quarta-feira, 3 de abril de 2013

Mulheres são violentadas – mas os jornais estão preocupados com a “imagem do país”

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Título do Jornal do Brasil: “Ataque a turistas em van mancha imagem do país”. Título em O Globo: “Estupro de turista dentro de van gera impacto negativo na imagem da cidade”. Colunistas de peso falam da repercussão em jornais estrangeiros e exclamam: “Dano à imagem!”

É dessa forma que o jornalismo brasileiro dá uma bofetada na cara de milhões de brasileiras. A preocupação com a integridade física das mulheres – que deveria ser a prioridade natural – é deixada de lado em nome da “imagem” coletiva, abstrata.

Mas não vamos gastar caracteres com essa indiferença específica, com esse mau gosto escancarado, com esse cafajestismo explícito. A pergunta é: o jornalismo tem um papel decisivo – e negativo – nesse e em outros tipos de violência? Adianto minha resposta: sim, tem participação direta. Pela omissão e pela espetacularização. E como promotor-chave de uma inversão brutal de valores.

Em 2010, foram notificados 41.294 casos de estupro no Brasil, pela compilação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com o apoio do Ministério da Justiça. Com dados dos boletins de ocorrência e do Sistema Único de Saúde. Isso representa um avanço de 168% em relação a 2005, quando foram registrados 15.351 casos.  (O Correio Braziliense informa que, nos estados que mantêm informações recentes, a tendência também aponta para aumento desse crime em 2013).

Todos sabem que o número de estupros é bem maior que esse. Mesmo que tenha aumentado o número de notificações, é enorme ainda o número de mulheres que não tem coragem de enfrentar o olhar do escrivão, o IML, a Justiça – e nem pessoas próximas. Seja pelo perverso mecanismo social de inversão da culpa, seja pela impunidade. À humilhação imposta a cada mulher corresponde uma sociedade de joelhos. Cúmplice.

CIDADANIA ÀS AVESSAS

Ao demonstrar a preocupação com a imagem do Brasil no exterior, a imprensa brasileira coloca mais uma carta nesse castelo de cidadania incompleta, às avessas. Se eu fosse uma mulher eu diria ao sujeito que escreveu aqueles títulos que ele é um cínico. Um patife, um indecente. Mas é muito mais que isso. Ele é uma expressão coerente de uma sociedade que se acostumou a minimizar as violências em escala, e a espetacularizar os casos isolados.

Não se tratam somente dos estupros. Também o número de mortes no trânsito, desde o ano passado acima de 40 mil, é solenemente ignorado pelo jornalismo brasileiro, em seu dia-a-dia. É como se, em uma partida de futebol, se descrevesse longamente uma única falta, um único lance fortuito do jogo, em vez de se falar do resultado geral, e de como a partida está relacionada a um contexto geral – a um campeonato viciado, a uma derrota estrutural da sociedade brasileira.

Ou seja, noticiam-se os atropelamentos (e os assaltos, os casos de estupro, as chacinas, a exploração sexual, o trabalho escravo ou infantil) de forma isolada, sem a busca do que seja orgânico, sistêmico. Ou epidêmico. Em vez de cobertura séria de segurança pública, o que temos é um jornalismo de entretenimento, destinado a alimentar indignações vazias, ritualísticas – ou mesmo as taras de sujeitos como os estupradores da van.

Essa culpa, portanto, é coletiva. De uma sociedade que não soube oferecer a seus cidadãos direitos elementares. À vida, à integridade física. É uma culpa que alterna covardia com ignorância, cumplicidade com omissão. Ocorre que, entre os responsáveis mais expressivos, destaca-se um grupo muito particular, que não pode apresentar a ignorância como desculpa: o conjunto de editores e donos dos meios de comunicação.

E por que eles são responsáveis?

