quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Violência de “esquerda” contribui para a ofensiva autoritária em São Paulo

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Motivos para indignação em São Paulo não faltam. Um vídeo exibido pela Record mostra que, em São José dos Campos, é necessário muito boa vontade para continuar chamando de “democracia” um regime que destrói – com velocidade incrível – casas de moradores com móveis inteiros. Onde os policiais agem a serviço de interesses privados, e não somente durante a reintegração de posse. E onde jornalistas só podem fazer seus registros acompanhados dos mesmos policiais.

O protesto veemente contra esses abusos é justo, necessário – e urgente. Mas está sendo parcialmente sabotado por militantes autoritários. Eles se proclamam de “esquerda”; na prática, contudo, fortalecem os comandantes da violência de Estado. Em alguns casos ainda é possível ter esperança de que, com o tempo, os mais impetuosos passem a fazer os movimentos legítimos; em outros, os rebeldes têm igualmente uma matriz violenta e bem poderiam estar do outro lado – atirando gases e agredindo a população.


Ontem pela manhã, aniversário de São Paulo, um repórter do Estadão flagrou um rapaz, de rabinho de cavalo, esvaziando os pneus do prefeito Gilberto Kassab (PSD). O ato, em si, isoladamente, não teria o máximo de gravidade. Poderia, com algum esforço ideológico, passar por alguma tática (mais ou menos ilegítima) de questionamento de uma autoridade, de desobediência civil. O problema maior está na reação do rapaz – e no comportamento violento de outros presentes.

É que o repórter foi simplesmente agredido pelo sujeito. Apenas porque o gravava. “Sou da imprensa, sou da imprensa”, repetia ingenuamente Felipe Frazão – como se aquele homem fosse se importar com isso. Rabinho-de-Cavalo partiu para cima do jornalista com frieza, sabendo muito bem o que fazia. Com ódio. Veja aqui o vídeo. Como se estivesse ali fazendo algum protesto legítimo contra a linha editorial da família Mesquita, dona do jornal, ou o modelo brasileiro de comunicação de massa. Uma repórter da Globo também foi ameaçada.

A questão é que Rabinho-de-Cavalo não se importava com aquele trabalhador, aquele profissional de imprensa. Igualmente “proletário”, conforme o jargão marxista. Apenas mais uma vítima da mais-valia, deveria saber o rapaz. Por desinteligência, por confusão ideológica? Para mim, por possuir uma matriz violenta. Como outros que estavam ali, a protestar contra o Kassab e a violência institucionalizada nas últimas semanas pela prefeitura e pelo governo estadual. Uma minoria entre os manifestantes? Sim, uma minoria – capaz de atrapalhar a causa justa de todos os demais.

Na semana passada (antes, portanto, da reintegração de posse em São José dos Campos) li em um fórum de discussões na internet algo que me deixou estarrecido. Um militante da LER-QI (Liga Estratégia Revolucionária) defendia com todas as letras o seguinte: que os médicos na região do Pinheirinho, durante o iminente conflito entre moradores e PM, não deveriam atender os policiais. Entenderam? Um policial ferido. Você é médico. Vê o homem no chão, pode salvar a vida dele. Mas não faz nada. Pois o rapaz não só teve essa ideia absurda, como a concatenou e escreveu, num grupo fechado do Facebook.

OS DIREITOS DO BUMERANGUE

Direitos humanos? Ao menos em suas noções elementares? Mas quem disse que todos os revolucionários se importam com direitos humanos? A história da ditadura brasileira, quando contada pelos verdugos, oferece esse telhado-de-vidro gigantesco para as esquerdas: quem ainda acredita que todas elas, necessariamente, queriam de volta a democracia? Não há dúvida que muitos queriam apenas outro regime autoritário – o que não tira, diga-se, o heroísmo da resistência coletiva aos opressores.

No ápice da crise na USP, no fim do ano, eu conversava com uma militante de esquerda, indignada (justamente) contra os desmandos do reitor João Grandino Rodas e as violências policiais – não somente na Cidade Universitária. Em determinado momento, porém, surgiu o assunto da União Soviética. Ela defendia o regime soviético. Até aí poderia ser por desinformação, pensei. Eu e outro colega na roda questionamos: mas e os milhões de camponeses assassinados pelo regime? A resposta justificava o genocídio: “Estavam desafiando as decisões do proletariado”.

Falar de fascismo de esquerda pode soar contraditório. Em senso estrito, de fato, não é o termo preciso. Mas que outras palavras identificam movimentos de massa, em onda, que desafiam liberdades individuais, ou ignoram direitos de minorias? Notem que estas minorias, num eventual regime comandado pelas massas, podem significar os antigos espoliadores – empresários cínicos, políticos corruptos, autoritários etc. Aqueles militantes mandarão essas pessoas para o paredão? Em nome da “democracia”?

Um dos lemas do fascismo italiano era a expressão “me ne frego”. Traduções: não me importa, “I don’t give a damn”, eu não estou nem aí. Essa expressão é tão localizada assim no tempo e no espaço? Na Itália da primeira metade do século? Ou sintetiza posturas – de direita e de esquerda – em toda a nossa sociedade? Macunaíma não disse a mesma coisa com outras palavras? Isto para não ser repetitivo com Jarbas Passarinho e os escrúpulos de consciência enviados “às favas”.

O curioso é que esses militantes violentos julgam-se muito mais espertos do que são. Na prática, a força excessiva que eles usam nos protestos acaba sendo facilmente utilizada pelos governos, como se estes fossem judocas que revertessem a força dos adversários. As investidas sem estratégia tornam bem mais fácil o jogo de conquista da opinião pública (pela imprensa mencionada anteriormente) pelos cínicos de plantão.

Notem que não estou falando aqui de desobediência civil, nem questionando resistências legítimas a violências institucionais. O cientista político Carlos Novaes explicou em plena TV Cultura que os moradores do Pinheirinho estavam certos, naquele contexto, em resistir à lei.

Estou falando de táticas tresloucadas de militantes voluntariosos. Às vezes eles são (ou parecem) muito bem intencionados e compartilham de algumas de nossas indignações. Proclamam-se justos e heroicos - numa proporção, segundo eles mesmos, imensamente superior à de qualquer interlocutor "alienado" e infinitamente passivo. Mas a maior qualidade de alguns deles está a de serem perfeitos atiradores de bumerangue.

