segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Carta Aberta aos Eliminados

(dos expulsos pelo reitor da USP às vítimas de uma democracia-aprendiz)


por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)*

A palavra utilizada para expulsar seis estudantes da USP não poderia ser mais provocadora. O decreto do reitor João Grandino Rodas, publicado na sexta-feira no Diário Oficial, aplica a seis alunos a pena de “eliminação” do corpo discente da Universidade de São Paulo.

Chegamos, enfim, a uma espécie de democracia-show. Uma democracia-empresa, à Roberto Justus. A uma reality-democracia. Uma democracia-aprendiz.

“Senhores estudantes”, afirma com palavras parecidas o decreto de Rodas. “Vocês estão... vocês estão eliminados!”

Troquem a voz de Roberto Justus pela de Pedro Bial (ou a de Brito Junior, João Doria Junior) e teremos o mesmo eco: de uma multiplicação das violências institucionais. Agora com perfil empresarial, por favor.

As elites brasileiras acabam de assumir, por meio das palavras de um reitor fundamentalista (não por acaso, um reitor biônico), que estão dispostas a...  eliminar.

E é por isso que me dirijo exatamente a vocês: aos eliminados.

Não somente a vocês, Aline, Amanda, Jéssica, Bruno, Marcus e Yves. Os seis estudantes expulsos da USP. Expulsos não – eliminados. Não somente a vocês, Paulo e Pedro, dois que escaparam da eliminação porque não eram mais da USP – mas vão ter o caso lembrado em seus “prontuários”, como diz o decreto do reitor.

Dirijo-me a uma gama muito maior de eliminados.

Dirijo-me aos sem-teto, aos sem-terra, aos indígenas, quilombolas, aos moradores dos morros e favelas, a todos os que foram espancados e torturados pelas polícias neste país cordial, a aqueles que tentaram fazer manifestações em lugares públicos e tiveram suas máquinas confiscadas, seu direito de ir e vir negado, sua cidadania violentada.

Vocês não são mais apenas “excluídos”, conforme uma das palavras da moda dos últimos tempos. Não são mais apenas “espoliados” – para utilizar um termo bem menos em voga. Não são somente “despossuídos”, não apenas “escanteados” (no país do futebol), não pensem que são unicamente representantes do “andar de baixo”.

Vocês, meus caros brasileiros, estão sendo estruturalmente, sistematicamente e cotidianamente... e-li-mi-na-dos!

E chegou a hora da reação.  Contundente.

Vocês foram eliminados da USP – tanto os que entraram (e agora foram expulsos) como os que não lá chegaram.

Foram eliminados por um filtro maldito, por um filtro tecido durante 500 anos – esse que exclui racialmente e socialmente (das universidades, dos cargos políticos, dos melhores empregos) os descendentes dos escravos, os motoboys, as filhas das empregadas domésticas e garis.

Vocês são eliminados todos os dias da grande imprensa, da grande mídia. Aparecem por lá às vezes para emitir frases pacíficas, adequadas ao sistema. “Olhem, veja que boazinha a Dona Francisquinha, o Seu Lindomar, como eles são engraçadinhos e conformados em meio a esta realidade sórdida que estamos mostrando”.

Como seres críticos, porém, como seres humanos capazes de contestar, de reivindicar, vocês são sistematicamente eliminados dos jornais, dos meios de comunicação de massa.

Vocês, donos de rádios comunitárias, sabem bem o que é serem presos por tentar veicular (a partir de um suposto direito básico à expressão) notícias diferentes, programas que minimamente estimulem uma participação social e política mais ativa – que estimulem a cidadania.

Eliminados: assumam todos os contornos dessa palavra. Centenas de filósofos, historiadores, cientistas sociais de um modo geral (falo daqueles desprovidos de cinismo) vêm contando a história de vocês, nos últimos séculos.

