segunda-feira, 9 de julho de 2012

Os homens e o mar: depoimento emocionado de pescador resume a história do Brasil
 
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
 
Tem de ser visto. E divulgado. O depoimento do pescador Alexandre Anderson, em ato na OAB no fim de junho, tem um valor histórico que ainda não foi percebido pela sociedade brasileira – nem mesmo por seus resquícios de esquerda.
 
Se Ernest Hemingway consagrou a história de “O Velho e o Mar”, temos na matança de pescadores na Baía de Guanabara a síntese – literária e histórica – de um país violento.
 
Em pleno Rio de Janeiro, jovens pescadores como Almir e João estão sendo sistematicamente mortos por lutarem por seus direitos. “Nós só queremos ficar no mar”, diz Anderson no vídeo. Chorando. “Por que nos perseguem?”
 
O depoimento resume uma história de espoliações. E de assassinatos. De um país ainda majoritariamente litorâneo – e que faz vistas grossas para os 500 anos de pilhagem. De pirataria. Sintetiza ainda o grito possível dos excluídos – entre lágrimas.
 
Anderson representa a Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar). Aqui ele fala emocionado sobre o assassinato dos companheiros Almir Nogueira do Amorim (40 anos) e João Luiz Telles Penetra (45 anos), o Pituca. Diz que sabe quem são os mandantes – e que eles também estão dentro do governo estadual, do governo municipal.
 
A fala do pescador foi feita apenas seis dias após os homicídios, no dia 23 de junho – enquanto o mundo olhava para a Rio+20. Dias antes, no dia 18, Almir e Pituca estavam em uma mesa na Cúpula dos Povos. Enquanto a ministra do Meio Ambiente atacava não empresários ou latifundiários, mas ambientalistas.
 
Seguem o vídeo, divulgado pela Anistia Internacional (que move uma ação urgente em defesa dos pescadores), e a transcrição, feita pelo blog:


“Vocês são homens do mar, então vão morrer no mar”

“Quando a gente enterra um companheiro vai um pedaço de nós ali dentro. A gente está enterrando gente, nossa alma está ali dentro também. Até a nossa alma de luta nos tiram. Falei outro dia num discurso: 'Podem acabar com nossa vida, mas nossa alma de luta não. E estão levando nossa alma de luta sim, gente'.

O mais triste disso tudo é você ver os companheiros mortos. O mais triste disso tudo é que ninguém faz nada. Só vocês. Mas parece que é muito pouco. Parece que quem deveria fazer, sabendo que deveria fazer, não faz.

Nós sepultamos o Almirzinho. Eu vi todo aquele caixão lacrado, pesado de água. Não um pescador, não um de nós ali dentro. Eu vi o nosso sonho ali dentro, junto. Eu vi nossa luta dentro de um Pituca, em Paquetá. Ele foi enterrado com uma foto segurando um peixe, gente. Jesus buscou um pescador para acompanhá-lo.

Por que nos perseguem? Nós só queremos ficar no mar.

Nós sabemos que foi um aviso. Nós temos certeza que foi um aviso. Hoje a Baía de Guanabara está em luto. Os Homens do Mar estão em luto. Uma coisa que eu não vi, desde que fundamos os Homens do Mar: estamos com medo. Não vimos isso, nem com a morte do Paulo [Santos Souza, em 2009], nem com o assassinato do Márcio [Amaro, em 2010].

Hoje temos medo. Medo porque estamos sendo mortos, amarrados no próprio barco. Medo porque eles foram mortos, respirando a água do seu próprio mar. Dando um sinal: 'Vocês são homens do mar? Então vão morrer no mar!”. Eles fizeram isso com o Paulo? Não, mataram na frente da família. Fizeram com o Márcio? Mataram na frente da família. Agora não: 'Vocês são homens do mar, vão morrer no mar”, esse é o recado que estamos recebendo. 'Continua, que vocês vão todos ser mortos'.

Eu não sei o papel daqui pra frente. Meus companheiros estão calados. A Baía de Guanabara está calada. Os barcos não saíram pro mar, desde segunda-feira. Os barcos estão na areia da praia. A tristeza está nos nossos olhos. Na nossa família. E a gente olha pra um lado, olha pro outro, e (…) não é como antigamente.

Não foi uma morte, gente. Isso é uma crueldade. Eles amarraram nosso companheiro, deixaram ele se afogar lentamente. Até as 11 da manhã de domingo achamos que estavam desaparecidos. Toda uma comunidade, ninguém imaginou que eles seriam assassinados.

Eles estavam justamente no caminho daquele maldito pier do Comperj [o maior complexo petroquímico do Rio]. Eles foram mortos na água que drena o [Rio] Guaxindiba, que é alvo da nossa luta, de preservar aquele meio ambiente. Nós fazemos parte do meio ambiente. Quando eu falei que nós, pescadores, somos parte da Baía de Guanabara, isso é verdade, mas a gente não quer morrer respirando a água da Baía de Guanabara.

Está muito triste pra gente. Muito triste. Eu não estou mais dormindo. Eu disse esta semana em reunião na Ahomar que, se tiver de morrer mais alguém, que morra eu, que seja um bom preço. Vão acabar com a Ahomar, gente, vão acabar com o grupo. Éramos onze, nós somos oito. Somos oito, estão matando o grupo da Ahomar, estão nos matando.