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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Pinheirinho, 22 de janeiro
“Moradores gritavam, horrorizados”, diz autor da foto que correu o mundo

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

A foto com duas mães correndo, bebês no colo, tornou-se um símbolo do que aconteceu no domingo, em São José dos Campos (SP). A imagem mostra fogo ao fundo, durante a reintegração de posse do terreno do especulador Naji Nahas. O autor da foto, Roosevelt Cássio, conta ao blog Outro Brasil como fez a imagem, divulgada pela agência Reuters.

Ele diz que já conhecia bem o Pinheirinho. Conta que chegou a morar lá, por quatro meses, para documentar o bairro. E que não foram moradores de lá que praticaram atos de vandalismo, como mostrou, em sua avaliação, uma imprensa “inflamada”.



Confira a entrevista:


Outro Brasil - Qual o contexto e local exato da foto? Você estava com outros fotógrafos e cinegrafistas, com policiais ao lado?
Roosevelt Cássio - Sim. Por volta de 6 horas do domingo a Tropa de Choque arrebentou o portão principal e entrou no acampamento. Eu e um cinegrafista da Vanguarda, filiada da Globo, entramos ao lado dos policiais. Sofremos uma certa retaliação, mas não chegamos a ser expulsos. Imediatamente começamos a fotografar os fatos: a tropa entrando e os moradores saindo gritando e correndo horrorizados com a presença ostensiva dos policiais. Algumas mulheres saíam correndo com seus filhos no colo, enquanto os policiais avançavam, batendo seus escudos e cassetetes, fazendo muito barulho.

Como foi o momento exato da foto, do clique? Deu tempo de calcular a composição, o registro da expressão das mães ou você trabalhou mais na base da intuição?
Acho que tem um pouco de tudo… Mas consegui manter a cabeça fria e controlar a adrenalina pra poder contar o que estava ocorrendo através das imagens.Trabalhei com a câmera sem ligar o motor drive, pois estava com pouca bateria. Fiz, em cinco minutos,cerca de 20 clicks. Acabei aproveitando quase todos. Mas essa foto, particularmente, tinha uma certa emoção e mostrava o que realmente estava acontecendo naquele momento. O fato de eu trabalhar com fotojornalismo há algum tempo me ajudou muito a ficar calmo nessa hora.

Você percebeu imediatamente que tinha feito uma imagem histórica?
Não, na hora não percebi, mas sabia que tinha feito uma foto muito boa. Só depois de algumas horas do envio da foto que o editor da agência (Reuters) me ligou, dizendo que ela estava correndo pelo mundo. E que era uma imagem forte!

Sente-se incomodado por ver sua imagem repercutida sem os créditos?
Sem dúvida isso me incomoda e acho que posso falar por outros colegas. O crédito é obrigatório por lei, mas aqui no Brasil, como outras coisas, essa lei também não funciona.

Inscreverá a foto em prêmios de Fotografia e de Fotojornalismo?
Ainda não sei, talvez. Ainda estou muito envolvido com essa cobertura e com o Pinheirinho.

O PINHEIRINHO

Você conhecia bem o local antes de fazer a foto?
Conheço bem o local, fiz um projeto fotográfico em 2004. Fiquei o ano todo documentando a vida daquela comunidade, e passei efetivamente morando com eles por quatro meses.

Tem alguma posição política definida em relação à ocupação do terreno? Seja partidária, seja a favor ou contra os moradores?
Essa realmente é uma pergunta  relativa e muito difícil, e de acordo com meu envolvimento com aquela comunidade, prefiro não opinar, pois seria parcial da minha parte.

O que achou da reintegração de posse?
Foi muito difícil para ambos os lados, policiais e moradores. E até para os jornalistas: cheguei a ver alguns fortemente emocionados com os fatos. Mas sobretudo para os moradores, que realmente acreditavam que aquela área ia mesmo ser regularizada.

O que você viu, como fotógrafo, que considera não ter repercutido como deveria na imprensa?
Acho que, de um modo geral, houve uma certa "inflamação" da imprensa nessa cobertura que tomou proporção internacional, em relação ao fatos. Um exemplo claro foi que, ao meu ver, quem protestou, fez vandalismo e até atos de terrorismo não foram os moradores do Pinheirinho, e sim uma mistura de moradores vizinhos e outros elementos indignados com o acontecimento e a presença em massa da polícia.

O FOTÓGRAFO

Qual sua experiência profissional? Formação, quantos anos de trabalho, onde já trabalhou?

Sou formado em design, fiz dezenas de cursos de fotografia e até um curso de fotojornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo.Trabalho nessa área faz um 15 anos. Trabalhei por cinco anos na Folha de São Paulo e no jornal Vale Paraibano. Atualmente trabalho como free-lancer, fazendo trabalhos para diversos veículos e agência de notícias, entre elas Reuters e Associated Press.

Quais as fotos que mais repercutiram antes dessa?
Tive algumas fotos premiadas, mas a que mais repercutiu foi a classificada para o prêmio nacional Senai de Fotojornalismo. Uma foto feita para o caderno de indústria do Vale Paraibano, em uma matéria sobre reciclagem.

Como a foto repercutiu profissionalmente? Alguém já o procurou para outros trabalhos?
A repercussão foi bem positiva, mas devo continuar seguindo como freela mesmo. Estou também trabalhando com uma produtora de filmes, fazendo trabalho de direção de fotografia, e me toma muito tempo.

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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Cobertura da Globo no Pinheirinho é o debate Lula x Collor do século 21

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

É a manipulação jornalística do século. Seu protagonista, a Rede Globo. O tema, a Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos. Vítimas: as 2 mil famílias despejadas pela polícia – mulheres, crianças e idosos na mira de balas (não somente de borracha), retiradas com violência de suas casas, atiradas em alojamentos sem infra-estrutura. Um arsenal de violações de direitos humanos, naturalizado pela principal emissora do país.