Não estou falando somente de Karl Marx e dos teóricos comunistas, caros eliminados. Deles também, claro. As elites bem sabem o quanto esses senhores (entre muitos outros) descreveram bem os mecanismos de nosso sistema – esse que perpetua a desigualdade.

A lista dos rebeldes é enorme. Dos indignados, dos inssurrectos. Dos utópicos, dos esperançosos. Ela inclui escritores, artistas, inclui ativistas (muitos deles mortos, eliminados), inclui muita gente nem um pouco alinhada a partidos políticos, a organizações.

Jean Jacques-Rousseau foi um dos que alertaram para a desigualdade estrutural derivada da posse da terra por uns espertalhões. Chico Mendes morreu por isso, Dorothy Stang e centenas de brasileiros morreram e morrem por isso. E boa parte das terras deste pais foi simplesmente... grilada!

Mas, eliminados: quantos hectares vocês têm? Quantos metros quadrados?

Eliminados: quantas horas vocês já ficaram em filas de bancos, de supermercados, de pedágio, quantos séculos intermináveis vocês já ficaram ao telefone tentando reivindicar seus direitos a uma empresa, diante de um serviço de telemarketing? Quantas vezes foram demitidos, “descontinuados”?

Tudo isso por um motivo muito simples: pela lógica da eliminação!

Sim, eu sei, muitos dirão a vocês que textos indignados como este são “panfletos”.

Mas, vejam bem: panfletem! Quem foi mesmo o cínico que disse que é errado panfletar? Foi alguém do povo? Um eliminado?

Pois os panfletos são instrumentos políticos poderosos. São palavras que gritam, ou ao menos exclamam. Que exortam, que rememoram os tais séculos de espoliação, de rapinagem.

Panfletemos! Panfletem! Pois a morte sistemática de camponeses e indígenas neste País não pode ser encaixotada apenas em discursos sisudos, ou acadêmicos ou cheios de dedo.

Esse extermínio a que são submetidos milhares de brasileiros deve ser chamado como tal – de extermínio.

As execuções devem ser chamadas como tais – de execuções.

As torturas de torturas, os esculachos de esculachos, as ameaças de ameaças. E assim por diante.

E agradeçam ao reitor da USP pela oportunidade de reagir!

Pois foi o reitor João Grandino Rodas quem deu a senha final para a retirada dos eufemismos. Ele pensava apenas em provocar os estudantes. Em esfregar na cara de vocês, os eliminados específicos (os alunos expulsos da USP), que ele detém o poder máximo dentro dessa universidade. Ele quis tripudiar.

Mas Rodas é apenas mais um representante. Um serviçal de um sistema que elimina.

Ele está dizendo a vocês (e à sociedade) que o errado é fumar maconha no campus – que são essas as pessoas que colocam a sociedade em risco! Que é errado protestar contra a presença, nas Cidades Universitárias e nos morros e favelas, de uma polícia que aborda a todos (e não somente estudantes, professores, funcionários) com violência.

O serviçal está dizendo que é normal a ocupação da universidade por empresas, que a universidade faça pesquisas para atender ao interesse das maiores corporações mundiais; que a universidade perpetue a lógica da acumulação infinita, do lucro para apenas alguns – em um mundo em que 1 bilhão de pessoas passa fome.

Portanto, eliminados (não somente os da USP): digam a nossos reitores e nossos chefetes e nossos políticos que não estamos exatamente satisfeitos com esta nossa condição – a de eliminados.

Que não se trata somente de “incluir”, de “possuir”. Que não vamos aceitar passivamente sermos atropelados por decretos da ditadura (o reitor da USP utilizou-se de um deles, de 1972, da era Medici), por uma lógica do confisco.

Que os eliminados estão decididos a se articular contra essas várias violências.  Em bloco.

Os eliminados querem uma democracia de fato.

E não essa farsa.

* jornalista, estudante de Geografia na Universidade de São Paulo.


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Um comentário:

Chi Qo disse...

Quem merece ser eliminado do jogo é o Rodas!