terça-feira, 10 de julho de 2012

Fantástico celebra superação “da natureza”, mas ignora planeta econômico
 
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
 
O repórter Clayton Conservani, do Fantástico, obteve uma especialização “radical”. Ele sai pelo mundo "desafiando" a natureza. No domingo o programa dedicou mais de meia hora à sua suposta façanha de correr por centenas de quilômetros no Saara. Ele chegou a chamar de “herói” um colega que, como ele, conseguiu atingir o objetivo.
 
A mensagem embutida é que cabe ao homem superar as dificuldades "da natureza". Há que se seguir em frente, apesar dos pés em carne viva. É preciso se sacrificar no Saara “em nome da filha”, do outro lado do oceano, porque ele “treinou” e é um marido sensível e dedicado.
 
O mesmo programa falava (em poucos segundos) de mais de cem mortos por inundação na Rússia. O programa poderia ter informado que nem sempre se pode desafiar a natureza. Mas foi tudo muito rapidinho, pois era preciso falar das peripécias do repórter no Saara. Ficamos sabendo que o governo russo abriu uma investigação. E só.
 
Na Baía de Guanabara, pescadores brasileiros estão sendo mortos apenas por insistirem em ir ao mar. Para trabalhar. Estão contrariando interesses econômicos. Nada de recompensa por desafiarem a natureza numa atividade ancestral. Dois deles foram amarrados ao barco, no fim de junho. Morreram afogados. Nos três últimos anos mais dois foram assassinados. Outros, ameaçados.
 
Por que a Globo não manda Conservani pescar na Guanabara? E por que a emissora não reserva alguns minutos para defender a vida de pescadores?
 
O presidente da Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar), Alexandre Anderson, fez um depoimento emocionado, no fim de junho. Por conta dos amigos mortos, e das ameaças que o motivam a desistir de ir ao mar. Ele também falou dos filhos – e dos filhos de colegas ameaçados. Em nome dos filhos (e da vida), pensa que já não poderá mais pescar em seu território. Quer desistir.
 
A mesma televisão que, com câmeras indiscretas, invade o rosto de celebridades para mostrar suas lágrimas (por qualquer apelo emocional barato) não mostra o depoimento emocionado de Anderson, em fala na OAB do Rio. O depoimento tem larga importância econômica. Cultural. Política. Literária. Social. É um documento que valoriza o ser humano, em meio à adversidade. É um depoimento fantástico.
 
No entanto, os telespectadores são obrigados a assistir ao pé de Clayton Conservani em carne viva. Condoem-se de suas dificuldades no deserto, compartilham de sua necessidade de “superação”.
 
E os mortos na Guanabara? Não treinaram o suficiente? Não são “heróis”? E o adolescente de 15 anos que foi morto há alguns dias, também no Rio, morto e empalado, com os olhos arrancados, apenas por ser homossexual, ele não estava apto a enfrentar “a natureza”? Quantos segundos esse ser humano recebeu de nossa atenção?
 
Estamos em julho. Não é época de inundação no Brasil. E sim na Rússia. Em janeiro os jornais falarão burocraticamente dos “desastres” causados pela chuva – e não pela ocupação irresponsável dos solos urbanos. Não seremos informados que, por motivos econômicos, pela imposição do sistema, milhões de seres humanos são obrigados a morar precariamente em encostas, em locais de risco.
 
Mas, vejam só, lá vem a perigosíssima tempestade de areia no Saara. Clayton Conservani vai enfrentá-la e nos redimir dos pecados.
 
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