Cabe assinalar que não sou dos que costumam demonizar a priori a Rede Globo. Considero-a melhor que as demais emissoras – à exceção das educativas. Elogiei várias vezes, nos últimos meses, pelo Twitter, coberturas feitas pelo Fantástico, que tem sido um raro espaço (em toda a imprensa brasileira) para reportagens investigativas. Foi pelo repórter Eduardo Faustino que ficamos sabendo de esquema de fraude nas bombas de combustíveis, que vimos com detalhes a venda – ilegal - de terras do Incra.

Mais uma concessão à Globo? Não sou dos que consideram o Big Brother Brasil o último lixo da televisão brasileira. Vejo na reação anual contra ele uma indignação de verão, metonímica, cíclica, confortável, uma cortina de fumaça em relação a programas muito piores e mais nocivos; programas, em várias emissoras, que estimulam as violências, as mencionadas violações de direitos humanos etc.

Feitas as ressalvas, mostremos por que a Globo constrange a democracia com sua cobertura da reintegração de posse em São José dos Campos.

Primeiro foi o Fantástico. Um professor de Jornalismo em São Paulo, Francisco Bicudo, resumiu da seguinte forma a cobertura do programa dominical: “Pinheirinho = fábrica de traficantes”. De fato, a emissora elegeu como tema central a imagem de três barracos que seriam a “cracolândia” local. Os termos relacionados ao tráfico foram determinantes para se contar a história daquele povo – até então desconhecida pela maior parte da população brasileira. A edição servia para justificar a brutalidade estatal.

Não havia ali nem sombra da isenção proclamada pela emissora. E isso foi comprovado na manhã seguinte, no Bom Dia, Brasil. O jornal matutino fez uma cobertura digna da desocupação. Com as mesmas imagens e entrevistas exibidas pelo Fantástico, conseguiu mostrar o drama dos moradores. Sem criminalizá-los. A apresentadora Carla Vilhena chegou a fazer algo que quase ninguém na grande imprensa faz: questionou a utilização da palavra “invadida” para definir a área.

Aqui cabe explicar que “invasão” e “ocupação” são palavras opostas para o mesmo fenômeno. Movimentos de sem-teto e sem-terra (e não somente eles) utilizam, em todo o mundo, esse recurso político. Chamam de “ocupação”. É um recurso considerado legítimo por muita gente que está longe de ser “bandida" – ou mesmo revolucionária. Alinhada aos proprietários de terra, a grande imprensa usa a palavra “invasão”. E somente ela. Por que não usa as duas? Porque não é isenta.

A MÁGICA DAS EDIÇÕES

Carla Vilhena e os editores do Bom Dia, Brasil mostraram que, na própria Rede Globo, não se enxerga um fato da mesma forma. É elementar no jornalismo. O matutino, aliás, enfatizou que se tratava de uma massa falida do especulador Naji Nahas - um personagem que o restante da imprensa está fazendo questão de esquecer no episódio. Nahas nunca pagou IPTU à prefeitura de São José dos Campos. Mas o telespectador não sabe disso. A escolha de determinados temas (e imagens, frases, palavras) chama-se “edição”.

Mas teria acontecido algo entre o Fantástico e o Bom Dia, Brasil? Nas redes sociais houve uma reação imediata contra a emissora. Deploramos imediatamente a abordagem sórdida do Fantástico – desumana, cínica, abjeta. E comemoramos uma abordagem mais serena durante a manhã. Algo ainda longe de questionar os excessos policiais e as escolhas da “justiça” brasileira (que não tem a mesma disposição para retirar empresas e famílias ricas de áreas “invadidas”).

A Rede Globo teria recuado? Optado por uma cobertura mais equilibrada - e humana - com medo de perder audiência? Que nada. À noite, viria ele – o Jornal Nacional.

Estamos a falar do programa que, em 1989, tornou-se uma referência negativa na televisão brasileira. A edição manipulada do último debate entre Lula e Collor, a poucos dias da eleição, foi admitida recentemente por um dos chefes do Jornalismo à época, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni:

Sim, o Jornal Nacional abandonou a teoria embutida na edição do Fantástico, aquela do Pinheirinho como um local de tráfico. Mas a trocou pela imagem dos vândalos. Imagens de pessoas furtando uma loja foram exibidas logo no início da edição. Ou seja: além de “invasores”, os moradores do Pinheirinho seriam “vândalos”. E, apesar dos esforços da equipe do Bom Dia Brasil, ninguém desmentiu a imagem anterior, a dos “traficantes”.


Ou seja: estamos diante de um verdadeiro e monumental estelionato jornalístico. Digno de ser estudado nas Faculdades de Comunicação. Com um agravante em relação ao debate entre Lula e Collor: naquela ocasião houve um exagero do bom desempenho de Collor no debate; e um exagero do mau desempenho (que existiu) de Lula, muito nervoso naquele dia. Em outras  palavras: a Globo mais aumentou do que inventou.

O que está acontecendo esta semana, portanto, de São José dos Campos para o Brasil, é a construção calculada de uma imagem coletiva: em vez de milhares de famílias vítimas de casuísmo (judiciário) e violência (policial), aqueles brasileiros são apresentados como “invasores vândalos e traficantes”. Alguns jornalistas, particularmente desprovidos de ética e caráter, instalados em revistas de circulação nacional, já propagam com prazer repugnante essa distorção.

Desta forma, os meios de comunicação cumprem com eficácia seu papel de jagunços da desigualdade. Se a polícia (a mando do Executivo e do Judiciário) aperta seus gatilhos e humilha in loco, os latifundiários da comunicação e seus jornalistas amestrados atacam e agridem, de longe, famílias inteiras de brasileiros. É a Tropa de Choque Midiática, a aplicar rasteiras e pontapés virtuais na dignidade das vítimas. Suas armas são algumas palavras e alguns botões.

PS: a reportagem desta terça-feira do Bom Dia, Brasil, da mesma Rede Globo, é mais uma vez equilibrada. Expõe, sim, a posição da polícia e do governador. Mas põe ênfase no destino dos moradores - que são chamados de "ocupantes", não invasores. Carla Vilhena diz que muita coisa poderia ter sido feita, já que a ocupação data de 2004. Mas o programa não tem a mesma audiência do Fantástico e do Jornal Nacional.

