quinta-feira, 2 de julho de 2015

Carta para a minha filha de 15 anos. (Sobre um país que se reduz.)

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

No seu próximo aniversário você fará 16 anos. Ainda outro dia - ontem mesmo, informam meus olhos angustiados - era uma criança. Poderá votar. E que país receberá? Um país mais seguro? Onde possa caminhar nas ruas sem que seu pai fique intranquilo? Um país mais maduro? Que enfrente seus problemas sem simplismo, em patamares civilizatórios? Mais alegre? Não. Um país com... redução da maioridade penal. Sua geração poderá ser presa, mais do que já é. Eis o legado da minha geração. Um país muito pior do que aquele entrevisto na Constituição. Para trás. Reduzido.

Escrevo enquanto ouço Mike Oldfield, aquele trecho do "Tubular Bells" que foi parar na trilha do Exorcista. O disco é de 1973. Estávamos na ditadura e o presidente chamava-se Médici. Eu era uma criança. Os jornalistas, naquela época, costumavam ser comunistas. Sonhavam com um país melhor, sem Médicis. Alguns morreram por isso. Outros se venderam. Alguns escrevem (ou editam, tanto faz) textos que dão aval a essa sanha vingativa, a essa lógica do extermínio. Às favas os escrúpulos. Os escrúpulos de consciência, a mínima percepção de que algo diferente teria de passar pela educação.

Não exorcizamos os nossos males, Helena. O país onde choravam Marias e Clarices não puniu quem tinha de ser punido; anistiou quem não devia. E agora os filhos cegos ou cínicos daqueles senhores de óculos sinistros pregam abertamente a barbárie. Eu e meus amigos (em boa parte jornalistas entristecidos) ajudamos as coisas chegarem a esse ponto, esse ponto que quase parece um ponto do não retorno. Onde teremos de engolir em seco e assistir ao culto ecumênico das serpentes. Os ovos já tiveram tempo de esquentar novamente. E os torturadores não precisam mais da ligação direta dos porões.

Você que decidiu (aos 10 anos) ser uma psicóloga terá muito trabalho. Atenderá a gerações com camadas de traumas; camadas ditatoriais e democráticas, semi ditatoriais, semi democráticas. Com conquistas aqui e ali, uma ou outra defesa mais sistemática de minorias, em meio a uma guerra civil. Mas gerações herdeiras de um gigantesco marasmo, de um pacto pela mediocridade, um acordo conivente com as mencionadas forças sinistras. Em um país que não reconhece nem os indígenas, que não distribuiu suas terras. Um país, com otimismo, pela metade. Talvez um país reduzido a seu dízimo.

"E hoje eu canto e choro... num show..." Cantava o mutante Arnaldo Baptista (você sabe o quanto ele é importante para mim) em 1974. O enlouquecido Arnaldo, o visionário Arnaldo, o Arnaldo que se agarra a mundos paralelos para poder enfrentar a realidade. E ele completava, lá naquela obra-prima, o "Loki": "Seria o maior barato tocar seu coração". Sim, Arnaldo, cê tá certo. Mas diz aí, para onde você vai? "Vivo a pensar pra frente. Quando não mais houver... cidaaaaaade".

Com mil de anos de idade lamentaremos estes tempos sombrios, Helena. Com 16 anos você olhará para mim e ainda saberá - sempre saberá - que não desisto. Mas sim, está sendo difícil processar essa dor (entre outras dores, esta dor específica), a dor de ver um projeto de país fugir por entre os dedos. A paisagem será o grito de Munch. Tocaremos nossos corações, aqueles de uma minoria perplexa, apenas eles.

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