domingo, 18 de dezembro de 2011

Grandes Patifes da Literatura (II)
Juan Pablo Castel

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Comecei a série com Fernando Vidal Olmos, personagem de Ernesto Sabato. Prossigo com o argentino. Desta vez falo de Juan Pablo Castel, “o pintor que matou Maria Iribarne”, em O Túnel (1948).

Castel é o embrião de Vidal Olmos. Personagem obsessivo, que se move a partir de delírios (no caso, ciúmes, sentimento de posse), mas se abraçando a uma suposta racionalidade. Ambas as narrações são em primeira pessoa - o que reforça o tom de delírio dos relatos.

A repetição de Sabato nesta série mostra o quanto o escritor (1911-2011), morto este ano em Buenos Aires, tornou seus romances uma investigação sobre a alma humana.

Neste trecho (o capítulo 2 do livro), Castel mostra seu imenso ceticismo – e desespero:

“Como eu ia dizendo, meu nome é Juan Pablo Castel. Vocês poderão perguntar o que me leva a escrever a história do meu crime (não sei se já disse que vou relatar meu crime) e, sobretudo, a procurar um editor. Conheço bem a alma humana para prever que pensarão em vaidade. Pensem o que quiserem: não ligo a mínima; faz tempo que não ligo a mínima para a opinião e a justiça dos homens. Afinal, sou feito de carne, ossos, cabelo e unhas como qualquer outro homem e acharia muito injusto que exigissem de mim, logo de mim, qualidades especiais; às vezes nos julgamos super-homens, até percebermos que também somos mesquinhos, sujos e pérfidos. Da vaidade não digo nada: creio que ninguém está desprovido desse notável motor do Progresso Humano. Fazem-me rir esses senhores que falam da modéstia de Einstein ou de gente da laia; resposta: é fácil ser modesto quando se é célebre; quer dizer, parecer modesto. Mesmo quando se imagina que ela não existe em absoluto, surge de repente em sua forma mais sutil: a vaidade da modéstia. Quantas vezes esbarramos com esse tipo de indivíduo! Até um homem, real ou simbólico, como Cristo, pronunciou palavras sugeridas pela vaidade ou no mínimo pela soberba. Que dizer de León Bloy, que se defendia da acusação de soberba argumentando que passara a vida servindo a indivíduos que não lhe chegavam aos pés? A vaidade se encontra nos lugares mais inesperados: ao lado da bondade, da abnegação, da generosidade. Quando eu era pequeno e me desesperava em face da idéia de que a minha mãe haveria de morrer um dia (com o passar dos anos, vem-se a saber que a morte não só é suportável, como até reconfortante), não imaginava que ela pudesse ter defeitos. Agora que ela não existe, devo dizer que foi tão boa quanto um ser humano pode chegar a sê-lo. Mas recordo, de seus últimos anos, quando eu já era um homem, como de início era doloroso para mim descobrir sob suas melhores ações um sutilíssimo ingrediente de vaidade ou de orgulho. Algo muito mais ilustrativo aconteceu comigo mesmo quando ela foi operada de um câncer. Para chegar a tempo tive de viajar dois dias inteiros sem dormir. Quando cheguei ao lado de sua cama, seu rosto de cadáver conseguiu sorrir-me levemente, com ternura, e murmurou umas palavras de compadecimento (ela se compadecia  de meu cansaço!). E eu senti dentro de mim, obscuramente, o vaidoso orgulho de ter acudido tão rápido.

Confesso esse segredo para que vejam até que ponto não me julgo melhor que os outros. No entanto, não conto essa história por vaidade. Talvez estivesse disposto a aceitar que há uma dose de orgulho ou de soberba. Mas por que essa mania de querer encontrar explicação para todos os atos da vida? Quando comecei este relato, estava firmemente decidido a não dar explicações de nenhuma espécie. Tinha vontade de contar a história de meu crime e ponto: quem não gostasse, que não lesse. Mas duvido, pois essas pessoas que estão sempre atrás de explicações são justamente as mais curiosas, e acho que nenhuma delas perderia a oportunidade de ler a história de um crime até o final.

Eu poderia calar os motivos que me levaram a escrever estas páginas de confissão; mas, como não estou interessado em passar por excêntrico, direi a verdade, que de resto é bastante simples: pensei que elas poderiam ser lidas por muita gente, já que agora sou famoso; e, embora não tenha ilusões acerca da humanidade em geral, nem dos leitores destas páginas em particular, anima-me a tênue esperança de que alguma pessoa chegue a me entender: MESMO QUE SEJA UMA ÚNICA PESSOA.

“Por quê?”, poderá perguntar-se alguém, “apenas uma tênue esperança, se o manuscrito há de ser lido por tantas pessoas?” Esse é o gênero de perguntas que considero inúteis. E, não obstante, temos de prevê-las, porque as pessoas vivem fazendo perguntas inúteis, perguntas que o exame mais superficial revela desnecessárias. Posso falar até o cansaço e aos gritos para uma assembléia de cem mil russos: ninguém me entenderia. Percebem o que quero dizer?

Existiu uma pessoa que poderia me entender. Mas foi, justamente, a pessoa que matei”.

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Grande Patifes da Literatura (I) - Fernando Vidal Olmos


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