O abandono de crianças
em SP e a fábula do Pequeno Polegar
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Em São Pulo, na noite deste domingo, seis crianças foram libertadas pela polícia de uma situação de risco. As mais velhas (3, 5 e 6 anos) estavam revirando o lixo do apartamento, em busca de comida. Outras três nem isso podiam fazer: elas têm apenas 7 meses (um casal de gêmeos) e 8 meses. As mães estavam num bar, vendendo e tomando cerveja, na região da Bela Vista.
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Em São Pulo, na noite deste domingo, seis crianças foram libertadas pela polícia de uma situação de risco. As mais velhas (3, 5 e 6 anos) estavam revirando o lixo do apartamento, em busca de comida. Outras três nem isso podiam fazer: elas têm apenas 7 meses (um casal de gêmeos) e 8 meses. As mães estavam num bar, vendendo e tomando cerveja, na região da Bela Vista.
Pensei na fábula do
Pequeno Polegar ao ver essa notícia no Bom Dia, Brasil, da Rede
Globo. Nem todo mundo se lembra da fábula – candidata à mais
horrível de todas. Vejamos.
Pai, mãe e sete filhos
moram no campo e estão passando fome. A decisão dos pais é a
seguinte: deixaremos as sete crianças no bosque. Deus decidirá o
que fazer com elas. E nós nos salvaremos. Pequeno Polegar consegue
voltar uma vez, mas não a segunda. Depois ele e os irmãos vão parar
na casa do ogro, que come criancinhas, mas consegue enganá-lo – o
ogro acaba confundindo-os com as próprias filhas.
Inicialmente pensei em
dizer que a vida se repete como fábula. Mas não: ela consegue
piorá-la. Na visão de mundo da época, a história de Pequeno Polegar é
menos horrível do que parece. A certa altura (leio aqui o relato de
Charles Perrault), a mãe se pergunta, após abandonar os filhos:
“Onde estarão os meus pobres meninos?”
Nesse momento eles chegam e são recebidos com grande alegria pelos pais. Depois seriam mandados de novo para o bosque. Mas a reação dos genitores mostra que a solução encontrada – deixar a Deus a solução para o caso – era algo plausível para a época. Não se tratava exatamente de uma negligência, conforme a mentalidade reinante. (Embora, claro, sigamos achando horrível.)
Nesse momento eles chegam e são recebidos com grande alegria pelos pais. Depois seriam mandados de novo para o bosque. Mas a reação dos genitores mostra que a solução encontrada – deixar a Deus a solução para o caso – era algo plausível para a época. Não se tratava exatamente de uma negligência, conforme a mentalidade reinante. (Embora, claro, sigamos achando horrível.)
Voltando para o século
21 e para São Paulo, temos outra mentalidade. Valores muito
diversos, um sistema de seguridade social e de segurança alimentar
muito distintos. Temos um sistema que permite 1 bilhão de pessoas
passando fome. E temos a implosão da seguridade social, diante da
crise econômica mundial, nos poucos países em que ela efetivamente
deu certo, durante algumas décadas.
Ora, direis: as duas mães que abandonaram as crianças na Bela Vista estão alguns degraus abaixo na escala de descaso. Sim, admito. Mas as duas mães que estavam no bar atendiam também aos apelos da indústria de bebidas e do prazer a qualquer custo. Não se tratam de casos absolutamente isolados. Já soube de mulheres em melhores condições financeiras que deixaram filhos sozinhos em casa para irem até a balada.
Ora, direis: as duas mães que abandonaram as crianças na Bela Vista estão alguns degraus abaixo na escala de descaso. Sim, admito. Mas as duas mães que estavam no bar atendiam também aos apelos da indústria de bebidas e do prazer a qualquer custo. Não se tratam de casos absolutamente isolados. Já soube de mulheres em melhores condições financeiras que deixaram filhos sozinhos em casa para irem até a balada.
Não estou querendo
dizer que apenas o capitalismo (e sua fábrica de desejos nem sempre
legítimos) é o culpado por tudo. Mas que se trata de um sistema
insano, isso sim. Se alguém contar a história desse abandono daqui
a alguns séculos ela talvez soe mais absurda que o relato do Pequeno
Polegar contado por Perrault. Ou alguém imagina os pais do Pequeno
Polegar abandonando os sete filhos para irem a um baile?
Ocorre-me também um
relato feito no sábado por um estudante de Medicina. Em Santa Rosa,
no Acre, 20 crianças morreram de diarreia. Diante das condições
nas aldeias chegaram a distribuir 160 filtros de água. Pouco
adiantou, pois os índios não sabiam ler as instruções. Apenas 20
entre os 160 foram instalados. Numa aldeia Madjá os filtros estavam
instalados com a vela ao contrário.
Conto também esse caso
para perguntar: quem são os ogros dessa história? O papel dos pais
ganha nuances em cada caso: mais culpa, menos culpa. E o papel do
poder público? Ou o do sistema econômico que ainda permite a morte
em escala de milhões de crianças pelo mundo, em nome do eterno pagamento de juros? Isso é uma "civilização"? Quem é mesmo o ogro
que mata criancinhas?
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