sábado, 17 de março de 2012

O Aziz geógrafo e o Aziz professor: histórias de um apaixonado pela USP
 
A semana da calourada na Geografia da USP, em 2011, teve seu desfecho numa noite de sexta-feira, no vão livre do prédio que abriga a História e a Geografia – um dos mais conhecidos e mais frequentados da Cidade Universitária. A certa altura da noite um carro para no estacionamento. Dele desce Aziz Ab'Saber. Sai com dificuldade do carro e não fala nada. Aguarda a abordagem dos estudantes, que mal acreditam no que veem. Tiram fotos com o professor – com o ídolo. Aziz fica alguns minutos e sai. Estivera ali apenas para isso.
 
Essa cena se repetia nos anos anteriores. Em 2012, Aziz não cumpriu o ritual. Sua relação com a Cidade Universitária era muito próxima. Caminhava pelo campus e estava sempre na biblioteca da FFLCH. Um relato da estudante Maria Carlotto, publicado ontem no Facebook, é fundamental para se entender essa relação:
 
"Ontem, por volta das 22h, um funcionário da Faculdade de Filosofia passou avisando aos poucos que restavam que a biblioteca estava fechando. Desci as escadas e, como sempre, vi o professor Aziz Ab´Saber sentado em uma mesa de canto lendo, com a ajuda de uma lupa, um livro de quase mil páginas. As luzes da biblioteca estavam se apagando, mas ele insistia em continuar, resistindo no limite da desobediência.
 
Nos últimos anos, vi essa cena muitas vezes e ontem, por um segundo, sorri por simpatia daquele professor que não precisava estar ali, numa quinta-feira de chuva, enfrentando uma tarefa que parecia superar as suas forças. Hoje à noite cheguei nessa mesma biblioteca e a mesa estava vazia. Nenhuma nota de falecimento. Tudo funcionava normalmente, impelido por uma corrente de normalidade que nos oprime e contra a qual ele dedicou a sua vida, com grandes obras e pequenos gestos como esse, de resistir diante de um livro, sob uma mesa no escuro.

Talvez seja o prenúncio dos tempos que se iniciam numa USP que certamente não foi a que ele conheceu."

 
UM GEÓGRAFO CLÁSSICO
 
O professor André Martin, chefe do Departamento de Geografia, falou sobre Aziz durante o velório do geógrafo, no Salão Nobre da FFLCH. Ele conta que Aziz tinha sido um dos dois escolhidos (ao lado do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira) para ser entrevistado pelos docentes, para tomar uma posição – contrária – ao novo projeto de pós-graduação, imposto pelo reitor João Rodas. Não deu tempo.
 
“Dificilmente vai se reproduzir um intelectual dessa envergadura”, afirma Martin, especialista em geopolítica. “E isso no mundo inteiro. Os métodos de avaliação do desempenho estão destruindo esses docentes de formação clássica, capazes de percorrer tanto as ciências naturais como as ciências sociais”.
 
Martin considera que a USP virou o que virou a partir da relação de amizade entre professores e alunos. “Isso ia além da sala de aula. E também está se perdendo com esse estilo de avaliação de desempenho. O projeto da reitoria prevê que o orientador não possa votar na defesa do orientando”.
 
Pouco mais novo que Aziz, o professor aposentado José Pereira de Queiroz Neto conhecia o colega há mais de 50 anos. Não se lembra se era 1959 ou 1960, em Campinas. Aziz dava aula na PUC-Campinas. Conheceram-se a partir do geógrafo Antonio Christofoletti, que viria a ser referência na Unesp de Rio Claro. Depois, encontraram-se na USP. Ambos como professores. Aziz fez parte de sua banca de doutorado; presidiu a banca de examinadores sua tese de livre-docência; presidiu a banca para o cargo de professor-adjunto; e, finalmente, a banca para se tornar professor-titular – o ápice da carreira.
 
“Ele tinha uma capacidade intelectual imensa”, atesta Queiroz. “Lia muito, estava sempre a par do que se fazia por aí afora. E tinha um raciocínio rápido. Acabava muitas vezes levando vantagem. Tinha mais cabeça e conhecimento. E isso até agora. Uma cabeça invejável”.
 
Queiroz aponta como momento-chave aquele em que Aziz, de referência nacional na geomorfologia, torna-se especialista em questões ambientais. “Nesse momento ele vira uma espécie de grande farol, apontando caminhos que os geógrafos podem seguir, no sentido de resolver os problemas da sociedade. Ele era o que, nos Estados Unidos, se chamaria de radical.”
 
André Martin considera que dificilmente se repetirá a trajetória de alguém que, como Aziz, fazia um “desvendamento”, um “palmilhar do território”. “Difícil pensar numa pessoa que tenha acumulado tanto conhecimento empírico, com tantas viagens e anotações de campo”.
 
PROFESSOR AZIZ
 
José Queiroz não teve aula com Aziz. Ao lado dele, vários ex-alunos – todos fizeram questão de prestar homenagem ao mestre, no dia de sua morte – rasgavam elogios ao professor de geomorfologia.

Archimedes Perez Filho, professor da Unicamp e coordenador da área de Geociências da Fapesp, teve aula com Aziz nos anos 70. Lembra-se que ele tinha uma lucidez muito grande na explicação dos fenômenos.

 
- Ele fechava o olho e, com as mãos, ia falando, descrevendo as paisagens. Sem conhecer as paisagens a gente ia vivenciando.
 
Aziz também desenhava no quadro-negro. Antonio Carlos Robert Moraes conta que ele utilizava giz de várias cores. Um para os sedimentos, outro para as rochas, e assim por diante. Ao falar das erosões, utilizava o apagador. “Era como um desenho animado”, diz Moraes.
 
Visivelmente incomodado com as transformações da USP, que impedem a formação de intelectuais como Aziz, o professor André Martin identifica algo que pode ser replicado: a combinação entre saber científico e postura ética.
 
Para ele esse será o principal legado de Aziz Ab'Saber. “Fazer outro Aziz é difícil. É que nem Pelé e Garrincha. Mas esse engajamento com a causa da humanidade é um exemplo que permanece. Isso fica”.
 
NO TWITTER:
@blogOutroBrasil
 

NO FACEBOOK:

Nenhum comentário: