segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Carta Aberta aos Eliminados

(dos expulsos pelo reitor da USP às vítimas de uma democracia-aprendiz)


por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)*

A palavra utilizada para expulsar seis estudantes da USP não poderia ser mais provocadora. O decreto do reitor João Grandino Rodas, publicado na sexta-feira no Diário Oficial, aplica a seis alunos a pena de “eliminação” do corpo discente da Universidade de São Paulo.

Chegamos, enfim, a uma espécie de democracia-show. Uma democracia-empresa, à Roberto Justus. A uma reality-democracia. Uma democracia-aprendiz.

“Senhores estudantes”, afirma com palavras parecidas o decreto de Rodas. “Vocês estão... vocês estão eliminados!”

Troquem a voz de Roberto Justus pela de Pedro Bial (ou a de Brito Junior, João Doria Junior) e teremos o mesmo eco: de uma multiplicação das violências institucionais. Agora com perfil empresarial, por favor.

As elites brasileiras acabam de assumir, por meio das palavras de um reitor fundamentalista (não por acaso, um reitor biônico), que estão dispostas a...  eliminar.

E é por isso que me dirijo exatamente a vocês: aos eliminados.

Não somente a vocês, Aline, Amanda, Jéssica, Bruno, Marcus e Yves. Os seis estudantes expulsos da USP. Expulsos não – eliminados. Não somente a vocês, Paulo e Pedro, dois que escaparam da eliminação porque não eram mais da USP – mas vão ter o caso lembrado em seus “prontuários”, como diz o decreto do reitor.

Dirijo-me a uma gama muito maior de eliminados.

Dirijo-me aos sem-teto, aos sem-terra, aos indígenas, quilombolas, aos moradores dos morros e favelas, a todos os que foram espancados e torturados pelas polícias neste país cordial, a aqueles que tentaram fazer manifestações em lugares públicos e tiveram suas máquinas confiscadas, seu direito de ir e vir negado, sua cidadania violentada.

Vocês não são mais apenas “excluídos”, conforme uma das palavras da moda dos últimos tempos. Não são mais apenas “espoliados” – para utilizar um termo bem menos em voga. Não são somente “despossuídos”, não apenas “escanteados” (no país do futebol), não pensem que são unicamente representantes do “andar de baixo”.

Vocês, meus caros brasileiros, estão sendo estruturalmente, sistematicamente e cotidianamente... e-li-mi-na-dos!

E chegou a hora da reação.  Contundente.

Vocês foram eliminados da USP – tanto os que entraram (e agora foram expulsos) como os que não lá chegaram.

Foram eliminados por um filtro maldito, por um filtro tecido durante 500 anos – esse que exclui racialmente e socialmente (das universidades, dos cargos políticos, dos melhores empregos) os descendentes dos escravos, os motoboys, as filhas das empregadas domésticas e garis.

Vocês são eliminados todos os dias da grande imprensa, da grande mídia. Aparecem por lá às vezes para emitir frases pacíficas, adequadas ao sistema. “Olhem, veja que boazinha a Dona Francisquinha, o Seu Lindomar, como eles são engraçadinhos e conformados em meio a esta realidade sórdida que estamos mostrando”.

Como seres críticos, porém, como seres humanos capazes de contestar, de reivindicar, vocês são sistematicamente eliminados dos jornais, dos meios de comunicação de massa.

Vocês, donos de rádios comunitárias, sabem bem o que é serem presos por tentar veicular (a partir de um suposto direito básico à expressão) notícias diferentes, programas que minimamente estimulem uma participação social e política mais ativa – que estimulem a cidadania.

Eliminados: assumam todos os contornos dessa palavra. Centenas de filósofos, historiadores, cientistas sociais de um modo geral (falo daqueles desprovidos de cinismo) vêm contando a história de vocês, nos últimos séculos.

Não estou falando somente de Karl Marx e dos teóricos comunistas, caros eliminados. Deles também, claro. As elites bem sabem o quanto esses senhores (entre muitos outros) descreveram bem os mecanismos de nosso sistema – esse que perpetua a desigualdade.

A lista dos rebeldes é enorme. Dos indignados, dos inssurrectos. Dos utópicos, dos esperançosos. Ela inclui escritores, artistas, inclui ativistas (muitos deles mortos, eliminados), inclui muita gente nem um pouco alinhada a partidos políticos, a organizações.

Jean Jacques-Rousseau foi um dos que alertaram para a desigualdade estrutural derivada da posse da terra por uns espertalhões. Chico Mendes morreu por isso, Dorothy Stang e centenas de brasileiros morreram e morrem por isso. E boa parte das terras deste pais foi simplesmente... grilada!

Mas, eliminados: quantos hectares vocês têm? Quantos metros quadrados?