Porque a eles não convém escancarar essa janela. Porque não se atrevem a tornar esses temas (e não as pontas dos icebergs) prioridades absolutas da cobertura. Porque deixam o jogo da violência rodar sem tomá-lo como pauta obsessiva. Discutem metas de inflação, dívida ou PIB, mas não dão importância a metas que envolvam paz, alfabetização, diminuição da mortalidade – ou do número de corpos e almas violentados.

No caso de outros temas esses profissionais sabem que é preciso contextualizar, ir atrás de séries estatísticas, das origens econômicas ou sociais (históricas, geográficas, sociológicas) dos problemas. Quando se fala do desempenho das grandes empresas há um esforço maior em busca do que seria sistêmico. Não da forma ideal, em meio ao deserto de ideias que assola o jornalismo brasileiro, mas ao menos há algum esboço, alguma tentativa de entender o que acontece ao sul – grilado - do Equador.

Colunistas de segurança pública, quantos vocês conhecem? E colunistas de questão agrária, educação, questão urbana? Quantos se dispõem a discutir temas que, muitos deles, estão entre as origens da violência? Editoriais sobre mortes no trânsito, quantos lemos no último mês? Chamadas de primeira página sobre esses flagelos, quantas vimos? Cadernos que mergulhem nesses assuntos, existem?

O CIRCUITO DA INDIFERENÇA

A esse sono cognitivo – um sono diário, denso, repetitivo, contagiante, um sono coletivo - soma-se outra aberração: a incomensurável capacidade jornalística de se perder a capacidade de indignação. Não aquela já mencionada, a teatral, fogo-de-palha, para aplacar a consciência coletiva, mas uma indignação de fundo, uma preocupação genuína com a nossa ausência de civilização.

É desta forma que Isabela Nardoni e a turista americana estuprada e os jovens de Santa Maria se inserem numa ciranda efêmera, em um espetáculo de indignações passageiras, inócuas. São poucos os casos em que essas vítimas se tornam o que devem ser: mártires. A cada Maria da Penha e a cada Chico Mendes há milhões de brasileiros que não tiveram a chance de virar heróis. Apenas compõem estatísticas. (Distorcidas e insuficientes.)

Toda a sociedade é responsável por esse circuito da indiferença. Mas o jornalismo é sua ponta-de-lança. Não à toa. É o mesmo jornalismo que comemorou o golpe de 1964, apesar das mulheres violentadas nas celas, a mesma imprensa que comemorou o golpe mal-sucedido na Venezuela, que comemorou os golpes em Honduras e no Paraguai. A mesma mídia que chama ditadores amigos de presidentes, que chama presidentes inimigos de ditadores.

O compromisso dos meios de comunicação com a democracia, ou com os seus valores mais nobres, é de ocasião. Pode-se até, com alguma concessão (anos depois, esquecidas cumplicidades incômodas), lamentar os mortos e torturados na ditadura, mas se faz vista grossa para a tortura praticada até hoje nos porões. Ou para a morte sistemática de indígenas, posseiros e lideranças camponesas por todo o país. Para o esgotamento do corpo dos cortadores de cana – que produzem o álcool, que move as vans.

A DOENTE E O PLACEBO

A sociedade brasileira é essencialmente doente; o jornalismo, seu placebo.

Esse placebo vem embalado como se fosse um remédio eficaz. No mínimo esse jornalismo-comprimido se proclama um grande detector de sintomas, um fotógrafo eficiente de nossas chagas. Os donos dos meios de comunicação, e seus editores e colunistas amestrados (com as honrosas e cirúrgicas exceções) apresentam-se como probos guardiões dessa democracia em plena vitalidade. Enganam-se. E enganam.

Estão preocupados com o crescimento da economia, com tudo o que tenha relação direta com os lucros dos acionistas. Tudo em parceria com os amigos patrocinadores. Estes não querem associar suas marcas a coberturas sérias de segurança pública. Não agrega valor à imagem da empresa a promoção de uma cultura da vida nas periferias. Ou a multiplicação de alternativas de educação e cultura. A saúde dos ribeirinhos. O suicídio dos indígenas, a morte das bisnetas dos escravos. Nada disso vende jornal – a não ser que editado de forma sensacionalista, irresponsável.