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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Pinheirinho, Brasil: onde foi que enterraram nossos escrúpulos?
 

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

A grande imagem do domingo – e do ano - é a das mães com criança no colo, o fogo na Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos, ao fundo. Que tipo de sociedade patrocina cenas como essa? E que tipo de ser humano acorda para trabalhar, numa segunda-feira, e consegue apoiar essa e outras demonstrações de barbárie?

Empresto o título deste artigo do jornalista Aluizio Palmar, autor de um livro chamado: “Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?” Ele fez uma via crucis por Brasil e Argentina em busca de corpos de amigos mortos pelos regimes militares. Tratava-se de uma necessidade civilizatória – a busca de Palmar não era só por corpos. Era por um sentido da existência, pelo resgate de ideais compartilhados, mas esquecidos.

Algo no Brasil está sendo enterrado com velocidade atroz - e não estamos nos dando conta da dificuldade de futuro resgate. A palavra “escrúpulos” foi consagrada pelo ex-ministro Jarbas Passarinho durante aquele mesmo regime militar. Diante de alguma dificuldade, raciocinava ele, “às favas os escrúpulos de consciência”. Quase 50 anos depois, a frase segue inquietantemente atual. É gritada, falada, murmurada. Sua incidência e sua abrangência colocam em xeque a possibilidade de convivência - cordial - neste país.

Não falo apenas dos governantes que patrocinam a violência institucional contra milhões de brasileiros. Não somente do cinismo de cúpula, dessa farsa que pode ser resumida pelo calote sistemático do pagamento de precatórios. Um governo que não paga suas dívidas judiciais está desrespeitando a lei, certo? Mas o discurso legalista dos poderosos é casual, de conveniência: o próprio governo age ao arrepio de decisões judiciais - sem que alguém possa acionar a Tropa de Choque contra o governador.

Eu falo não somente desses farsantes de ocasião, dos mentirosos de colarinho branco e alto coturno, mas do cidadão comum. De classe média. Alta. Baixa. De seres humanos que escarnecem da agonia de seus semelhantes. Falo daqueles cidadãos que conseguem fazer piada com a tragédia alheia – a falta de moradia, de terra, de emprego. Dos policiais da Tropa de Choque, em São José dos Campos, que riem enquanto atiram granadas e balas de borracha contra populações indefesas.

Refiro-me, portanto, a gente muito próxima de nós. Que, como os soldados que bancaram e bancam regimes fascistas pelo mundo, tomaria, se tivesse oportunidade, as mesmíssimas decisões que Geraldo Alckmin ou o juiz cínico de plantão; que se comporta de maneira semelhante (acumuladora, inescrupulosa) à do capitalista Naji Nahas; que, com balas de borracha e gás lacrimogêneo à disposição, não hesitaria em agredir outros brasileiros que nasceram sob o signo da miséria.

Estou a pensar nos milhões de seres humanos (que podem ser nossos tios e colegas de trabalho) que apoiam as maiores e menores agressões diárias à democracia. E que se regozijam com isso – achando-se o máximo. Que patrocinam (com a imensa arrogância dos analfabetos da cidadania) os abusos policiais em manifestações de estudantes e professores; que não se importam que haja tortura, e tortura em larga escala – muito tempo depois do fim oficial do regime militar.

PONTAPÉS EM CRIANÇAS

Vejo cada uma dessas pessoas – muito mais do que metaforicamente - dando socos e pontapés naquelas mulheres de São José dos Campos; derrubando-as ao chão, humilhando-as. Com o país e o mundo pegando fogo, em volta. Vejo cada uma dessas pessoas atirando aquelas crianças em algum galpão enlameado. Escarnecendo do sofrimento delas, enviando-as para a fogueira, alimentando o fogo com sua violência e seu cinismo.

Não se trata, portanto, de apenas demonizar este ou aquele partido, este ou aquele governador. Que seja feita a dose diária de repúdio a cada um desses senhores, desses senhores-de-engenho, desses capatazes, desses verdugos – torturadores, assassinos, genocidas. Mas sem maiores ilusões de que o partido alternativo ou o governador alternativo sejam tão diferentes assim.

Algumas supostas exceções são apenas aparentes: quando obtêm chances reais de chegar ao poder, fazem pacto com todos os demais - todos os que praticam ou patrocinam a violência diária contra milhões de espoliados, contra as centenas de Ocupações Pinheirinho espalhadas pelo mundo. Sobram algumas exceções de fato, autenticamente indignadas – mas quase sem chances eleitorais.

Essas chances são diminutas exatamente porque existe bem pertinho de nós uma legião de seres humanos sem escrúpulos, prontos a apoiar toda sorte de violência contra seus semelhantes. São eles que beijam virtualmente a mão dos Nahas e dos Calheiros, dos Maluf e dos Sarney, dos répteis (com todo respeito aos répteis) que infestam o Judiciário, o Legislativo e o Executivo.

São esses brasileiros muito próximos de nós que alimentam esse inesgotável saco de maldades. Tomam cervejinha conosco. Cantam parabéns aos nossos filhos nas festas de aniversário. Nas redes sociais, são nossos “amigos”. Nos portais (naqueles fóruns que vêm se consagrando como o grande esgoto do pensamento), postam comentários homofóbicos, racistas, higienistas – ou no mínimo indiferentes.

Esses brasileiros são pessoas violentas. Agridem sem-teto. Agridem sem-terra. Batem em estudantes, em moradores de rua, em indígenas, em dependentes de crack. E não se dão conta disso. Não é com a mão deles que se exerce o controle das massas. Existe o que alguém já chamou de “violência da calma”. Uma violência-cúmplice, uma violência que não deixa marcas no próprio corpo – ou na própria consciência.

Esses brasileiros violentos e cúmplices acreditam firmemente que os patifes anteriormente citados são a causa de todos os males. Ou, muito pior que isso: que quem resiste a todas essas ignonímias é quem seja o problema de fato; os inconformados é que são os culpados pela ausência evidente de civilização. Por essa visão torpe e míope do mundo e dos processos históricos, são eles – os ativistas, os resistentes – que devem ser eliminados. E, portanto, ridicularizados. Agredidos.

Para disfarçar a sanha de violência, que se inverta o ônus. Que se definam os resistentes como “estudantada”, que se apontem os resistentes como “traficantes”, ou maconheiros – ameaças a “gente de bem”. Que se rebaixe quem vai contra a corrente ao mesmo nível – subterrâneo – de consciência embotada. Afinal, porque não dizer, os meios de comunicação de massa são a mais completa tradução desse reino dos cúmplices.
 


A foto das mães em São José dos Campos significa muita coisa. Não enxerguemos nela somente motivo para indignação coletiva – porque esta, a rigor, contra todas as aparências, não existe. Nem mesmo a indignação de classe existe, infelizmente, queridos amigos revolucionários – pois as lutas desse curioso espécime (o ser humano) são várias, não somente uma. A violência do sistema econômico é apenas uma das expressões da barbárie.


Essa foto das mães em fuga (com os mencionados país e mundo pegando fogo ao fundo) significa um grito contido. Por um lado, mostra a relativa impotência dos resistentes. Por outro, a força (não se sabe bem vinda de onde) que nos leva a manter alguma esperança. Por fim, esconde um amplo contexto de violência latente. A trilha sonora dessa imagem é sórdida – o coro de brasileiros que, diariamente, sob risinhos, piadinhas e comentariozinhos, ateiam fogo à democracia.

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domingo, 22 de janeiro de 2012

Líder do MTST é um dos presos – e espancados – em São José dos Campos

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Um dos coordenadores nacionais do MTST, Guilherme Boulos, foi preso por volta das 16h30, neste domingo, durante a operação policial de reintegração de posse na Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos. Levou chutes, pontapés, cotoveladas e golpes de cassetete, antes de ser detido pela Guarda Civil Metropolitana.

As informações oficiais, durante a tarde, davam conta de 15 pessoas presas. Não havia informações sobre lideranças. Boulos foi o porta-voz do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) durante ato no dia 8 de dezembro, em São Paulo. Era ele quem coordenava as falas, no vão livre do Masp e no carro de som, na Avenida Paulista.

Naquele dia os trabalhadores informaram sobre a iminência do que chamaram de “conflito do século” em São José dos Campos. Leia
aqui o relato do que eles previram sobre a reintegração de posse. Os sem-teto fizeram, dias depois, uma reunião com o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, responsável pela interlocução do governo Dilma com movimentos sociais. Não houve solução para o caso.
Boulos foi também um dos representantes dos manifestantes (MTST, Must, MST e Fábrica Ocupada Flaskô, entre outros) em reunião com uma representante do governo federal, no gabinete localizado na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta. Leia
aqui o relato do que aconteceu naquele dia, quando os manifestantes ocuparam o prédio do Banco do Brasil – que cede ao governo federal um andar para seu escritório em São Paulo.

Os moradores da Ocupação Pinheirinho organizam-se no Must (Movimento Urbano dos Sem-Teto). Durante esse ato no Masp e na Paulista estavam em peso – eram centenas de pessoas, somente do Must. Somaram-se aos militantes do MTST, do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), da Fábrica Ocupada Flaskô e a apoiadores do movimento – como estudantes em greve da USP.

As fontes que relataram ao blog Outro Brasil a prisão e espancamento de Boulos descreveram também um “bairro sitiado” em São José dos Campos: o Campo dos Alemães. Segundo esses trabalhadores, os policiais estão agredindo as pessoas “a torto e a direitos”. Crianças, mulheres e idosos estão sendo agredidas com bombas de gás e balas de borracha. Um adolescente foi perseguido e espancado.

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Mano Brown na Favela do Moinho – mas você não verá na Globo

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Mano Brown: líder dos Racionais MCs. Músico e pensador paulistano que se manifesta no movimento hip-hop.

Favela do Moinho: é aquela que pegou fogo dois dias antes do Natal, na região central de São Paulo. Com dois mortos oficiais – e vários outros, na versão dos moradores exposta neste vídeo.


Mano Brown faz show hoje na Favela do Moinho. O Festival Moinho Vivo começa às 14 horas, com música, fotografia, artes circenses. É um acontecimento cultural – e político. Apesar da dupla importância, a grande mídia não fará a cobertura.


Somente Mano Brown toca hoje no Moinho? Não. O festival terá também Dexter e Rincon Paciência. Quase teve Emicida. Terá ainda Crônica Mendes, DeDeus, Ducorre, James Bantu, Lindomar 3L, Ortiz, Rimatitude, Sombra, e Us VCagabundo Chic. E b-boys, Ds, grafiteiros, poetas. Mas não sairá nas telas da Rede Globo.

Os organizadores esperam toneladas de mantimentos – destinados aos desabrigados - e centenas de medicamentos. Os jornalistas especializados em “sustentabilidade”, porém, lá não estarão. Cadernos especializados em “Cidades”, “Metrópole”, “Cotidiano”? Pouco provável que façam jus a seus nomes.

No início do ano a prefeitura tentou implodir o prédio ao lado da Favela do Moinho, na região central de São Paulo. A implosão falhou, mas o prefeito Gilberto Kassab (PSD) ainda assim deu nota 10 para a operação.

Em meio à invisibilidade nos principais meios de comunicação do país, os organizadores do Festival Moinho Vivo fazem uma cobertura colaborativa. Nos mesmos moldes do que aconteceu nos últimos dias na Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos. Aliás, haverá show hoje também no Pinheirinho. Às 16 horas, com a cantora de rap Lurdes da Luz.

O próprio nome do festival de hip-hop, Moinho Vivo, tem embutido um significado de resistência. Veja a definição no site Hip-Hop Brasil:

- Moinho Vivo é uma iniciativa autogestionária de produtores, militantes, moradores e ativistas que querem dar visibilidade ao que acontece na Comunidade do Moinho (pós incêndio). Compartilhando informações, denúncias e principalmente todo o potencial criativo e produtivo da Comunidade.

Um Moinho e um Pinheirinho vivos contrapõem-se aos meios de comunicação tradicionais – semi-mortos. Por quê?

A EXCLUSÃO MIDIÁTICA

O primeiro motivo da exclusão midiática é o próprio conteúdo político. Jornalismo cultural e jornalismo político são planetas distantes nas redações. Não há diálogo. Como falar de entretenimento no jornalismo político? É considerado um assunto “menor” – apesar do festival de fofocas que caracteriza a cobertura política brasileira.

Da mesma forma, a política só entra no jornalismo cultural como contrabando. Até entra, aqui e ali – por distração dos chefes de redação (poucos deles realmente ilustrados) ou porque se considera que o fato político já foi amestrado pela indústria cultural. Como se o registro das contradições do país em livro ou vídeo fosse a parte que coubesse aos excluídos no latifúndio político-cultural.

Mas vale ressaltar também o aspecto econômico por trás da invisibilidade de fenômenos como o do hip-hop paulistano. Pois não se trata de algo exatamente simpático às gravadoras – como é Michel Teló.

Claro, Teló é também mais inofensivo. Pense na letra de “Ai, se eu Te Pego”. Agora leia estes versos de “Num é só ver”, de  Emicida e Rael da Rima:

"Empresários perdem milhões
Pobres acham, devolvem
Barões matam nações
Que se refazem, se movem
Manipulam informações
Fodem!
Grandes populações
Que não se envolvem
Trancados em mansões
É, eles podem
Seguros das monções
Oh right, no problem
Epidemias, liquidações
Dormem pessoas simples nos barracões
Orem
Calam manifestações
Olhem
Por cifras, com vidas
Não estranhe que joguem
Atrás de notícias compradas
Se escondem
Sem dó tiram comida
De outro homem
Artistas fazem rir
Presidentes fazem chorar
Tiros são barulhentos
Mas não impedem de escutar
O canto dos que lutam pelo povo
Sempre vivo
Gente louca faz música
Gente séria explosivo".

Muito mais elaborado que Teló? Expressivo? Relevante? Importante? Sim, mas não somente isso. Basta observar que Emicida tem posição declarada contra o latifúndio. Rincon Paciência fala em rap “resistente”.

Para quem luta pela manutenção do status quo, deve soar inquietante.

Festival Moinho Vivo
Quando: domingo (22), a partir das 14h
Onde: Favela do Moinho – R. Doutor Elias Chaves, 20 (próx. Viaduto da Avenida Rio Branco)
Quanto: doações de alimentos, roupas, materiais de construção, materiais escolares, brinquedos ou remédios.

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sábado, 21 de janeiro de 2012

São Paulo, 458 anos
Drama das Secas” era projeto de Josué de Castro e Cesare Zavattini

A obra de Rodolfo Nanni não é extensa. Ele já foi chamado de cineasta bissexto. Mas já se declarou “menos que isso” – diante das dificuldades para filmar no Brasil. Foi delicadamente biografado pela jornalista Neusa Barbosa como “um diretor persistente”.

Nanni fez dois longa-metragem de ficção. Ambos foram premiados. “O Saci”, quatro vezes. Ganhou o prêmio homônimo, oferecido pelo Estadão, o jornal mais tradicional da cidade; o prêmio Governador do Estado de São Paulo; o prêmio Curumim, do jornal carioca Diário de Notícias; e o prêmio Índio, do Jornal de Cinema. Todos em 1954.

Veja aqui um trecho do filme, onde Narizinho é transformada em pedra pela Cuca:


“Cordélia, Cordélia” (1971) foi baseado em peça de Antonio Bivar. O filme levou o Prêmio Especial de Qualidade do Instituto Nacional de Cinema. Lilian Lemmertz foi eleita a Melhor Atriz no prêmio Coruja de Ouro.


Nanni também foi laureado pelo curta “Realidade de um Plano” (1962). Era o prêmio Municipalidade de São Paulo. “Os Vencedores” (1968), feito para o Instituto Nacional de Cinema, documentou os filmes e realizadores brasileiros contemplados em festivas internacionais. Foi exibido no Festival de Veneza, naquele mesmo ano.

O DRAMA DAS SECAS

Mas foi Em 1958 que Rodolfo Nanni realizou seu projeto mais ousado: o documentário “O Drama das Secas”. Filmado no interior de cinco Estados nordestinos (BA, PE, CE, PB e RN), o filme foi patrocinado pela Associação Mundial da Luta Contra a Fome.

A obra foi feita em parceria com ninguém menos que Josué de Castro. O autor de “Geografia da Fome” era diretor da FAO, o órgão da ONU voltado para a alimentação – curiosamente, hoje, dirigido por outro brasileiro, José Graziano da Silva.

O projeto original era um filme assinado por vários cineastas, sobre a fome no mundo. Um desses diretores seria Roberto Rossellini – um dos diretores que mais revolucionaram a sétima arte, peça-chave do neorealismo italiano.

“Partimos do Recife, com dois jipes do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas”, conta o diretor no site do filme “O Retorno”:

- Levamos uma câmera 35mm e algumas latas de negativo, prontos para registrar a miséria e a fome endêmica de toda uma população. Percorremos uma grande parte dos estados de Pernambuco, Ceará e Paraíba, num percurso de cerca de 4 mil quilômetros.

Eles passaram por pequenas cidades, “de uma pobreza inimaginável e de imensos territórios onde não havia nada, além da terra seca, rachada, leitos secos de rios”. “Animais mortos e pessoas, velhos, jovens e crianças sub-nutridas”, relata. “Uma paisagem de desolação”.

O filme foi exibido nas principais capitais europeias. Ganhou o prêmio “Saci”, em 1960 (o prestigiado prêmio do Estadão), e o prêmio “Municipalidade de São Paulo”, no mesmo ano.

O CINEMA ITALIANO

O idealizador de “A Geografia da Fome no Mundo” foi Cesare Zavattini, o maior roteirista do neorealismo - escola que também ajudou a fundar. Foi ele quem assinou as melhores obras do diretor Vittorio de Sica, como “Ladrões de Bicicleta”, “Milagre em Milão” (leia aqui uma análise sobre a atualidade do filme) e Umberto D.

- O Zavattini queria fazer um filme internacional sobre o problema da fome no mundo, inspirado no livro "Geopolítica da Fome", do Josué de Castro. Eu fui convidado para fazer a parte referente ao Brasil. Acontece que só nós é que fizemos. E dei o nome de "Drama das Secas". O restante do projeto não aconteceu.

