por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
A grande imagem do domingo – e do ano - é a das mães com criança no colo, o fogo na Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos, ao fundo. Que tipo de sociedade patrocina cenas como essa? E que tipo de ser humano acorda para trabalhar, numa segunda-feira, e consegue apoiar essa e outras demonstrações de barbárie?
Empresto o título deste artigo do jornalista Aluizio Palmar, autor de um livro chamado: “Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?” Ele fez uma via crucis por Brasil e Argentina em busca de corpos de amigos mortos pelos regimes militares. Tratava-se de uma necessidade civilizatória – a busca de Palmar não era só por corpos. Era por um sentido da existência, pelo resgate de ideais compartilhados, mas esquecidos.
Algo no Brasil está sendo enterrado com velocidade atroz - e não estamos nos dando conta da dificuldade de futuro resgate. A palavra “escrúpulos” foi consagrada pelo ex-ministro Jarbas Passarinho durante aquele mesmo regime militar. Diante de alguma dificuldade, raciocinava ele, “às favas os escrúpulos de consciência”. Quase 50 anos depois, a frase segue inquietantemente atual. É gritada, falada, murmurada. Sua incidência e sua abrangência colocam em xeque a possibilidade de convivência - cordial - neste país.
Não falo apenas dos governantes que patrocinam a violência institucional contra milhões de brasileiros. Não somente do cinismo de cúpula, dessa farsa que pode ser resumida pelo calote sistemático do pagamento de precatórios. Um governo que não paga suas dívidas judiciais está desrespeitando a lei, certo? Mas o discurso legalista dos poderosos é casual, de conveniência: o próprio governo age ao arrepio de decisões judiciais - sem que alguém possa acionar a Tropa de Choque contra o governador.
Eu falo não somente desses farsantes de ocasião, dos mentirosos de colarinho branco e alto coturno, mas do cidadão comum. De classe média. Alta. Baixa. De seres humanos que escarnecem da agonia de seus semelhantes. Falo daqueles cidadãos que conseguem fazer piada com a tragédia alheia – a falta de moradia, de terra, de emprego. Dos policiais da Tropa de Choque, em São José dos Campos, que riem enquanto atiram granadas e balas de borracha contra populações indefesas.
Refiro-me, portanto, a gente muito próxima de nós. Que, como os soldados que bancaram e bancam regimes fascistas pelo mundo, tomaria, se tivesse oportunidade, as mesmíssimas decisões que Geraldo Alckmin ou o juiz cínico de plantão; que se comporta de maneira semelhante (acumuladora, inescrupulosa) à do capitalista Naji Nahas; que, com balas de borracha e gás lacrimogêneo à disposição, não hesitaria em agredir outros brasileiros que nasceram sob o signo da miséria.
Estou a pensar nos milhões de seres humanos (que podem ser nossos tios e colegas de trabalho) que apoiam as maiores e menores agressões diárias à democracia. E que se regozijam com isso – achando-se o máximo. Que patrocinam (com a imensa arrogância dos analfabetos da cidadania) os abusos policiais em manifestações de estudantes e professores; que não se importam que haja tortura, e tortura em larga escala – muito tempo depois do fim oficial do regime militar.
PONTAPÉS EM CRIANÇAS
Vejo cada uma dessas pessoas – muito mais do que metaforicamente - dando socos e pontapés naquelas mulheres de São José dos Campos; derrubando-as ao chão, humilhando-as. Com o país e o mundo pegando fogo, em volta. Vejo cada uma dessas pessoas atirando aquelas crianças em algum galpão enlameado. Escarnecendo do sofrimento delas, enviando-as para a fogueira, alimentando o fogo com sua violência e seu cinismo.
Não se trata, portanto, de apenas demonizar este ou aquele partido, este ou aquele governador. Que seja feita a dose diária de repúdio a cada um desses senhores, desses senhores-de-engenho, desses capatazes, desses verdugos – torturadores, assassinos, genocidas. Mas sem maiores ilusões de que o partido alternativo ou o governador alternativo sejam tão diferentes assim.
Algumas supostas exceções são apenas aparentes: quando obtêm chances reais de chegar ao poder, fazem pacto com todos os demais - todos os que praticam ou patrocinam a violência diária contra milhões de espoliados, contra as centenas de Ocupações Pinheirinho espalhadas pelo mundo. Sobram algumas exceções de fato, autenticamente indignadas – mas quase sem chances eleitorais.
Essas chances são diminutas exatamente porque existe bem pertinho de nós uma legião de seres humanos sem escrúpulos, prontos a apoiar toda sorte de violência contra seus semelhantes. São eles que beijam virtualmente a mão dos Nahas e dos Calheiros, dos Maluf e dos Sarney, dos répteis (com todo respeito aos répteis) que infestam o Judiciário, o Legislativo e o Executivo.
São esses brasileiros muito próximos de nós que alimentam esse inesgotável saco de maldades. Tomam cervejinha conosco. Cantam parabéns aos nossos filhos nas festas de aniversário. Nas redes sociais, são nossos “amigos”. Nos portais (naqueles fóruns que vêm se consagrando como o grande esgoto do pensamento), postam comentários homofóbicos, racistas, higienistas – ou no mínimo indiferentes.
Esses brasileiros são pessoas violentas. Agridem sem-teto. Agridem sem-terra. Batem em estudantes, em moradores de rua, em indígenas, em dependentes de crack. E não se dão conta disso. Não é com a mão deles que se exerce o controle das massas. Existe o que alguém já chamou de “violência da calma”. Uma violência-cúmplice, uma violência que não deixa marcas no próprio corpo – ou na própria consciência.
Esses brasileiros violentos e cúmplices acreditam firmemente que os patifes anteriormente citados são a causa de todos os males. Ou, muito pior que isso: que quem resiste a todas essas ignonímias é quem seja o problema de fato; os inconformados é que são os culpados pela ausência evidente de civilização. Por essa visão torpe e míope do mundo e dos processos históricos, são eles – os ativistas, os resistentes – que devem ser eliminados. E, portanto, ridicularizados. Agredidos.
Para disfarçar a sanha de violência, que se inverta o ônus. Que se definam os resistentes como “estudantada”, que se apontem os resistentes como “traficantes”, ou maconheiros – ameaças a “gente de bem”. Que se rebaixe quem vai contra a corrente ao mesmo nível – subterrâneo – de consciência embotada. Afinal, porque não dizer, os meios de comunicação de massa são a mais completa tradução desse reino dos cúmplices.
A foto das mães em São José dos Campos significa muita coisa. Não enxerguemos nela somente motivo para indignação coletiva – porque esta, a rigor, contra todas as aparências, não existe. Nem mesmo a indignação de classe existe, infelizmente, queridos amigos revolucionários – pois as lutas desse curioso espécime (o ser humano) são várias, não somente uma. A violência do sistema econômico é apenas uma das expressões da barbárie.
Essa foto das mães em fuga (com os mencionados país e mundo pegando fogo ao fundo) significa um grito contido. Por um lado, mostra a relativa impotência dos resistentes. Por outro, a força (não se sabe bem vinda de onde) que nos leva a manter alguma esperança. Por fim, esconde um amplo contexto de violência latente. A trilha sonora dessa imagem é sórdida – o coro de brasileiros que, diariamente, sob risinhos, piadinhas e comentariozinhos, ateiam fogo à democracia.
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8 comentários:
Alceu, muito bom o texto, postei inclusive no blog da Miséria. Mas discordo do fim. A democracia não existe no capitalismo. E a luta de classes existe, quer queiramos ou não, quer sejamos revolucionários - com ou sem partido - ou não. O que aconteceu no Pinheirinho foi uma demonstração clara de que a classe que está no poder é contra os trabalhadores. Mafiosos, jagunços, bandidos, assassinos: Naji Nahas, o prefeito Cury, a juíza, o coronel, o governador Alckmin. Todos de uma classe que suga diariamente os trabalhadores. Podemos chamá-la de capitalista, burguesa, ou dos patrões. Mas ela infelizmente existe, age e atua todos os dias com seus policiais e suas redes de TV disseminando a noção de que a propriedade é algo sagrado que sempre existiu e sempre existirá. O foda é que pra superar esse sistema temos que ir além das bíblias dos partidos ditos revolucionários, acho eu. Mas a história pode nos surpreender. Revoluções, quer queiramos ou não, acontecem. E estão muito além do nosso controle.
olá, João. Vou tentar me expressar melhor. Ao trecho:
"A foto das mães em São José dos Campos significa muita coisa. Não enxerguemos nela somente motivo para indignação coletiva – porque esta, a rigor, contra todas as aparências, não existe. Nem mesmo a indignação de classe existe, infelizmente, queridos amigos revolucionários – pois as lutas desse curioso espécime (o ser humano) são várias, não somente uma. A violência do sistema econômico é apenas uma das expressões da barbárie."
Com isso eu não quis dizer que não exista luta de classes. Os interesses de classe são notoriamente distintos. Mas por que a classe minoritária segue no poder? As esquerdas debatem isso há décadas e não é uma resposta simples.
O que quis dizer é que, na minha avaliação, essa indignação não se espalha, não se torna coletiva, porque a luta econômica está longe de ser a única. Por isso falo em várias "lutas" desse curioso espécime.
Não quero, com isso, tirar a importância do embate de classes. Gostaria que todos tivessem consciência em relação ao sistema econômico - que prevê a exploração da maioria. Estou apenas tentando (modestamente) entender como funciona a alma humana.
Quanto às revoluções, acontecem. Mas sem necessariamente seguir muita lógica. Aliás, este leitor de Ernesto Sabato (um físico com lógica ferrenha que se tornou escritor) concorda que a lógica não seja algo que explique muito bem o homem.
abraço,
Alceu Castilho
Alceu, belo texto. Ainda bem que existe indignação.
