O vazio na mesa ao lado do bar
Eu estava numa das mesas do Ó do Borogodó, um bar com samba ao vivo na Vila Madalena, lá no fundo. Eram umas duas da manhã, balada de quinta-feira, estava sozinho, observando as pessoas dançarem. Claro, de olho nas mulheres (lindas) que frequentam o local, sentindo-me mais uma vez incapaz de dançar aquilo sem cair no ridículo - e ao mesmo tempo conversar algo minimamente inteligente no ouvido da parceira.
Não estava particularmente deprimido ou coisa parecida, mas com aquela sensação esquisita de quando se sai sozinho à noite em São Paulo. A melancolia estava domada – mas não ausente. E eu lá – eternamente distraído. De repente, do nada, alguém bateu no meu ombro direito e perguntou: “Amigo, você está sozinho?” Assenti, um tanto incrédulo, antes de ouvir o complemento: “Vem sentar conosco em nossa mesa”.
Levantei-me com orgulho. De repente eu me tornava a pessoa mais importante do bar. Aquele homem que fazia o convite não tinha nenhuma segunda intenção. Era apenas generoso. Na mesa estava um grupo de mulheres. Ao lado, o jornalista Xico Sá beijava (em movimentação inacreditável) uma moça – ele depois se juntaria à conversa. Tudo isso percebi em instantes, enquanto respondia: “Como não, doutor?”
Sócrates já estava na fase de tomar vinho, não mais cerveja. Segui tomando minhas cervejas e conversando. Aquilo nunca tinha acontecido na minha vida (mesmo sendo recorrente a condição de solitário), e de repente lá estava eu diante de um ídolo – de alguém que minha timidez imaginaria a milhas de distância até eu criar coragem para me aproximar e balbuciar alguns elogios mal ajambrados.
Várias coisas passaram na minha cabeça. A principal delas era uma data: 1982. Uma memória de infância. De algo exemplarmente belo, infinitamente triste. De um futebol-balé que sempre revejo no YouTube (e mostro para minha filha como se eu também fosse responsável por aquilo), comandado pelo mestre Telê Santana e por aquele rapaz (Sócrates não tinha cara de senhor) que estava ali na minha frente, papeando como se fosse mais um.
Ao pensar na Tragédia de Sarriá vem sempre à mente aquela tristeza intraduzível, as ruas da cidade de São Carlos, onde cresci, às moscas, todo mundo tentando entender, afinal, por que tínhamos perdido, por que o algoz Paolo Rossi existia, por que ele tinha feito três gols contra uma das maiores seleções de todos os tempos, por que existiam injustiças no mundo.
Lembro-me que tentei expor algo nesse sentido. Embora soubesse que ele já ouvira milhões de vezes. Que eu crescera, menino que jogava futebol todos os dias, com aquele time como referência. Eu, palmeirense, não tinha nenhum jogador na seleção titular – e torcia feito um louco, como uma criança é capaz de torcer. Tinha mesmo de admirar Leandro, Oscar, Luisinho, Junior, Cerezo, Serginho, Éder, Falcão, Zico e Sócrates. A braçadeira de capitão estava com ele. Os gols surgiam improvavelmente plásticos, geométricos, desenhados, artísticos – como se fosse mau gosto chutar uma bola de bico, dar um balão.
Era toda uma estética. Quase uma ética. Era um pecado não tratar bem a bola – e o torcedor-telespectador, na mesa ao lado. Não à toa, Sócrates criticou naquela noite a conquista medíocre da seleção de 1994 e elogiou Zinedine Zidane – ele entendia a cabeçada do francês no italiano anônimo, na final de 2006, como uma reação legítima diante de um patife. Não era alguém que aceitasse facilmente a ordem das coisas – como bem mostra sua biografia política. A Seleção de 1982 e ele eram e são uma atitude, uma afirmação. Uma presença.
Diante de sua ausência, escrevo para registrar meu agradecimento. A um homem digno que conheci rapidamente, em um dos seus momentos de generosidade. A um jogador de toque refinado, de uma elegância altiva – que alegrou aquela criança e aquele solitário no bar. E a um homem que não acreditava na vitória inexorável dos patifes.
Eu estava numa das mesas do Ó do Borogodó, um bar com samba ao vivo na Vila Madalena, lá no fundo. Eram umas duas da manhã, balada de quinta-feira, estava sozinho, observando as pessoas dançarem. Claro, de olho nas mulheres (lindas) que frequentam o local, sentindo-me mais uma vez incapaz de dançar aquilo sem cair no ridículo - e ao mesmo tempo conversar algo minimamente inteligente no ouvido da parceira.
Não estava particularmente deprimido ou coisa parecida, mas com aquela sensação esquisita de quando se sai sozinho à noite em São Paulo. A melancolia estava domada – mas não ausente. E eu lá – eternamente distraído. De repente, do nada, alguém bateu no meu ombro direito e perguntou: “Amigo, você está sozinho?” Assenti, um tanto incrédulo, antes de ouvir o complemento: “Vem sentar conosco em nossa mesa”.
