Sobre como a Veja tornou-se uma revista de humor e
ninguém percebeu
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Quando começou o jogo do Corinthians, neste
domingo, pensei: a Ponte Preta não vai ter a mínima chance. Não
por conta da superioridade técnica do time paulistano, ou da
simpatia que alguns árbitros nutrem por seu escudo. Mas porque a
revista Veja me avisara, no sábado: pessoas de maior estatura obtêm melhor desempenho!
(Pode ser difícil de acreditar, mas essa foi
mesmo a capa da revista. “Do alto, tudo é melhor”, diz a
manchete. Segundo a Veja, os mais altos tendem a ser mais
bem-sucedidos. Dizem que o deputado ACM neto sentiu-se
especificamente ofendido.)
Olhei cuidadosamente as duas equipes e concluí: o
Corinthians tem jogadores mais altos, já ganhou!
Mas foi a Ponte Preta que venceu. Estaria errada a
Veja, sempre repleta de certezas inabaláveis?
No Twitter, vi um comentário do jornalista
Ricardo de Souza, da Petrobras, do alto de seus 1m93. Ele falava de
seu chefe, uma cabeça mais baixo que ele, com 1m70. Ricardo estaria
utilizando a rede social para reclamar de uma tremenda injustiça?
“Eu sou mais alto, eu que deveria ser o chefe!” Claro que não:
atestou que seu chefe é muitíssimo competente.
Em outras palavras: quando foi mesmo que a Veja
tornou-se uma piada nacional? Por que ainda nos indignamos com suas
capas fascistas, suas “reportagens” distorcidas, sua defesa
incondicional dos mais poderosos, da desigualdade estrutural deste
país? Não estaria faltando a nós apenas uma pitada de senso de
humor, diante desse Proibidão semanal?
Penso nas piores capas de Veja. Uma delas tinha o
seguinte tema como manchete: “O Cerco da Periferia”. Em volta de
lindas casas de classe média, uma periferia em preto e branco;
favelas, casas de pobres. A tese paranóica era a de que os bairros
de classe média alta e elite estavam sendo incomodados por essa
periferia “ameaçadora”. Um fotógrafo chegou a ser demitido por
não conseguir localizar essa imagem em São Paulo. Mas ninguém riu!
Ninguém percebeu os contornos de ficção científica da teoria: uma
certa entidade chamada Periferia, cercando a pobre Elite Oprimida.
O mesmo vale para aquela famosa capa sobre o MST:
“A Marcha dos Radicais”. Pessoa alguma percebeu o viés
autobiográfico de Veja, a metalinguagem da manchete: a partir daquele momento ela acirrava sua
trajetória rumo ao despropósito, às agressões gratuitas, à
despolitização sistemática da classe média alta (e da elite). A
Veja se afirmava como farsa, dando pistas para a ironia fina de cada
piada sua, desde então travestida de jornalismo. Mas nós seguimos
enraivecidos: continuamos levando a sério o que já não se podia
mais levar a sério.
O ápice desse fenômeno atende pelo nome de
Reinaldo Azevedo. Dá para acreditar em um jornalista de extrema
direita, que tenha militado, nos anos 70, na corrente trotskista
Libelu? OK, admito, são muitos exemplos históricos de pessoas que
migraram da esquerda para a direita, nós mesmos tivemos a figura de
Carlos Lacerda. Mas com aquele vocabulário, aquela compulsão,
aquela empáfia, aquela ausência de um mínimo de discernimento, de
bom senso? O “tio Rei” tornou-se um grande clown nacional – mas
seguimos elevando-o a um patamar de seriedade.
Com essa capa sobre a superioridade dos mais
altos, Veja dialoga com o que de pior fez em ciência o italiano
Cesare Lombroso, que investigava sinais de pessoas criminosas no
formato de seus crânios. “Lombrosiano” tornou-se apenas um
adjetivo cômico para pessoas (certos políticos, por exemplo) com
determinada propensão ao delito. Em outras palavras: a Veja
tornou-se apenas uma revista-palhaça. É o CQC das nossas elites, o
Tiririca da nossa mídia. Só não vale imaginá-la com nariz de
palhaço – pois a Veja odeia a cor vermelha.
Eppure, si muove. E, no entanto, a Veja é séria.
Extremamente séria. Não por ela – mas por ter apoio para cada uma
de suas barbaridades, de suas campanhas higienistas, suas teses
arrogantes e estapafúrdias, sua briga semanal com os fatos. Os tais
bairros oprimidos pelas periferias, cheios de pessoas altas,
refinadas e probas dão o aval a suas reportagens oniscientes e seus
colunistas sábios. É o veículo impresso mais lido do país – há
muitos anos com mais de 1 milhão de assinantes. Uma multidão de
brasileiros que paga para espezinhar e ser espezinhada.
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