O Aziz geógrafo e o
Aziz professor: histórias de um apaixonado pela USP
A semana da calourada
na Geografia da USP, em 2011, teve seu desfecho numa noite de
sexta-feira, no vão livre do prédio que abriga a História e a
Geografia – um dos mais conhecidos e mais frequentados da Cidade
Universitária. A certa altura da noite um carro para no
estacionamento. Dele desce Aziz Ab'Saber. Sai com dificuldade do
carro e não fala nada. Aguarda a abordagem dos estudantes, que mal
acreditam no que veem. Tiram fotos com o professor – com o ídolo.
Aziz fica alguns minutos e sai. Estivera ali apenas para isso.
Essa cena se
repetia nos anos anteriores. Em 2012, Aziz não cumpriu o ritual. Sua
relação com a Cidade Universitária era muito próxima. Caminhava
pelo campus e estava sempre na biblioteca da FFLCH. Um relato da
estudante Maria Carlotto, publicado ontem no Facebook, é fundamental
para se entender essa relação:
"Ontem, por volta
das 22h, um funcionário da Faculdade de Filosofia passou avisando
aos poucos que restavam que a biblioteca estava fechando. Desci as
escadas e, como sempre, vi o professor Aziz Ab´Saber sentado em uma
mesa de canto lendo, com a ajuda de uma lupa, um livro de quase mil
páginas. As luzes da biblioteca estavam se apagando, mas ele
insistia em continuar, resistindo no limite da desobediência.
Nos
últimos anos, vi essa cena muitas vezes e ontem, por um segundo,
sorri por simpatia daquele professor que não precisava estar ali,
numa quinta-feira de chuva, enfrentando uma tarefa que parecia
superar as suas forças. Hoje à noite cheguei nessa mesma biblioteca
e a mesa estava vazia. Nenhuma nota de falecimento. Tudo funcionava
normalmente, impelido por uma corrente de normalidade que nos oprime
e contra a qual ele dedicou a sua vida, com grandes obras e pequenos
gestos como esse, de resistir diante de um livro, sob uma mesa no
escuro.
Talvez seja o prenúncio dos tempos que se iniciam numa USP que certamente não foi a que ele conheceu."
Talvez seja o prenúncio dos tempos que se iniciam numa USP que certamente não foi a que ele conheceu."
UM GEÓGRAFO CLÁSSICO
O professor André
Martin, chefe do Departamento de Geografia, falou sobre Aziz durante
o velório do geógrafo, no Salão Nobre da FFLCH. Ele conta que Aziz
tinha sido um dos dois escolhidos (ao lado do professor Ariovaldo
Umbelino de Oliveira) para ser entrevistado pelos docentes, para
tomar uma posição – contrária – ao novo projeto de
pós-graduação, imposto pelo reitor João Rodas. Não deu tempo.
“Dificilmente vai
se reproduzir um intelectual dessa envergadura”, afirma Martin,
especialista em geopolítica. “E isso no mundo inteiro. Os métodos
de avaliação do desempenho estão destruindo esses docentes de
formação clássica, capazes de percorrer tanto as ciências
naturais como as ciências sociais”.
Martin considera que a
USP virou o que virou a partir da relação de amizade entre
professores e alunos. “Isso ia além da sala de aula. E também
está se perdendo com esse estilo de avaliação de desempenho. O
projeto da reitoria prevê que o orientador não possa votar na
defesa do orientando”.
Pouco mais novo que
Aziz, o professor aposentado José Pereira de Queiroz Neto conhecia o colega há
mais de 50 anos. Não se lembra se era 1959 ou 1960, em Campinas.
Aziz dava aula na PUC-Campinas. Conheceram-se a partir do geógrafo
Antonio Christofoletti, que viria a ser referência na Unesp de Rio
Claro. Depois, encontraram-se na USP. Ambos como professores. Aziz
fez parte de sua banca de doutorado; presidiu a banca de examinadores
sua tese de livre-docência; presidiu a banca para o cargo de
professor-adjunto; e, finalmente, a banca para se tornar
professor-titular – o ápice da carreira.
“Ele tinha uma
capacidade intelectual imensa”, atesta Queiroz. “Lia muito,
estava sempre a par do que se fazia por aí afora. E tinha um
raciocínio rápido. Acabava muitas vezes levando vantagem. Tinha
mais cabeça e conhecimento. E isso até agora. Uma cabeça
invejável”.
Queiroz aponta como
momento-chave aquele em que Aziz, de referência nacional na
geomorfologia, torna-se especialista em questões ambientais. “Nesse
momento ele vira uma espécie de grande farol, apontando caminhos que
os geógrafos podem seguir, no sentido de resolver os problemas da
sociedade. Ele era o que, nos Estados Unidos, se chamaria de
radical.”
André Martin considera
que dificilmente se repetirá a trajetória de alguém que, como
Aziz, fazia um “desvendamento”, um “palmilhar do território”.
“Difícil pensar numa pessoa que tenha acumulado tanto conhecimento
empírico, com tantas viagens e anotações de campo”.
PROFESSOR AZIZ
José Queiroz não teve
aula com Aziz. Ao lado dele, vários ex-alunos – todos fizeram
questão de prestar homenagem ao mestre, no dia de sua morte –
rasgavam elogios ao professor de geomorfologia.
Archimedes Perez Filho, professor da Unicamp e coordenador da área de Geociências da Fapesp, teve aula com Aziz nos anos 70. Lembra-se que ele tinha uma lucidez muito grande na explicação dos fenômenos.
Archimedes Perez Filho, professor da Unicamp e coordenador da área de Geociências da Fapesp, teve aula com Aziz nos anos 70. Lembra-se que ele tinha uma lucidez muito grande na explicação dos fenômenos.
- Ele fechava o olho e,
com as mãos, ia falando, descrevendo as paisagens. Sem conhecer as
paisagens a gente ia vivenciando.
Aziz também desenhava
no quadro-negro. Antonio Carlos Robert Moraes conta que ele utilizava
giz de várias cores. Um para os sedimentos, outro para as rochas, e
assim por diante. Ao falar das erosões, utilizava o apagador. “Era
como um desenho animado”, diz Moraes.
Visivelmente incomodado
com as transformações da USP, que impedem a formação de
intelectuais como Aziz, o professor André Martin identifica algo que
pode ser replicado: a combinação entre saber científico e postura
ética.
Para ele esse será o
principal legado de Aziz Ab'Saber. “Fazer outro Aziz é difícil. É
que nem Pelé e Garrincha. Mas esse engajamento com a causa da
humanidade é um exemplo que permanece. Isso fica”.
Alceu
Luís Castilho (@alceucastilho)
LEIA MAIS: Adeus a Aziz Ab'Saber afirma seu papel na história políticado Brasil
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