Levantei-me com orgulho. De repente eu me tornava a pessoa mais importante do bar. Aquele homem que fazia o convite não tinha nenhuma segunda intenção. Era apenas generoso. Na mesa estava um grupo de mulheres. Ao lado, o jornalista Xico Sá beijava (em movimentação inacreditável) uma moça – ele depois se juntaria à conversa. Tudo isso percebi em instantes, enquanto respondia: “Como não, doutor?”
Sócrates já estava na fase de tomar vinho, não mais cerveja. Segui tomando minhas cervejas e conversando. Aquilo nunca tinha acontecido na minha vida (mesmo sendo recorrente a condição de solitário), e de repente lá estava eu diante de um ídolo – de alguém que minha timidez imaginaria a milhas de distância até eu criar coragem para me aproximar e balbuciar alguns elogios mal ajambrados.
Várias coisas passaram na minha cabeça. A principal delas era uma data: 1982. Uma memória de infância. De algo exemplarmente belo, infinitamente triste. De um futebol-balé que sempre revejo no YouTube (e mostro para minha filha como se eu também fosse responsável por aquilo), comandado pelo mestre Telê Santana e por aquele rapaz (Sócrates não tinha cara de senhor) que estava ali na minha frente, papeando como se fosse mais um.
Ao pensar na Tragédia de Sarriá vem sempre à mente aquela tristeza intraduzível, as ruas da cidade de São Carlos, onde cresci, às moscas, todo mundo tentando entender, afinal, por que tínhamos perdido, por que o algoz Paolo Rossi existia, por que ele tinha feito três gols contra uma das maiores seleções de todos os tempos, por que existiam injustiças no mundo.
Lembro-me que tentei expor algo nesse sentido. Embora soubesse que ele já ouvira milhões de vezes. Que eu crescera, menino que jogava futebol todos os dias, com aquele time como referência. Eu, palmeirense, não tinha nenhum jogador na seleção titular – e torcia feito um louco, como uma criança é capaz de torcer. Tinha mesmo de admirar Leandro, Oscar, Luisinho, Junior, Cerezo, Serginho, Éder, Falcão, Zico e Sócrates. A braçadeira de capitão estava com ele. Os gols surgiam improvavelmente plásticos, geométricos, desenhados, artísticos – como se fosse mau gosto chutar uma bola de bico, dar um balão.
Era toda uma estética. Quase uma ética. Era um pecado não tratar bem a bola – e o torcedor-telespectador, na mesa ao lado. Não à toa, Sócrates criticou naquela noite a conquista medíocre da seleção de 1994 e elogiou Zinedine Zidane – ele entendia a cabeçada do francês no italiano anônimo, na final de 2006, como uma reação legítima diante de um patife. Não era alguém que aceitasse facilmente a ordem das coisas – como bem mostra sua biografia política. A Seleção de 1982 e ele eram e são uma atitude, uma afirmação. Uma presença.
Diante de sua ausência, escrevo para registrar meu agradecimento. A um homem digno que conheci rapidamente, em um dos seus momentos de generosidade. A um jogador de toque refinado, de uma elegância altiva – que alegrou aquela criança e aquele solitário no bar. E a um homem que não acreditava na vitória inexorável dos patifes.
A mesa ao lado ficou um pouco mais vazia.
Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
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5 comentários:
nossa, que história, alceu!!!! bom conhecer este lado generoso do sócrates! obrigada por compartilhar!
françoise
olá, Françoise. Assim que li a notícia da morte me ocorreu escrever, era o mínimo! abraço, Alceu
Alceu...otro grande que se nos va! Dicen que pidió morir un domingo y con Corinthians campeón...y por lo que parece su deseo le fue concedido.
¡Gracias Doctor por su nobleza y sensibilidad!
Hermosa nota!
Un abrazo
Luciana
É meu velho e grande amigo...
Foi uma perda irreparável e histórias como essa devem ter se repetido por incontáveis vezes, pois, o "Doutor" era um replicador de 'Bons Momentos' e assim como servia seus amigos craques em campo, prestava a este mundo ares de pura inteligência, coerência e sensibilidade.
Lendo tua experiência, lembrei-me do meu velho pai, aquele que você gostava de ouvir...
Era uma tarde agradável em algum mês de 1978, quando meu velho me levou aos 9 anos para assistir o imperdível clássico Grêmio Sancarlense e meu querido e glorioso Timão, no majestoso campo do Luizão, em São Carlos.
Sinceramente, não me lembro o placar, mas, nunca me esquecerei de meu pai me levando para conhecer pessoalmente aquele ídolo, que de forma simples e acolhedora, me colocou em seus ombros e me mostrou um ângulo mais alto do campo e impossível não citar, de sua indefectível nobreza de espírito.
Foi-se um ser humano sem igual, fica o ídolo, o mito, as histórias...
Parabéns pelo seu trabalho, Alceu. Tu é grande e justo.
Incrível história, Alceu! Bela crônica!
Para mim, a tragédia de Sarriá foi minha primeira desilusão amorosa! (e talvez a mais sofrida)
abraço
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