Genocídio no trânsito? Guerra civil na periferia? Estupros numa escala medieval? Melhor se preocupar apenas quando o mundo lá fora, acima do Equador, esboçar uma reação. Quando uma missionária americana for baleada no Pará (refiro-me à heroína Dorothy Stang), ou quando uma turista – embebida de brios - tiver a coragem de contar o que aconteceu numa van em Copacabana. Quando as veias estiverem expostas.

Espaço para otimismo? Não exatamente: a curva dos estupros tende a aumentar. Logo serão 50 mil notificações (apenas elas) por ano. O gráfico das mortes no trânsito também. Logo serão 50 mil mortos por ano. Fora os mutilados. E seus parentes.

Dane-se: quase nunca terá sido no Leblon ou nos Jardins. Às elites brasileiras basta ligar o alarme quando houver perigo de um “impacto negativo na imagem da cidade”. Ou risco de “manchar a imagem do país”.

As vans do horror seguirão andando.

De mãos dadas com a barbárie, o jornalismo brasileiro seguirá atropelando.

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4 comentários:

Fabiano Amorim disse...

Muito bom esse seu artigo. Li uns 70% dele por falta de mais tempo disponível. Parabéns, é uma ótima leitura.

Eu também acho um absurdo o que a mídia faz, ignorando 99% dos casos e espetacularização de alguns poucos deles.

Lembro que aqui em Maceió, falou-se o mês inteiro no assassinato de um médico que foi morto quando roubaram sua bicicleta.

Alagoas é o estado com o maior número de assassinatos no país, mas o assassinato de um pobre rende apenas alguns minutos nos programas policiais locais, quando é mencionado. A morte de um rico gera muitas horas de reportagens.

Alceu Castilho, jornalista. disse...

exatamente, Fabiano. A cobertura de segurança pública, que, sintomaticamente, chamam de jornalismo "policial", tem um lado bem definido.

Bel Keppler disse...

Alceu, ótimo artigo! De fato, as estatisticas tendem a aumentar, infelizmente. Se olharmos atentamente, na maioria das vezes as notícias sobre estupro na maioria das vezes são vagas. Quando se fala de assalto, logo aparece: "VÍTIMA DE ASSALTO" em determinado lugar. Quando se trata de estupro, o que aparece é: "MULHER DIZ SER ESTUPRADA". Não afirma que houve estupro e que merece punição. Outro elemento mais assustador é vermos como o próprio Estado está de braços dados com a exploração sexual da mulher. Em primeiro lugar, só o fato de iluminar a cidade já seria um avanço. Além disso, aqui no Nordeste o turismo sexual é algo que todos sabem mas ninguém comenta, já que é algo importante para a economia local. Empresas de turismo já fazem a articulação e organizam tudo, para quando o europeu chegar já ter alguém. Com os megaeventos, essa situação só tende a piorar.
Vejo que o jornalismo cumpre uma função central nisso tudo - que não passa apenas pelo que é escrito, mas pela forma de escrita e pela própria centralidade do tema. A internet possibilitou um maior espaço para pessoas críticas escreverem, mas ainda assim é muito restrito...

Desanimador esse quadro todo, né.

Alceu Castilho, jornalista. disse...

muito bem lembrada, Isabel, essa questão da iluminação. E, sim, o turismo sexual é outro grande tema ausente.

O recurso da internet precisa ser mais utilizado. Há uma desproporção entre o alcance de artigos como o que escrevi e o da grande imprensa.

Algumas amigas repercutiram, mas confesso que esperava um pouco mais, em especial da parte das próprias mulheres.

Meta para diminuição dos estupros (como passo para a erradicação) poderia ser uma grande tema nacional.