Fantástico
celebra superação “da natureza”, mas ignora planeta econômico
por
ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
O repórter Clayton
Conservani, do Fantástico, obteve uma especialização “radical”.
Ele sai pelo mundo "desafiando" a natureza. No domingo o
programa dedicou mais de meia hora à sua suposta façanha de correr
por centenas de quilômetros no Saara. Ele chegou a chamar de “herói”
um colega que, como ele, conseguiu atingir o objetivo.
A mensagem embutida é
que cabe ao homem superar as dificuldades "da natureza". Há
que se seguir em frente, apesar dos pés em carne viva. É preciso se
sacrificar no Saara “em nome da filha”, do outro lado do oceano,
porque ele “treinou” e é um marido sensível e dedicado.
O mesmo programa falava
(em poucos segundos) de mais de cem mortos por inundação na Rússia.
O programa poderia ter informado que nem sempre se pode desafiar a
natureza. Mas foi tudo muito rapidinho, pois era preciso falar das
peripécias do repórter no Saara. Ficamos sabendo que o governo
russo abriu uma investigação. E só.
Na Baía de Guanabara,
pescadores brasileiros estão sendo mortos apenas por insistirem em ir
ao mar. Para trabalhar. Estão contrariando interesses econômicos. Nada de
recompensa por desafiarem a natureza numa atividade ancestral. Dois
deles foram amarrados ao barco, no fim de junho. Morreram afogados. Nos três últimos anos mais dois
foram assassinados. Outros, ameaçados.
Por que a Globo não
manda Conservani pescar na Guanabara? E por que a emissora não
reserva alguns minutos para defender a vida de pescadores?
O presidente da
Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar), Alexandre
Anderson, fez um depoimento emocionado, no fim de junho. Por conta
dos amigos mortos, e das ameaças que o motivam a desistir de ir ao
mar. Ele também falou dos filhos – e dos filhos de colegas
ameaçados. Em nome dos filhos (e da vida), pensa que já não
poderá mais pescar em seu território. Quer desistir.
A mesma televisão que,
com câmeras indiscretas, invade o rosto de celebridades para mostrar
suas lágrimas (por qualquer apelo emocional barato) não mostra o depoimento emocionado de Anderson, em fala na OAB do Rio.
O depoimento tem larga importância econômica. Cultural. Política.
Literária. Social. É um documento que valoriza o ser humano, em
meio à adversidade. É um depoimento fantástico.
No entanto, os
telespectadores são obrigados a assistir ao pé de Clayton
Conservani em carne viva. Condoem-se de suas dificuldades no deserto,
compartilham de sua necessidade de “superação”.
E os mortos na
Guanabara? Não treinaram o suficiente? Não são “heróis”? E o
adolescente de 15 anos que foi morto há alguns dias, também no Rio,
morto e empalado, com os olhos arrancados, apenas por ser homossexual, ele não estava apto a
enfrentar “a natureza”? Quantos segundos esse ser humano recebeu
de nossa atenção?
Estamos em julho. Não
é época de inundação no Brasil. E sim na Rússia. Em janeiro os
jornais falarão burocraticamente dos “desastres” causados pela
chuva – e não pela ocupação irresponsável dos solos urbanos.
Não seremos informados que, por motivos econômicos, pela imposição
do sistema, milhões de seres humanos são obrigados a morar
precariamente em encostas, em locais de risco.
Mas, vejam só, lá vem a
perigosíssima tempestade de areia no Saara. Clayton Conservani vai enfrentá-la e
nos redimir dos pecados.
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