terça-feira, 13 de novembro de 2012

Cabras marcadas para morrer

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

José Roberto Guzzo já foi descrito como um dos jornalistas mais importantes do país. Assim o definiu um profissional respeitável, como Paulo Nogueira. O sucessor de Guzzo no comando de Veja, porém, Mario Sergio Conti, caminhou no sentido contrário, no livro “Notícias do Planalto” (Companhia das Letras, 1999), ao fazer insinuações em relação a seu antecessor – por conta da publicação de reportagens favoráveis ao ex-ministro Iris Rezende.

Na última edição da revista, um artigo de Guzzo logo se desenhou como um dos mais constrangedores da história. O artigo é escancaradamente homofóbico. Mas conseguiu marcar mais pelo ridículo do que pelo próprio preconceito. Ele conseguiu comparar casamento entre gays a um casamento entre um homem e uma cabra: “Um homem também não pode se casar com uma cabra, por exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar”.

Em pouco tempo as cabras passaram a ocupar um vasto espaço da internet. Vários “memes” estão sendo produzidos com os caprinos como personagens centrais. Um deles aborda o casamento entre cabras. A imagem de uma cabra com véu, como se estivesse vestida para casar, puxa a fila de imagens do animal.



Mas este não é apenas um artigo sobre homofobia. Ou sobre Guzzo. Sobre o consenso de que o articulista pisou feio na bola – e de que devemos rechaçar (ainda que com mais elegância) opiniões discriminatórias. É sobre comunicação. Sobre a internet. E sua capacidade de aplicar um zoom extraordinário numa única palavra dita por alguém, ou numa única ideia estapafúrdia.

Foi assim com a Baleia, nome de uma praia no litoral norte paulista. Sua utilização motivou uma das maiores crueldades coletivas dos últimos tempos na rede, contra uma criança que, ao musicar seu Bar Mitzvá (a passagem para a vida adulta, na simbologia judaica), fazia uma referência nonsense à praia. O menino foi virtualmente linchado. Sem piedade.

Os exemplos se multiplicam. E ilustram um comportamento que, se em alguns casos (como a reação a uma estúpida frase homofóbica) pode ser, inicialmente, considerado legítimo, em outros evidenciam perigosos comportamentos em onda, movimentos de massa tão intolerantes quanto aquilo que muitas vezes se critica. Um megabullying, um patrulhamento muito além de qualquer dose justificável.

Não se trata só de reação a uma ou outra frase descuidada. Mas também a fatos, acontecimentos. Sempre sou voz discordante quando falam jocosamente da “bolinha de papel” atirada em José Serra. Nenhuma simpatia por esse político, mas a histeria coletiva diante de sua teatralidade canastrona esconde o singelo fato de que nenhum candidato (por pior que seja) deveria receber bolinha nenhuma – de papel, fita crepe etc.

Do outro lado, os raivosos anti-direitos humanos, aqueles que tomam a redução da maioridade penal como panaceia, invadem agressivamente os espaços para leitores nas redes sociais. Suas opiniões são degradantes e, em muitos casos, paradoxais, pois não raro incorrem em apologia do crime – o que, em si, é crime, e, conforme a lógica de Talião que eles propõem, deveria ser severamente punida. Mas eles seguem lá: numerosos, impunes, incitando violências verbais e físicas.

E assim, de grão em grão, de meme em meme, de olho da serpente em olho da serpente, vão se impondo unanimidades na internet. Repete-se uma espécie de exercício instantâneo de auto-afirmação. “Massa e poder”, dizia há muito tempo o escritor Elias Canetti, de olho na lógica do fascismo.

Às vezes essas ondas têm origem pretensamente anárquica. Mas são inconsequentes demais para isso. Muitas vezes vêm disfarçadas de necessária vigilância política – contra homens públicos ridículos, jornalistas homofóbicos etc. Mas a compulsão por piadinhas revela-se infinitamente maior que o senso de responsabilidade.

Essa multidão da internet tem-se desenhado com problemas sérios de propensão à intolerância. E não somente à direita, mas também à esquerda do espectro político. As manifestações têm os mesmos germes de ódio e desprezo que caracterizam textos de José Roberto Guzzo e Danilo Gentili, Rafinha Bastos e Reinaldo Azevedo, as mesmas motivações torpes dos agressores de Geisy Arruda.

Eu deploro a revista Veja e o artigo de José Roberto Guzzo. Não sou eleitor de José Serra. Mas adoraria que o menino do Bar Mitzvá, Geisy Arruda, Jeremias (o bêbado que virou hit na internet), Ricardo Lewandowski e qualquer cidadão brasileiro tivessem suas imagens minimamente preservadas. Sem serem espezinhados, humilhados, achincalhados. Que a sociedade exercitasse, portanto, o reconhecimento do “outro”, do diferente.

Essa lógica intolerante não perdoa ninguém: como se viu, crianças. E não respeita nada: vídeos privados (com cenas íntimas, por exemplo), que canalhas colocam para circular ilegalmente. Tudo se torna material para essa multiplicação de perversidades. Sem que ninguém perceba a dimensão bumerangue de seu escracho diário.

Não estou falando só de internet. E sim definindo-a como ponto de encontro de uma vasta e violenta crise de valores – fruto de uma brutal desesperança coletiva.

Eduardo Coutinho consagrou o nome “Cabra marcado para morrer”, sobre um camponês assassinado na Paraíba, nos anos 60.

O risco maior desse festival de escrachos é termos uma Cidadania Marcada para Morrer.

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Um comentário:

P. A. disse...

Alceu, assino embaixo! Não se trata de problemas pontuais, mas de uma cultura corrupta que temos no Brasil, que continua a ser o "País do jeitinho", da "lei de Gérson", em que as pessoas se identificam mais com bullyng que com cidadania, e acham graça das humilhações e das ridicularizações, sem perceber que são vítimas também, e que tudo o que criticam depõe justamente contra elas.