sábado, 12 de maio de 2012

Quem será um dos 117 mortos de hoje no trânsito? Mais um indiferente?
 
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
 
A indiferença em relação à crescente matança no trânsito brasileiro é brutal. O Estadão divulgou hoje dados consolidados do Ministério da Saúde: em 2010, foram 42.844 mortos. Um crescimento de 13,9% em relação a 2009, com 37.594 mortos.
 
Sempre me pergunto o porquê do embotamento em relação ao tema. Motivos religiosos, que enxergam “fatalidade” nesse extermínio? Motivos econômicos, que levam os jornais (patrocinados pelas grandes montadoras) a naturalizar o problema?
 
O fato é que, diariamente, 117 pessoas morreram no trânsito em 2010. E o número está crescendo, apontam os gráficos. Caminhamos velozmente para 50 mil mortos por ano no trânsito. Mais de três salas de aula por dia. Em 20 anos serão eliminados 1 milhão de brasileiros.
 
Somente entre motociclistas foram 10.825 mortos em 2010. Fora os feridos, mutilados. (Basta ir numa clínica de fisioterapia para ver os estragos.) Isso representa cerca de 25% do total de mortos. A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) do município de São Paulo diz que “apenas” 8% dos 512 motociclistas mortos na cidade em 2011 eram motoboys.
 
A morte está na esquina. No próximo poste. Mas nos acostumamos a essa lógica absurda de apropriação do espaço público. Para chegarmos logo aos locais de trabalho, assassinamos a função da rua como espaço socializador. E, de quebra, autorizamos o extermínio diário de brasileiros.
 
Quem são eles? Apenas playboys andando a 280 quilômetros por hora, a ostentar seus carrões e horizontes culturais estreitos? Não: são famílias, são crianças, são mulheres. Em boa parte assassinadas. Empregadas domésticas, pedreiros, estudantes – em poucos casos um grande empresário ou filho de político. A matança é de classe média. E de pobres.
 
Essas pessoas estão bem perto da gente. Conhecemos, em nosso círculo, alguém que foi esmagado, algum adolescente com sua vida furtada. Em muitos casos, um parente. Choramos por eles. E conhecemos também os algozes. Em muitos casos, tomamos cervejinha com esses pilotos, andamos no mesmo carro com o motorista alucinado, participamos de conversas toscas sobre os últimos modelos de armas - de carros.
 
Claro que nem toda morte no trânsito é fruto de irresponsabilidade individual, do motorista ou do pedestre. Mas basta andar nas estradas de São Paulo para perceber os potenciais assassinos, grudando na traseira do seu carro, dando fechadas inacreditáveis, tudo por alguns segundos a menos em seus trajetos. E eles são legitimados: não há uma revolta na sociedade pela direção “perigosa” - potencialmente assassina.
 
Aos indivíduos que protagonizam a matança devemos somar a responsabilidade coletiva. O papel de uma sociedade doente. Os mesmos jornais que se acostumaram com a barbárie do trânsito são os que promovem a lógica do automóvel como um dos bens supremos da sociedade. É uma espécie de religião, como bem sabem os que convivem diretamente com fanáticos por carros.

As montadoras também são diretamente responsáveis: o objetivo é o lucro, não a segurança dos cidadãos. O mesmo jornal que divulgou os dados da matança (42,8 mil mortes em 2010), no caderno Metrópole, dá o seguinte título, no caderno de Economia: "Montadoras prometem juro zero para se livrar dos estoques".

Na mídia (jornalismo e publicidade), o entupimento das ruas por carros aparece como unicamente um direito individual, uma aspiração legítima de todos - e não um arranjo coletivo questionável, banhado a sangue.
 
E o que faz o poder público? Enxuga gelo, claro. Quando não estimula (com diminuição de impostos) a proliferação de automóveis, apontada como motivo primeiro do aumento das mortes. A indústria de multas pouco tem a ver com uma política real de combate aos motoristas perigosos. Os motoqueiros criaram uma faixa imaginária no trânsito, buzinam e chutam o retrovisor quando a desrespeitamos – mas não ocorre a ninguém coibir essa tentativa coletiva de suicídio.
 
Parte desses mortos estava a serviço. Mas eles nem entram nas estatísticas de acidentes de trabalho. Poucos trabalham formalmente. São pontas-de-lança de um capitalismo particularmente selvagem. Alguém ganha dinheiro com esses brasileiros dizimados, nossa pizza chega eventualmente alguns minutos antes.
 
E seguimos indiferentes.
 
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