Rodolfo Nanni estudou na França, no Institut des Hautes Études Cinematographiques. Mas foi o cinema italiano – sua estética e seu compromisso – que reverberou em sua obra:

- Minha referência, naquela época, foi justamente a da explosão do formidável cinema italiano. Tive relações pessoais com Zavattini e boa amizade com Sergio Amidei (autor de "Roma Cidade Aberta", de Rossellini).

Nanni conta que esteve junto com Rossellini no Brasil. “Ele também tinha planos de
filmar no nordeste, inspirado no livro do Josué de Castro”.

O diretor voltou 50 anos depois ao Nordeste, para fazer "O Retorno". O filme contém várias cenas de "O Drama das Secas". Veja o trailer:


Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

LEIA MAIS:
São Paulo, 458 anos
Aos 87 anos, Rodolfo Nanni busca recursos para filmar sua cidade

por ALCEU LUÍS CASTILHO (
@alceucastilho)


Em 1954, São Paulo fazia 400 anos. Rodolfo Nanni ganhava quatro prêmios pelo filme “O Saci” (1953), o primeiro filme brasileiro para crianças, a partir da obra de Monteiro Lobato. Em 2012, o cineasta tenta há três anos obter recursos para filmar sua cidade.


Ele está com 87 anos. É o diretor mais longevo do cinema brasileiro – à frente de Nelson Pereira dos Santos, que está com 83 anos. Dirigiu “O Drama das Secas” (1958), de repercussão internacional. Pede respeito.

Um respeito compatível com sua trajetória premiada.

O Saci” estreou no Festival Internacional do IV Centenário da Cidade de São Paulo e ganhou quatro prêmios.  O documentário “O Drama das Secas” e a ficção “Cordélia, Cordélia” (1971) também foram obras reconhecidas. Em 2008 ele filmou O Retorno”, revisitando a região do semi-árido documentada 50 anos antes.
Nos anos 70 fez vários documentários, quatro deles exatamente sobre São Paulo.

O PROJETO

O nome do atual projeto em homenagem à sua terra é “Cidade Ilimitada”. “A Cidade Ilimitada é São Paulo, ilimitada em todos os sentidos, sobretudo no grande contraste entre riqueza e pobreza”, conta Nanni ao blog Outro Brasil.

O roteiro conta a história de habitantes de diferentes classes sociais. “É, a rigor, um filme de denúncia, mas cheio de situações charmosas, mulheres bonitas, sexo, etc”, descreve o diretor.

Os personagens são um rico empreendedor, um operário, uma atriz, um jornalista e um outsider. A sinopse do filme adianta que os personagens vão se encontrando numa trama dramática, desembocando num final surpreendente.

- O que me obsessiona é a cidade como um todo. Há muitas tomadas de helicóptero. Bairros ricos, favelas, congestionamentos, favelas nas margens de estradas de primeiro mundo, como no rodoanel.

Filho de imigrantes italianos com alguns recursos, Nanni nasceu num casarão da Rua Oscar Freire, entre a Rebouças e a Artur de Azevedo. Ali ele conviveu com os modernistas Mário e Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, que iam visitar outro morador da casa: o escultor Victor Brecheret, seu primo. Acharam pouco? Seus professores de pintura atendiam por Anita Malfatti e Cândido Portinari.

Com essa autoridade de quem viu a cidade crescer, Rodolfo Nanni faz críticas às atuais políticas da prefeitura e do governo estadual na região central:

- As ações na cracolândia me parecem malucas. Claro que tem que acabar, mas não assim. Trata-se de um caso de saúde pública, não de polícia. A polícia tem que ir atrás dos traficantes.

Diante da realidade da especulação imobiliária, ele lembra que um dos personagens principais do filme é o dono de uma grande firma de engenharia. “A questão social quase nunca é levada em conta no Brasil”, afirma o cineasta.

OS RECURSOS

Nanni não esconde as mágoas diante das dificuldades. “Eu tenho convicção de que é um belo roteiro, inclusive afirmado por pessoas que têm nível para entender e julgar”, diz ele. “Mas é incrível, já entrei três vezes no Fomento do Cinema Paulista e esse filme, essencialmente paulista, não ganha”.

O diretor não sabe o motivo. “O insondável mistério dos júris”, afirma. Ele considera os júris imprevisíveis – e muitas vezes absurdos:

- Um exemplo: no Fundo Setorial, quando seu projeto é escolhido e você tem que ir ao Rio para fazer aquilo que chamam de "defesa oral", você, na verdade, não pode defender (ele enfatiza essa impossibilidade), mas estar de acordo com as críticas e  sugestões dos pareceristas. Não é um absurdo? Que espécie de “defesa oral” é essa?

O próprio cineasta tenta obter os recursos para o filme.

- Para realizar "O Retorno" ganhei no edital do Fomento do Cinema Paulista e ainda o "Minc-Fiesp". O absurdo é que ganhei o fomento para fazer o filme no nordeste, mas não consigo ganhar para fazer o filme sobre São Paulo. É kafkiano.

Rodolfo Nanni desabafa:

- Parece que, no Brasil, o fato de ser “consagrado”, como você diz, conta contra. Ser um diretor histórico em nosso cinema não quer dizer nada. Sem me vangloriar (porque não há glória nisso), creio ser o diretor brasileiro mais antigo em atividade e realizei, há 60 anos, um filme que as crianças adoram até hoje.

Diante da idade e do currículo, ele acha que deveria não somente ser respeitado, mas ter facilidades para realizar seus filmes.

- Veja o Manoel de Oliveira, com 104 anos e continua filmando! A Secretária do Audiovisual, Ana Santana, me disse que iria conseguir uma forma de patrocinar filmes para os diretores históricos. Infelizmente, não tive mais notícias sobre isso.

O orçamento aprovado pela Ancine é de R$ 4,8 milhões. O diretor pretende pedir redimensionamento, para menos. Não é o único projeto para o qual não conseguiu obter recursos. Um deles é uma cinebiografia da pintora Tarsila do Amaral.

Nanni disse que não conhece nenhum sistema de captação pela internet, como o do coletivo Catarse.