Eu não quero acreditar que seja uma coisa particular. Eu queria acreditar que fosse alguma coisa individual, um problema individual. Mas não está indo para esse lado. Eu vi lágrima nos olhos do curraleiro [há rivalidade entre pescadores artesanais e curraleiros], quando eu perguntei ontem: 'Vocês viram alguma coisa?'. 'Alexandre, nós não matamos o companheiro, Alexandre”. Eu falei: 'Eu sei disso'. 'Estão botando a culpa na gente, esses malditos desses jornais. Única coisa que a gente viu foi aquele navio maldito, que passa sem nome, sem placa, sem identidade, quase afundando nossos barcos' .

Eu peço que as autoridades investiguem. E investiguem muito. Isso serviu de recado para alguém. Já recebemos o recado. A gente não vai mais para o mar, não. Eles conseguiram o que queriam, nos tiraram da água. Tiraram os homens do mar da sua casa.

Há alguns anos atrás nós falávamos, eu mesmo usei o mar para proteção. Quando dava alguma coisa de ruim na nossa praia a gente corria pro mar. Hoje a gente tem como correr pro mar, onde a gente vai correr? Hoje só tem o caminho do cemitério pra gente.

Peço às autoridades deste país que investiguem a morte do Pituca e do Almirzinho. Que investiguem a morte de Paulo, que investiguem a morte de Márcio. Vão encontrar que tudo tem uma grande relação. Desde que nós começamos a fazer a parte da campanha contra o uso industrial do Guaxindiba começamos a receber muita ameaça. Nesse mesmo momento o DPO [Destacamento de Policiamento Ostensivo] da Praia de Mauá fechou, 35 mil pessoas ficaram sem policiamento. O único DPO da Praia de Mauá. Nesse mesmo momento começamos a ser perseguidos.

Numa dessas perseguições a viatura que estava comigo, perseguida, atirou contra os malfeitores que vinham, não identificados. Nessa mesma época os diretores começaram a falar que estavam sendo visitados por homens armados.

Nós sabemos quem são. Sabemos de onde está vindo. São pessoas que ganham muito dinheiro com todo esse processo de industrialização da Baía de Guanabara. São pessoas que trabalham na segurança, fornecendo água, transporte aquaviário, transporte terrestre para esses empreendimentos. São pessoas que estão dentro do governo do estado. São pessoas que estão dentro do governo municipal. São pessoas que estão dentro da segurança pública local.

Nós estamos alertando. 'Vai morrer mais gente, está muito difícil'. Eu aviso ao programa [aponta para alguém], está muito difícil. Apareceu um barco, tem dois meses, todo perfurado de balas. O pescador ficou quatro dias na porta da delegacia local e não conseguiu fazer um R.O. [Registro de Ocorrência] No final o cara falou: 'Vou te prender. Vai embora daqui'. Ficou um bicho. O barco está lá todo perfurado.

Nós temos histórico de barcos todos perfurados de bala, à noite. Nós escutamos estampidos de tiros. Antigamente a gente escutava barulho à noite, sabe do quê? Da última barca de Paquetá, quando ia para o Rio de Janeiro. Hoje a gente escuta estampido de tiro de fuzil, de pistola.

O pescador está sendo expulso. Agora vem o jornal e diz que não tem relação, que o pescador é que está matando pescador. Onde, gente? Falaram isso do Paulo, no começo: 'É conflito de pesca'. Daqui a pouco vão botar a culpa neles, que eles é que se amarraram e se suicidaram. Cada um amarrou o outro.

Eu estive com os curraleiros de Magé, curraleiro que tinha mais dinheiro está com a casa trincada. O que conseguiu ganhar algum dinheiro o cara tem um Chevette 94. Eles estão chorando, chorando de indignação. Eu estive com o pessoal de Paquetá, eles não querem nem falar. Pessoal só faz assim, aponta na direção dos terminais, aqueles malditos terminais. Aponta na direção da Ahomar.

Essa luta deu muita morte gente, vamos parar. Nessa luta não estamos lutando com o Golias, não. Estamos lutando com o próprio capeta, meu irmão. Não estão lutando com Golias. Golias, Davi ganhou. A gente não ganha mais essa luta não.

Estou muito triste. Estou achando que vou largar tudo. Não quero mais ver companheiros mortos. Não quero enterrar mais ninguém dos Homens do Mar. Não quero. Vou fazer um trato. Se isso não der um encaminhamento, eu vou largar a luta, vou largar o grupo. Estou cansado de enterrar, estou cansado de avisar: 'Estão matando, gente. Estão perseguindo, estão na minha porta'. Estou cansado de ver meu muro cheio de buraco de bala, estou cansado de ver barco de pescador cheio de buraco de bala, estou cansado de ver mulher de pescador dizer: 'Meu filho, você vai morrer'.

Eu não posso ver mais meus filhos. Os companheiros que estão do meu lado não estão mais aguentando também. Será que neste país aqui a gente está vivendo um estado democrático, gente? Isso é pior que a ditadura. Está aqui do lado. Está tudo acontecendo aqui do lado.

Não tem jeito. Eu não ia falar sobre isso. Mas não estou conseguindo. Quem matou Paulo, quem matou Márcio, quem matou o João, que é o Pituca, quem matou o Almirzinho, eu queria dar o recado: 'Para. Para que a gente vai embora'.” (Alexandre Anderson, presidente da Associação de Homens e Mulheres do Mar)
 

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