Eliminados: quantas horas vocês já ficaram em filas de bancos, de supermercados, de pedágio, quantos séculos intermináveis vocês já ficaram ao telefone tentando reivindicar seus direitos a uma empresa, diante de um serviço de telemarketing? Quantas vezes foram demitidos, “descontinuados”?

Tudo isso por um motivo muito simples: pela lógica da eliminação!

Sim, eu sei, muitos dirão a vocês que textos indignados como este são “panfletos”.

Mas, vejam bem: panfletem! Quem foi mesmo o cínico que disse que é errado panfletar? Foi alguém do povo? Um eliminado?

Pois os panfletos são instrumentos políticos poderosos. São palavras que gritam, ou ao menos exclamam. Que exortam, que rememoram os tais séculos de espoliação, de rapinagem.

Panfletemos! Panfletem! Pois a morte sistemática de camponeses e indígenas neste País não pode ser encaixotada apenas em discursos sisudos, ou acadêmicos ou cheios de dedo.

Esse extermínio a que são submetidos milhares de brasileiros deve ser chamado como tal – de extermínio.

As execuções devem ser chamadas como tais – de execuções.

As torturas de torturas, os esculachos de esculachos, as ameaças de ameaças. E assim por diante.

E agradeçam ao reitor da USP pela oportunidade de reagir!

Pois foi o reitor João Grandino Rodas quem deu a senha final para a retirada dos eufemismos. Ele pensava apenas em provocar os estudantes. Em esfregar na cara de vocês, os eliminados específicos (os alunos expulsos da USP), que ele detém o poder máximo dentro dessa universidade. Ele quis tripudiar.

Mas Rodas é apenas mais um representante. Um serviçal de um sistema que elimina.

Ele está dizendo a vocês (e à sociedade) que o errado é fumar maconha no campus – que são essas as pessoas que colocam a sociedade em risco! Que é errado protestar contra a presença, nas Cidades Universitárias e nos morros e favelas, de uma polícia que aborda a todos (e não somente estudantes, professores, funcionários) com violência.

O serviçal está dizendo que é normal a ocupação da universidade por empresas, que a universidade faça pesquisas para atender ao interesse das maiores corporações mundiais; que a universidade perpetue a lógica da acumulação infinita, do lucro para apenas alguns – em um mundo em que 1 bilhão de pessoas passa fome.

Portanto, eliminados (não somente os da USP): digam a nossos reitores e nossos chefetes e nossos políticos que não estamos exatamente satisfeitos com esta nossa condição – a de eliminados.

Que não se trata somente de “incluir”, de “possuir”. Que não vamos aceitar passivamente sermos atropelados por decretos da ditadura (o reitor da USP utilizou-se de um deles, de 1972, da era Medici), por uma lógica do confisco.

Que os eliminados estão decididos a se articular contra essas várias violências.  Em bloco.

Os eliminados querem uma democracia de fato.

E não essa farsa.

* jornalista, estudante de Geografia na Universidade de São Paulo.


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domingo, 18 de dezembro de 2011

"Ainda sou aluna da USP", diz estudante expulsa pela reitoria

A estudante Jéssica de Abreu Trinca foi a primeira entre os seis alunos expulsos da USP a se manifestar. Os estudantes em greve divulgaram um vídeo com seu depoimento, neste domingo, um dia após a divulgação do despacho da reitoria que determina a “eliminação do corpo discente” dela e de mais cinco estudantes. “Eu sou aluna da USP ainda”, diz Jéssica. “Temos professores, que são advogados, que vão reverter isso”.

Ela passa os quase 12 minutos do vídeo atacando o reitor João Grandino Rodas, a quem associa ao período da ditadura militar. Jéssica lembra que há 43 anos (no dia 17 de dezembro de 1968) o Exército invadiu o Crusp, o Conjunto Residencial da USP. E teme que a história se repita. “Antes do golpe militar a USP expulsou muitos alunos militantes do movimento estudantil. Espero que a sociedade não permita que se construam novamente os porões”.

A estudante de Letras justifica a ocupação do bloco G do Crusp, a chamada Moradia Retomada, porque esse espaço já fora destinado à moradia. A ocupação ocorreu em março de 2010 e deu origem aos processos que culminaram na expulsão dos estudantes. “A reitoria destruiu os apartamentos e construiu escritórios”, afirma. Ela não entra em detalhes das acusações feitas pela reitoria no processo – e que não foram ainda divulgadas à imprensa.

Jéssica criticou ainda o que chama de “sistema de vigilância” montado na Cidade Universitária, segundo ela, por funcionários da Coordenadoria de Assistência Social e pelo chefe da Guarda Universitária, Ronaldo Penna. “Eles vigiam a vida pessoal dos alunos”, acusa. “Acham que estão fazendo um favor aos moradores do Crusp e proíbem que nos manifestemos politicamente”.

