamente com fanáticos por carros.
As montadoras também são diretamente responsáveis: o objetivo é o lucro, não a segurança dos cidadãos. O mesmo jornal que divulgou os dados da matança (42,8 mil mortes em 2010), no caderno Metrópole, dá o seguinte título, no caderno de Economia: "Montadoras prometem juro zero para se livrar dos estoques".
Na mídia (jornalismo e publicidade), o entupimento das ruas por carros aparece como unicamente um direito individual, uma aspiração legítima de todos - e não um arranjo coletivo questionável, banhado a sangue.
As montadoras também são diretamente responsáveis: o objetivo é o lucro, não a segurança dos cidadãos. O mesmo jornal que divulgou os dados da matança (42,8 mil mortes em 2010), no caderno Metrópole, dá o seguinte título, no caderno de Economia: "Montadoras prometem juro zero para se livrar dos estoques".
Na mídia (jornalismo e publicidade), o entupimento das ruas por carros aparece como unicamente um direito individual, uma aspiração legítima de todos - e não um arranjo coletivo questionável, banhado a sangue.
E
o que faz o poder público? Enxuga gelo, claro. Quando não estimula
(com diminuição de impostos) a proliferação de automóveis, apontada
como motivo primeiro do aumento das mortes. A indústria de multas
pouco tem a ver com uma política real de combate aos motoristas
perigosos. Os motoqueiros criaram uma faixa imaginária no trânsito,
buzinam e chutam o retrovisor quando a desrespeitamos – mas não
ocorre a ninguém coibir essa tentativa coletiva de suicídio.
Parte
desses mortos estava a
serviço. Mas eles nem entram nas estatísticas de acidentes de
trabalho. Poucos trabalham formalmente. São pontas-de-lança de um
capitalismo particularmente selvagem. Alguém ganha dinheiro com
esses brasileiros dizimados, nossa pizza chega eventualmente alguns
minutos antes.
E
seguimos indiferentes.
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