sábado, 7 de janeiro de 2012

“Sagrada Terra Especulada”, filme sobre o DF, é síntese sobre especulação imobiliária

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

“Sagrada Terra Especulada” (2011) trata do Setor Noroeste, em Brasília – um projeto destinado aos moradores de alta renda apresentado pelos construtores como “o primeiro bairro ecológico do país”. No meio do caminho, porém, há famílias indígenas. Elas moram desde 1957 no Santuário dos Pajés, na Terra Indígena Bananal. Ali se reúnem índios Fulni-ô Tapuia – mas também representantes de diversas etnias. O filme é a história de uma resistência, ao longo dos últimos anos no Distrito Federal.

O filme dirigido por Zé Furtado consegue um resultado que não interessa somente aos moradores do DF: pois trata de temas centrais nos debates nacionais deste início de 2012. Boa parte do filme trata de direitos indígenas. E esta semana estourou a denúncia da morte de uma criança indígena – queimada – no Maranhão. Em São Paulo, o incêndio na Favela do Moinho, no fim do ano, e a retirada à força de dependentes químicos da Cracolândia, na região central, expuseram nos últimos dias o tema da especulação imobiliária – que dá nome à obra. (Veja na íntegra aqui.)



OS ÍNDIOS

A obra começa apresentando o cotidiano dos indígenas no Santuário dos Pajés. “A terra é minha, a maloca é minha”, exclama um dos moradores. O pajé Shantxiê Tapuia mostra o trabalho com plantas medicinais e fala do patrimônio fitoterápico brasileiro – um projeto premiado pelo Ministério da Cultura, em 2007. Furtado é eficaz ao mostrar a dimensão sagrada da terra, presente no discurso e no dia-a-dia dos moradores. “Não é terra para vender, mas para sobreviver”, diz Caftho Fulni-ô.

Ao mesmo tempo, o diretor apresenta os conflitos – motivados pelo projeto imobiliário, capitaneado pela empresa Terracap. Em 30 de março de 2009 uma casa foi queimada “de forma criminosa”. Com isso, um casal de indígenas desistiu e voltou para Pernambuco. “O GDF (governo do Distrito Federal) quer bairro nobre para a classe alta”, resume um morador. “Onde tem indígena há defesa de brasileiro”, diz outro. “A natureza deve ser a mãe de todos os brasilienses”.

Numa sequência impagável, o presidente da Terracap na época, Antonio Gomes, tenta convencer os índios a sair do local. “Na verdade”, gagueja, “vocês estão bem no meio do bairro”. A direção tem lado: os contrários ao projeto imobiliário expõem desde o início argumentos contundentes; os defensores aparecem em situações patéticas, ou que exibam as contradições – e os interesses financeiros evidentes.

OS POLÍTICOS

Furtado move-se do tempo sagrado para um ritmo com mais edições. As autoridades políticas são descritas uma a uma. Com ênfase no vice-governador Paulo Octavio, ele mesmo uma marca imobiliária em Brasíllia, e no governador José Roberto Arruda (DEM) – que teria seu mandato cassado em 2010.  “Não tenho nada contra alta renda”, arrisca o paranaense Cássio Taniguchi, secretário do Meio Ambiente. (Reproduzimos aqui os cargos da época em que o filme foi rodado.)

Paulo Octavio (PO) é apresentado como marido de Ana Kubitschek – neta do fundador da cidade, JK. E como um antigo sócio de Sergio Naya, aquele ex-deputado que construiu no Rio um prédio que desabou. Arruda tem seu prontuário político enumerado, como a cassação pela violação do painel de votação do Senado. Sarcástico, o diretor escolhe uma foto particularmente monstruosa do senador Antonio Carlos Magalhães para ilustrar o período. Arruda também é apresentado como o “Big Boss” – um corrupto assumido.

UM PROJETO “VERDE”

O filme move-se dialeticamente, a partir de contradições. O marketing do “primeiro bairro ecológico do país” é demolido pelo diretor com várias machadadas contra a "sustentabilidade". “A máfia se veste de verde e cria a primeira obra baseada na aniquilação da natureza”, diz o locutor. O antropólogo José Jorge diz que não há condomínio verde. “Condomínio é cinza”. Um dos lugares com destruição prevista é a área-tampão do Parque Nacional.  PO afirma em entrevista que Taniguchi e ele vão fazer uma “cidade ambientalmente correta”. O repórter pergunta: “Na área-tampão do Parque Nacional?”