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“Drama das Secas” era projeto de Josué de Castro e Cesare Zavattini

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sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Sobre a morte de crianças indígenas, Luiza e a falta de assunto na internet

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Treze crianças indígenas morreram nos últimos dias no Acre, vítimas de diarreia, vômito e dores. A suspeita, rotavírus. Ainda não há diagnóstico. Elas eram dos povos Hui Nikui e Madjá, do Alto Purus. No ano passado, também em janeiro, oito crianças Xavante morreram após um surto de pneumonia, em um intervalo de 15 dias. Essas crianças não estavam no Canadá – estavam no Brasil. Um País que ainda violenta seus povos originários.

A referência ao Canadá não será entendida por quem leia este artigo daqui a alguns anos. Refiro-me à insuportável leveza que tomou conta da internet nos últimos dias, a partir de uma piada sobre uma tal de Luiza – que (apenas isso) viajou para o Canadá. Essa informação singela foi dita num comercial paraibano e se tornou mania nacional. Um assunto seríssimo, opinou hoje o jornalista Gilberto Dimenstein em sua coluna no UOL. Digno de estudos aprofundados.

Hoje, 20 de janeiro, é o Dia Nacional da Consciência Indígena – e merece uma reflexão de todos os brasileiros sobre a indiferença nacional diante das violações sistemáticas dos direitos dos povos indígenas. Crianças e adolescentes de diversas etnias são assassinadas, ou morrem por falta de assistência médica. Mas não se tornam – como a tal Luiza - um assunto viral nas redes sociais. Por quê?

Este é um vídeo divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário com notícia sobre as crianças do Acre:

A esse acontecimento somou-se outra notícia do Acre, publicada na segunda-feira pelo 
Blog da Amazônia, no portal Terra. A antropóloga Oira Bonilla - nesse espaço mantido pelo jornalista Altino Machado - contou que um falso pastor desapareceu com 13 índios da etnia Paumiri. Entre eles duas crianças e seis adolescentes.

Outra notícia (com um pouco mais de repercussão) foi dada em primeira mão, no início do ano, por blogs de Maranhão e de Brasília: a denúncia, por lideranças indígenas e pelo Cimi, de que uma criança da etnia Awá-Guajá, de 8 anos, foi morta – e queimada – por madeireiros no Maranhão.

Essas mortes não foram gravadas em vídeo, não chocaram como o espancamento do yorkshire em Goiânia. E não geraram “memes”, piadinhas na internet do mesmo nível da velha piadinha do pavê. (“É para ver ou...”) Talvez porque essas ondas sejam auto-referentes demais, uma espécie de Vídeo-Show do mundo virtual.

CONSCIÊNCIA EMBOTADA

Há no Brasil um embotamento da consciência, após anos de decepção com os governos de PT e PSDB – esses que deveriam ter resgatado dívidas brasileiras históricas. A dívida em relação a 511 anos de invasão dos territórios indígenas ainda não começou a ser paga. Em meio à falta de alternativas políticas (e a esse emburrecedor Fla-Flu político) multiplicam-se as fugas – quando não as conivências.

Enquanto isso, algumas de nossas 210 nações indígenas seguem sendo dizimadas. No Maranhão, baixaram de 280 mil, no fim do século 19, para 25 mil pessoas, atualmente. Mas o assunto, no início de 2012, é a sorridente Luiza – “que já voltou do Canadá”.

Índios bebendo água com barro no Rio Xingu, por conta da Usina de Belo Monte? Um presidente da Funai omisso? O ministro da Justiça preocupado em impedir a entrada de haitianos no Acre? Não: melhor compartilharmos mais uma piadinha no nosso Facebook.

Diante da crise recente na USP, Gilberto Dimenstein chamou os alunos ativistas de “delinquentes mimados”. Tudo porque tinham ocupado a reitoria, em protesto contra a violência da PM no campus. O mesmo jornalista não escreveu ainda, nos últimos tempos, sobre matança de indígenas. Ele, que já foi “especialista” em infância e em educação, sugere que seja estudada a repercussão desse “efeito Luiza”.

Penso que seria melhor estudar a indiferença nacional diante de crianças mortas por diarreia. Ou assassinadas por madeireiros – não podemos nos esquecer que, em 2009, outra criança Awá-Guajá recebeu um tiro na nuca, numa região que a Funai insiste em ignorar. Em 2009 outras dez crianças indígenas foram assassinadas no Brasil.

O PAPEL DO GOVERNO

Mais fácil pensar em pesquisas banais que cobrar ações políticas – de todos os governos de todas as origens partidárias. Diante da situação dos povos indígenas, por exemplo, o que está fazendo exatamente o governo federal? Vamos discutir isso na internet? Ou somente mudanças nas leis americanas?

Segundo o Cimi, em dezembro, apenas 33% dos recursos federais para a proteção de povos indígenas, em 2011, tinha sido gasta. Os gastos com saúde indígena chegaram, no ano passado, a apenas 64% da verba prevista.

Qualquer relação desses números com as mortes daquelas crianças será mera coincidência?

Esse é o Brasil real, que emerge acima dos “memes” e do Big Brother - e que os nossos políticos sempre insistiram em ignorar. É o Brasil da expulsão de sem-teto (em São Paulo e em São José dos Campos), da tortura na Cracolândia, das violências policiais admitidas como algo normal.

Dia a dia, porém, post após post, os representantes mais ilustres da sociedade brasileira (estudantes, jornalistas, advogados, médicos, engenheiros, atores, cineastas) têm chegado ao mesmo nível de consciência daqueles ilustres políticos – praticando, nas redes sociais, a sua dose diária de escárnio.

Estarei exagerando? Sendo por demais enfático? Sinto muito: no Dia Nacional da Consciência Indígena as palavras não poderiam ser mais simpáticas ou conciliadoras. Pois, do Canadá à Cracolândia, do Acre a São José dos Campos, dos gabinetes de Brasília à nossa escolha diária de temas nas redes sociais, o verbo a ser utilizado é esse mesmo: escarnecer.

LEIA MAIS:
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Cimi diz que criança de 8 anos foi queimada por madeireiros no MA

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