quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Indignação e barbárie: as mortes de cachorros escandalizam mais?

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Longe de mim questionar a indignação diante das violências contra cachorros – ou quaisquer animais. Ela é mais do que legítima e mostra que nem a tudo estamos habituados neste mundo pleno de barbárie. Único ponto a ser desenvolvido é o da indiferença seletiva: por que a morte de camponeses e indígenas, a violência contra quilombolas ou moradores de favelas não gera o mesmo clamor?

Claro, trabalho dos mais árduos para sociólogos, psicólogos, cientistas sociais de um modo geral. Mas me aventuro a dizer que, no caso dos animais espancados, os inimigos não são tão ameaçadores assim – no sentido de que atacá-los constituirá um consenso e nada ocorrerá a quem faça isso. É como se não tivéssemos nada a perder.

Em contrapartida, o ataque a um ônibus escolar indígena, no Mato Grosso do Sul, ou a morte de dois líderes agroextrativistas no Pará, ambos os casos ocorridos este ano (entre centenas de outros exemplos), não geraram nem 10% das exclamações feitas em relação ao cachorro de Goiânia. Os motivos talvez sejam políticos – e econômicos.

Vou repetir a minha linha de pensamento para que não haja distorções: eu também participo da indignação em relação ao yorkshire espancado e morto pela enfermeira goiana - aquele flagrado em vídeo que ocupou a internet nestes meados de dezembro. Deploro. Choco-me. Choro.

O que questiono (e eu disse que seria repetitivo) é a desproporção entre essa justa revolta e a indiferença – injusta - em relação a seres humanos igualmente (e sistematicamente) vítimas cotidianas de violência.

Ocorre que, sem ser necessário desenvolver a fundo conceitos marxistas, as violências contra esses grupos sociais citados (e eu já citei que entre eles estão crianças) têm motivações também econômicas. Não tenho a menor dúvida em relação a sadismos de policiais, jagunços, fazendeiros – mas, sim, existe nesses casos um componente de luta de classes. Isto por um lado. De disputa por territórios (não necessariamente capitalistas, aliás) por outro.

Desta forma, o indignado no sofá fica em uma razoável zona de conforto. Pode dar vazão à sua indignação apenas quando os seres humanos ameaçados fazem parte de seu círculo social imediato; ou seja, quando ele mesmo corre risco. E pode ficar exasperado quando um cachorro é arrastado por seu dono, até que morra, numa cidade do interior paulista.

Esse cachorro não está no seu circuito econômico (como a mão-de-obra dos espoliados), nem mesmo se destina à sua mesa – e não gera qualquer necessidade adicional de comprometimento político. Não há embate ideológico.

Vale lembrar, aqui, que os ruralistas vaiaram no plenário da Câmara, este ano, durante a votação do Código Florestal, vaiaram estrondosamente a notícia de que dois líderes extrativistas tinham sido mortos no Pará. O interesse político, no caso, se sobrepõs à capacidade de indignação. De seres humanos que talvez tenham ficado chocados com a agonia do yorkshire.

Todo esse mecanismo, diga-se, não parte de decisões individuais, conscientes, mas de um código de valores perpetuado no dia a dia – pelos jornais, pelo sistema, pelo medo de mudanças. Não estou personalizando a crítica, demonizando os indiferentes; apenas tentando entender as contradições.

Em outras palavras, é como se a nossa indignação girasse em torno não das reaparições da barbárie, mas do rompimento de determinados pactos culturais e sociais. Não necessariamente sacramentados em leis. Uma indignação ritualística, psicologicamente necessária – mas politicamente precária.

Muita coisa sórdida, assim, é simplesmente aceita – ignorada, complacentemente escanteada do rol de indignações. Quando não aplaudida. E muita coisa sórdida gera movimentos incríveis de súbita solidariedade – desde que essa solidariedade, evidentemente, não ameace os códigos anteriormente citados. 

“Eu não vou ver esse vídeo violento, esse cachorro sendo torturado, eu não vou” – mas e esses estudantes e sem-teto folgados, hem? Borracha neles!

LEIA MAIS:
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5 comentários:

Luna Rosa Inlladrys disse...

Li e concordo em muitas coisas. Concordo que se o Brasileiro usar a mesma força que está usando no caso do Yorkshire coisas como Belo Monte por exemplo, podem ser evitadas. O que eu não tolero (não no seu caso) são as pessoas que não enxergam, não entendem o por que pessoas como eu que amam animais não conseguem mais ficar calados ante a um caso como esse. Lhe convido a ler meu blog e o post Já chega - Não ficaremos mais calados. Nele eu falo justamente do porque estávamos falando tanto. Eu quero sim justiça para aquela monstra, mas eu também quero que esse caso sirva de exemplo para nosso povo que se de fato o povo se unir, podemos sim mudar muita coisa nesse país.

Alceu Castilho, jornalista. disse...

claro, Lunnari. Tomei o cuidado de reiterar que também participo da sua indignação.

Espero que uma luta não invalide as demais - que os defensores de direitos consigam potencializar a causa uns dos outros.

Att, Alceu Castilho

Chi Qo disse...

Estávamos conversando sobre isso na festa de confraternização entre fotógrafos!
É certo que foi uma crueldade que foi feita contra o cãozinho, mas há muita coisa errada acontecendo e que ninguém faz nada!!!

Mariana disse...

É isso aí, Alceu. Concordo com tudo o que você disse.
Sou uma legítima defensora dos animais e entendi perfeitamente que você, em nenhum momento, quis diminuir a gravidade do crime da enfermeira. O crime contra os seres humanos não anula o que é feito contra os animais.

A questão é boa e a comparação deve servir ao debate: por que, nós, seres humanos, não geramos tanta mobilização por outros seres humanos? Usuários de crack, bandidos, estudantes que fumam maconha não merecem compaixão? Índios que estão no lugar errado e na hora errada também não. Qual é o peso e a medida para o julgamento? Pode ser político, sim, mas acho que há um forte cunho social também.

Parece-me que a mobilização vem quando o oprimido é bicho ou criança (seres que não tem lados políticos, não questionam, ainda estão acima de qualquer posicionamento - pense no caso da escola em Realengo) ou quando o choque da imagem é tão grande que não há como fugir (lembre-se do caso da órfã que foi adotada e cruelmente espancada pela procuradora no Rio de Janeiro). O caso só gerou comoção porque foram divulgadas fotos da criança toda machucada. Será que se não houvesse nenhuma imagem a população se revoltaria tanto? Um indiozinho morreu queimado no Maranhão e até agora não li uma linha sobre o assunto...

Beijos,

Mariana

Alceu Castilho, jornalista. disse...

olá, Mariana,

bem lembrados esses casos. Sim, há exemplos de comoção em relação a alguns casos de crianças.

Ainda pretendo voltar a esse assunto do que você chamou (no Facebook) de "abstinência política".

São sempre vários fatores conjugados - e entre eles muita coisa ainda imponderável. Vá entender plenamente o ser humano, não é.

Por ora começo a pensar no conceito de "indignação metonímica". Ou, mais especificamente, aquela que trata da parte pelo todo. Por que tanta indignação contra o Big Brother, por exemplo, e tão pouca em relação à qualidade da TV brasileira como um todo?

Mas ainda vou refletir melhor sobre tudo isso. Bj!