Outra cena antológica ocorre num momento em que a representante do Instituto Brasília Ambiental (Ibram-DF) expõe um projeto do ex-governador paranaense Jaime Lerner (DEM) – sem licitação – no Parque Burle Marx. Seria uma casa onde os índios poderiam se reunir e, diz ela, ser uma atração turística. Alguém dispara a palavra “zoológico”. E ela engole: “Não é zoológico, é uma atração realmente”. Corta para Arruda e Paulo Octávio discursando. PO interrompe Arruda: “Fala que vamos construir uma oca para eles morarem”. Arruda repete, empolgado.

PROPAGANDA E REPRESSÃO

Os principais meios de comunicação de Brasília – como o Correio Braziliense e o Jornal de Brasília – são definidos como servis ao projeto imobiliário. O diretor mostra um especialista atacando as ocupações irregulares das mansões. A legenda informa que a entrevista não foi veiculada. O jornalista Alan Schvarsberg informa que, entre o fim de 2007 e o início de 2009, o Correio Braziliense publicou 38 matérias no caderno Cidades favoráveis ao Setor Noroeste. No mesmo período, o caderno veiculou 94 propagandas do ramo imobiliário.

Seguem-se cenas de repressão. Depois da mídia, a polícia. Seguranças batendo em manifestantes, policiais batendo em manifestantes, cavalaria em cima dos manifestantes, arma apontada para manifestantes – e cinegrafistas. As cenas de batalha durante o “Fora Arruda” são impressionantes – e candidatas a uma coletânea sobre o saco de maldades policiais diante de atos democráticos, uma constante no Brasil atual. (Escrevo no momento em que isso ocorre de modo bárbaro contra estudantes no Piauí.)

FINAL SEM FINAL

A partir dessas imagens o filme ganha o aspecto de uma obra com atualização constante. É descrita a promessa do novo governador, Agnelo Queiroz (PT) de não trair ninguém – não cumprida. Em 16 de agosto de 2011, duas empreiteiras destruíram uma área do Santuário dos Pajés. Depois tiveram de sair.  No dia 25 de agosto a Justiça Federal determina que a área dos indígenas não pode ser invadida. E que a Funai deve concluir o processo de demarcação das terras.

O filme se encerra informando que o Cerrado continua sendo devastado. E que a batalha contra o projeto imobiliário continua. Pouco antes o diretor recolocara em cena o pajé Shantxiê Tapuia, dizendo que os índios estão em guerra contra os brancos:

- Eles declararam primeiro guerra contra a terra. Depois, contra os filhos da terra.

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3 comentários:

Telsen disse...

É uma vergonha como a gestão da terra é entendida no Brasil, não importa como as pessoas estejam, só importa o interesse da especulação imobiliária.

Em São José dos Campos - SP, essa semana a polícia irá desocupar 3000 famílias de uma área ocupada há 8 anos para devolver para a especulação imobiliária. É uma vergonha!

por às disse...

Para a especulação imobiliária não existem leis. Ela deve ser combatida e denunciada.

A perseguição aos indígenas nunca terminou e isso tem que ser mostrado ao maior número de pessoas, para tirá-los da invisibilidade, dar voz às suas lutas e expor a vergonha de um país que ainda hoje persegue e extermina indígenas.

Devemos denunciar também a criminalização aos movimentos sociais que é escancaradamente promovida por corporações, mídias corporativas e governos. Ao mesmo tempo podemos assistir ao mundo reagindo aos absurdos promovidos pelos governantes com o povo nas ruas reivindicando seus direitos. Aqui, em Brasília, um governador que foi perseguido nos anos da ditadura (Agnelo-PT) ordena que 800 policiais façam a proteção de uma construtora privada e que ataquem manifestantes da sociedade civil. Um documento da justiça foi levado ao local e fez com que 800 POLICIAIS A MANDO DO GOVERNADOR SE RETIRASSEM SOB VAIAS E GRITOS DE VÁRIOS MANIFESTANTES. A resistência é foda! Vamos lutar contra a criminalização dos movimentos sociais.

As mulheres guerreiras manifestantes ativistas, todos os lutadores e apoiadores do Santuário dos Pajés que resistem junto com os indígenas são o orgulho dessa cidade. Agradeço ao blog Outro Brasil e Alceu Luís Castilho pela análise do filme. O Santuário não se move!

“Somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de ser feito.”(Albert Camus)

Zé Furtado

Alceu Castilho, jornalista. disse...

E eu agradeço a reprodução dessa frase precisa de Camus, Zé Furtado.

O tema do filme seguirá atual, infelizmente. Em São José dos Campos há risco de reintegração de posse na Ocupação Pinheirinho, com 2 mil famílias.

Da minha parte, seguirei dando voz a quem não tem espaço na mídia hegemônica. Com visão crítica, mas respeito aos movimentos sociais e suas lutas.

abraço,
Alceu Castilho