Essa operação foi um absurdo em todos os sentidos. Nem falo da abordagem e da retirada (porque isso já é crime), mas da completa falta de razão/lógica ou legitimidade do Estado tomar a decisão de reintegrar esse terreno. Me parece tão “governo às avessas”, que é difícil até criticar a situação pontual. Fiquei mesmo muito assustada.
Um beijo e parabéns pelo trabalho.
Raísa
Alceu, concordo com sua observação. Mas atento ao fim mesmo, a última frase (sendo bem chato).
"A trilha sonora dessa imagem é sórdida – o coro de brasileiros que, diariamente, sob risinhos, piadinhas e comentariozinhos, ateiam fogo à democracia."
Que democracia que estão ateando fogo? O seu texto - muito bom, já escrevi - me passou outra mensagem: a de que não existe democracia.
Somos tatatatataranetos duma relação escrota - estupros, saques - do embate entre europeus, indígenas e africanos. Somos frutos disso e perpetuamos até hoje, nesses 512 anos, esse embate.
Passamos por muitas mudanças mas muita coisa ainda ficou. Demonizamos os anos da ditadura. Mas será que ela acabou? Acabou pra quem?
Indico esse texto em 3 parte das Mães de maio que diz muito:
http://passapalavra.info/?p=47896
http://passapalavra.info/?p=48422
http://passapalavra.info/?p=48428
Raísa, grato!
Sim, a questão é: reintegrar quais terrenos? Aqueles igualmente ocupados ("invadidos") por empresas e ricos não motivam reintegrações de posse. E, portanto, não há como não recorrer ao termo cinismo. Ou a George Orwell, "uns mais iguais que outros".
bj
Alceu
Outras mídias não mostram e quando mostram falam sempre criminalizando as populações carentes como se as ditas “autoridades fossem as santas” e nós, o povo pobre fossemos os demônios, como se eles os políticos fossem os oceanos de sinceridade e honestidade e nossa gente fosse marginal e sem nenhum escrúpulo, como se eles os judiciários fosse a certeza de transparência e de aplicabilidade das Leis com dignidade e nós as nações humildes que só quer um pedaço de terra, um teto para morar, o mínimo de condição, somos os baderneiros, os mau feitores e descumpridores da ordem e da moral. Pinheirinho, Brasil: onde foi que enterraram nossos escrúpulos? Isso nos deixa indignado e nos perguntando como pode isso acontecer em um país que se diz democrático? Acho bacana que todos nós estudantes de comunicação façamos uma boa leitura de fontes como essa e outras boas que estão por aí, mas que não são divulgadas porque não é do “interesse das massas”, dos “Coronéis”, dos latifundiários dos que se dizem donos da “verdade”
Meu amigo Alceu, sua indignação me fez refletir aqui e a poesia me convidou a descrever um pouco dessa situação amigo.
“Brasil”
Balas, cassetetes, Brasília, Brasil, Braseiro
Oh! Quanta safadeza, maldade e corrupção!
Olho e vejo uma sórdida corja de ladrão
Está fétido, imundo este solo brasileiro.
Políticos mau caráter, fascistas e caloteiros
Desonestos, enganadores da nossa população,
Facínoras, que sangram e que matam a nação,
Pousando de benfeitores nos meios de comunicação
A Justiça? Uma fabrica de bandidos! Uma decepção!
A saúde? A moradia? A educação? Senhor tem não!
Esse é o país da pornografia na musica e na Televisão...
Congresso? Câmara e Ministério? O que é isso Cidadão?
Judiciário? Policia? A quem recorrer essa pobre população?
Viva a “Democracia!”... Conforme diz a Constituição...
Santa Luz, 23 de Janeiro de 2012. As 20h58min.
Forte abraço meu amigo e vamos à luta! Farei o máximo para divulgar suas reflexões e indignações, quem sabe começamos um grande movimento neste país?
Edisvânio Nascimento
João,
muitíssimo bom esse balanço, copio aqui os links: http://passapalavra.info/?p=47896
http://passapalavra.info/?p=48422
http://passapalavra.info/?p=48428
Quanto à última palavra do texto, note que não se trata de texto acadêmico. E sim jornalístico, com algumas tentativas de frases de efeito.
Mas, curiosamente, fiquei mesmo pensando nessa última palavra. Concluí que "democracia" era melhor.
Eu costumo usar "democracia chinfrim", "imberbe", ou coisas parecidas. Exatamente por sua face contraditória, por seus autoritarismos embutidos. Mas quis ali mostrar o quanto os tais cúmplices atentam contra ela - ou contra sua face positiva (que existe).
abraço,
Alceu Castilho
salve, Edisvânio.
Gostei do último verso, bastante sintético.
Sim, é preciso fazer essa conexão com os coronéis e latifundiários. O relatório paralelo da CPMI da Terra (que deveria ter sido o oficial), em 2005, foi resumido em livro. No posfácio uma pesquisadora da UFRRJ deixa clara a conexão entre a renda fundiária e o lucro - não somente dos proprietários rurais.
Ela lembra que os donos dos meios de comunicação estão entre os proprietários de terra.
abraço,
Alceu Castilho
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