“O Ferroviário” é um clássico tardio do cinema italiano. Belíssimo, o filme – dirigido e estrelado por Pietro Germi – possui estética neorealista, mas
só foi lançado em 1956. Longe, portanto do auge desse movimento, que marcou o
pós-guerra e mudou a história do cinema.
Andrea é um maquinista de trem. Tem um acidente e é
afastado. Bebe demais e perde a confiança em seus colegas. Durante uma greve,
vai trabalhar. Para aquela categoria, na Itália e naquele momento, era uma
heresia. É chamado de “crumiro” – o termo para os fura-greve. Era uma vergonha
ser classificado como “crumiro”.
Em 1970 e 1971, Elio Petri dirige o ator Gian Maria
Volonté em duas interpretações extraordinárias: “Investigação sobre um Cidadão
Acima de Qualquer Suspeita” (1970) e “A Classe Operária vai ao Paraíso” (1971).
São duas obras-primas.
Essa era a época do Cinema Político Italiano. O tema do
operariado volta com força no segundo filme a partir do personagem Lulu, sob
uma trilha sonora atordoante de Ennio Morricone. Lulu é um alienado. Está
preocupado em ganhar hora-extra, e não com a luta coletiva dos trabalhadores.
Ele também fura uma greve e igualmente é chamado de “crumiro”.
O filme (assim como “O Ferroviário”) mostra a tensão psicológica por trás dos
embates sindicais, políticos. De um individualista convicto Lulu passa a ter
alguma consciência de classe.
No início da sequência abaixo os estudantes tentam conscientizar os trabalhadores, na fábrica. "Mais salário, menos trabalho". Ennio Morricone consegue ironizar, com a música, as recomendações dos chefes de produção. Um trabalhador aborda um estudante e pergunta: "Por que vocês não voltam para a universidade?"
A REALIDADE ATUAL
Penso nessas duas referências cinematográficas ao observar como os estudantes
da USP lidam com a greve – e com o sentido do respeito à decisão coletiva.
A diferença mais evidente é a banalização do individualismo,
décadas após a realidade retratada pelo cinema italiano. Muitos estudantes
chegam a ter orgulho de furar a greve. Em contrapartida, os grevistas não têm
força política para fazer pressão; ocorre quase um mecanismo de inversão, onde
os grevistas (apesar da decisão em assembleia ser pela paralisação) é que seriam os
extraterrestres da história.
Como estudante da USP, votei contra a greve no dia em que a
reitoria foi desocupada por 400 policiais – que prenderam 73 pessoas. Mas a
partir daí respeitei a decisão coletiva, tomada numa assembleia com 3 mil
estudantes. Para mim era e é o mínimo. Não é algo, porém, que comova boa parte
dos estudantes - que seguem ou assistindo aulas, ou entregando trabalhos e
fazendo provas.
Frente a uma discussão sobre tudo isso, os fura-greve ficam
incomodados até com essa definição: a de “fura-greve”. Consideram que deveria
existir outra palavra. Alguém propôs “dribla-greve” – nós, no país do futebol.
Ponderei que a palavra é essa mesma. E que, na Itália, um termo
somente - “crumiro” – sintetiza a situação de desrespeito à decisão da
categoria. A greve é um instrumento de pressão que depende da massa, do
coletivo. E brechas nessa multidão lembram, sim, a imagem de “furo”.
Os fura-greve não estão nem aí para essas histórias e para
essa conceituação. Estão preocupados com seus projetos individuais.
Com um agravante: querem furar greve sem serem chamados de “fura-greve”.
Assim fica fácil, não é.
Curioso é que eles estão sempre prontos a lembrar aos
grevistas dos ônus de suas decisões. Mas não querem ter o ônus da decisão inversa, o ônus de serem vistos como o que são: individualistas;
sem comprometimento político (ou, pior, comprometidos com o lado oposto);
fura-greve.
Não percebem que, ao desafiar decisões coletivas legítimas,
arrebentam a possibilidade de mudanças. Deslegitimam o que foi decidido pelos
colegas e, simplesmente, compactuam. No caso, com uma lógica policialesca –
muito bem representada, aliás, lá no cinema italiano dos anos 70, pelos mesmos
Petri e Volonté em “Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”.
Essa geração de pragmáticos coloca-se acima de qualquer
suspeita e mostra que, no Brasil dos anos 2000, cidadania é um conceito
praticamente furado. A grande utopia é a de se formar logo e rumar para o “mercado”. Parafraseando o ex-ministro Jarbas Passarinho, é como se dissessem: “Às favas
os escrúpulos de consciência de classe”.
CURIOSIDADE
Na última cena de "Classe Operária vai ao Paraíso" um homem pilota freneticamente uma máquina, dentro da fábrica. Esse homem é um dos grandes músicos do século XX. Seu nome, Ennio Morricone.
PS: aos sábados escrevo sobre cinema. Com o Natal e o Ano Novo, volto ao tema somente após as festas, em 2012.
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