Piadinhas sobre Xuxa são o riso nervoso de uma sociedade doente
por
ALCEU LUÍS CASTILHO
(@alceucastilho)
Penso,
logo deploro. O projeto do ser humano de viver em sociedade revela-se
diariamente algo mal resolvido. À desigualdade econômica (1 bilhão
de pessoas passando fome, bilhões de pobres) soma-se a miséria
cultural – e ética. Cinismo e ignorância caminham juntos na
celebração de um gigantesco fracasso coletivo.
Faço
estas reflexões amargas a propósito da reação de muitos desses
seres humanos a uma entrevista da apresentadora Xuxa, veiculada neste
domingo, no Fantástico. Ela contou ter sido abusada sexualmente
quando criança, até os 13 anos. Por três homens.
A
escória da humanidade, muito bem espalhada em terras brasileiras,
logo se pôs a fazer piadinhas. Troças. Comentários jocosos.
Irônicos. Debochados. Céticos.
A
escória ri o seu riso nervoso. Não se trata de um riso saudável,
libertador. Mas da própria expressão da barbárie perpetuada, do
mencionado fracasso histórico (de um ponto de vista igualitário),
de uma sociedade essencialmente doente. E culpada.
Deploro
todos os males do capitalismo, sua essência espoliadora. Mas sigo
longe de acreditar que a exploração do homem pelo homem seja uma
exclusividade desse sistema econômico. Este é apenas uma
consequência da incrível capacidade que os piores exemplares de
nossa espécie têm para se perpetuar – seja em regime capitalista,
feudal, escravocrata ou socialista.
Esses
predadores dos próprios semelhantes espalham-se com o sorriso no
rosto.
Cada
pessoa que ri do drama de Xuxa é, ao mesmo tempo, o carrasco e o
traficante de escravos, é Gengis Khan e Paulo Maluf, Adolf Hitler e o
empresário boçal da próxima esquina, Stalin e o deputado patife, é o invasor, o espoliador, o
assassino. E é também o estuprador - o homem que abusa.
Essas
pessoas sabem disso. Sabem que são esse projeto falido. Não
racionalmente, mas sabem. Por isso esse riso nervoso.
Esse
riso de cumplicidade, de anuência, de quem não conseguiu salvar as
próprias crianças, esse riso de derrota disfarçada de vitória.
Esse escárnio de quem não acredita que algo possa mudar para melhor –
esse riso que acusa a falta de utopia.
É
pensando em todas essas bocas escancaradas, cheias de dentes, que
invoco Raul Seixas. Ele também fez seu Aleph, o ponto de todos os
pontos, consagrado na literatura pelo argentino Jorge Luis Borges.
Está na música Gita: “Eu sou a luz das estrelas/eu sou a cor do luar..”
Essas
pessoas tão risonhas são o eclipse das estrelas.
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