Para ela as expulsões estão ligadas a um processo de repressão na USP, efetivado com a entrada de Rodas. Ela lembra que as “eliminações” ocorrem após a prisão de 73 estudantes, durante a desocupação da reitoria no dia 8 de novembro, e após o conflito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, quando policiais militares tentaram prender estudantes que portavam 21,8 gramas de maconha. “Tentaram algemar os estudantes na frente de professores e alunos”, diz.

Outro ponto-chave é o convênio assinado entre a reitoria e a Secretaria de Estado de Segurança Pública, este ano, meses após o assassinato de um aluno de Ciências Contábeis, no estacionamento da Faculdade de Economia (FEA). “A PM até agora só prendeu estudantes”, afirma Jéssica no vídeo:


Segundo a estudante, trata-se de um projeto para que a USP não seja mais pública. “Querem eliminar todos que acreditam na autonomia universitária”, considera. Ela citou o caso de um professor do Instituto de Ciências Biomédicas que estaria sendo processado internamente por criticar o sistema de conservação dos cadáveres das cobaias utilizadas em pesquisas.

- O que fere a imagem da USP não é eu ser a favor de ocupar prédio para moradia, ou esse professor fazer crítica à conservação dos cadáveres. O que fere é um reitor que defende torturadores, que gasta R$ 72 mil para comprar um tapete, que gasta dinheiro para instaurar processos, que monta um monumento à ditadura militar.

Aqui cabe um esclarecimento: esse monumento na Praça do Relógio,feito em parceria com a Secretaria dos Direitos Humanos (hoje com status de ministério) e com a Petrobras, é, na verdade, um monumento às vítimas da repressão - mortos e cassados. Mas ele se tornou polêmico porque utilizou a expressão “mortos e cassados pela Revolução de 1964”. "Revolução" é o termo utilizado pelos militares, no lugar de “golpe de 1964”.

A estudante também dá uma alfinetada nos colegas que não têm participado das mobilizações. “O que fere a imagem da USP é o movimento estudantil aceitar essas decisões”. Jéssica considera que precisa ser garantido o direito de se manifestar e reivindicar. E encerra o vídeo dirigindo-se ironicamente aos futuros calouros: “Bem-vindos, Bixos, à USP”.

O site da USP e o perfil da reitoria no Twitter ainda não fizeram referência às expulsões de estudantes.

Uma das manifestações contrárias a essa decisão partiu da seção paulista da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), ainda no sábado. Os três estudantes pegos com maconha no dia 27 de outubro são alunos de Geografia.

Entre os demais cinco expulsos, um também estuda Letras; ainda na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), um é da Filosofia, outro está no último ano de Geografia, prestes a entregar o trabalho final. Os dois alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) são dos cursos de Artes Cênicas e Artes Plásticas.

Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

Grandes Patifes da Literatura (II)
Juan Pablo Castel

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Comecei a série com Fernando Vidal Olmos, personagem de Ernesto Sabato. Prossigo com o argentino. Desta vez falo de Juan Pablo Castel, “o pintor que matou Maria Iribarne”, em O Túnel (1948).

Castel é o embrião de Vidal Olmos. Personagem obsessivo, que se move a partir de delírios (no caso, ciúmes, sentimento de posse), mas se abraçando a uma suposta racionalidade. Ambas as narrações são em primeira pessoa - o que reforça o tom de delírio dos relatos.

A repetição de Sabato nesta série mostra o quanto o escritor (1911-2011), morto este ano em Buenos Aires, tornou seus romances uma investigação sobre a alma humana.

Neste trecho (o capítulo 2 do livro), Castel mostra seu imenso ceticismo – e desespero:

“Como eu ia dizendo, meu nome é Juan Pablo Castel. Vocês poderão perguntar o que me leva a escrever a história do meu crime (não sei se já disse que vou relatar meu crime) e, sobretudo, a procurar um editor. Conheço bem a alma humana para prever que pensarão em vaidade. Pensem o que quiserem: não ligo a mínima; faz tempo que não ligo a mínima para a opinião e a justiça dos homens. Afinal, sou feito de carne, ossos, cabelo e unhas como qualquer outro homem e acharia muito injusto que exigissem de mim, logo de mim, qualidades especiais; às vezes nos julgamos super-homens, até percebermos que também somos mesquinhos, sujos e pérfidos. Da vaidade não digo nada: creio que ninguém está desprovido desse notável motor do Progresso Humano. Fazem-me rir esses senhores que falam da modéstia de Einstein ou de gente da laia; resposta: é fácil ser modesto quando se é célebre; quer dizer, parecer modesto. Mesmo quando se imagina que ela não existe em absoluto, surge de repente em sua forma mais sutil: a vaidade da modéstia. Quantas vezes esbarramos com esse tipo de indivíduo! Até um homem, real ou simbólico, como Cristo, pronunciou palavras sugeridas pela vaidade ou no mínimo pela soberba. Que dizer de León Bloy, que se defendia da acusação de soberba argumentando que passara a vida servindo a indivíduos que não lhe chegavam aos pés? A vaidade se encontra nos lugares mais inesperados: ao lado da bondade, da abnegação, da generosidade. Quando eu era pequeno e me desesperava em face da idéia de que a minha mãe haveria de morrer um dia (com o passar dos anos, vem-se a saber que a morte não só é suportável, como até reconfortante), não imaginava que ela pudesse ter defeitos. Agora que ela não existe, devo dizer que foi tão boa quanto um ser humano pode chegar a sê-lo. Mas recordo, de seus últimos anos, quando eu já era um homem, como de início era doloroso para mim descobrir sob suas melhores ações um sutilíssimo ingrediente de vaidade ou de orgulho. Algo muito mais ilustrativo aconteceu comigo mesmo quando ela foi operada de um câncer. Para chegar a tempo tive de viajar dois dias inteiros sem dormir. Quando cheguei ao lado de sua cama, seu rosto de cadáver conseguiu sorrir-me levemente, com ternura, e murmurou umas palavras de compadecimento (ela se compadecia  de meu cansaço!). E eu senti dentro de mim, obscuramente, o vaidoso orgulho de ter acudido tão rápido.

Confesso esse segredo para que vejam até que ponto não me julgo melhor que os outros. No entanto, não conto essa história por vaidade. Talvez estivesse disposto a aceitar que há uma dose de orgulho ou de soberba. Mas por que essa mania de querer encontrar explicação para todos os atos da vida? Quando comecei este relato, estava firmemente decidido a não dar explicações de nenhuma espécie. Tinha vontade de contar a história de meu crime e ponto: quem não gostasse, que não lesse. Mas duvido, pois essas pessoas que estão sempre atrás de explicações são justamente as mais curiosas, e acho que nenhuma delas perderia a oportunidade de ler a história de um crime até o final.

Eu poderia calar os motivos que me levaram a escrever estas páginas de confissão; mas, como não estou interessado em passar por excêntrico, direi a verdade, que de resto é bastante simples: pensei que elas poderiam ser lidas por muita gente, já que agora sou famoso; e, embora não tenha ilusões acerca da humanidade em geral, nem dos leitores destas páginas em particular, anima-me a tênue esperança de que alguma pessoa chegue a me entender: MESMO QUE SEJA UMA ÚNICA PESSOA.

“Por quê?”, poderá perguntar-se alguém, “apenas uma tênue esperança, se o manuscrito há de ser lido por tantas pessoas?” Esse é o gênero de perguntas que considero inúteis. E, não obstante, temos de prevê-las, porque as pessoas vivem fazendo perguntas inúteis, perguntas que o exame mais superficial revela desnecessárias. Posso falar até o cansaço e aos gritos para uma assembléia de cem mil russos: ninguém me entenderia. Percebem o que quero dizer?

Existiu uma pessoa que poderia me entender. Mas foi, justamente, a pessoa que matei”.

LEIA MAIS:
Grande Patifes da Literatura (I) - Fernando Vidal Olmos


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sábado, 17 de dezembro de 2011

Reitor da USP expulsa seis estudantes com base em lei de 1972

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

A reitoria da Universidade de São Paulo decretou ontem a expulsão de seis estudantes. O decreto fala em “eliminação do corpo discente”. São eles: Aline Dias Camoles e Bruno Belém, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), Amanda Freire de Sousa, Jéssica de Abreu Trinca, Marcus Padraic Dunne e Yves de Carvalho Souzedo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

O processo foi iniciado, em 2010, por conta da ocupação de um prédio para moradia estudantil - a chamada Moradia Retomada.

Cinco estudantes foram absolvidos. Outras duas pessoas escaparam por não estarem mais matriculadas na USP. São eles Paulo Henrique Oliveira Galego e Pedro Luiz Damião. Este já se formou. O despacho do reitor, publicado ontem no Diário Oficial, diz que Damião concluiu o curso e que as anotações da penalidade devem contar “em seus prontuários”.

Os estudantes decidiram neste sábado fazer um ato de protesto na segunda-feira, às 13 horas, em frente da reitoria.

O site Jus Brasil publica o despacho do reitor. Os estudantes divulgaram um trecho do Regimento Geral  da USP, de 1972 – quando o presidente da República era o senhor Emílio Garrastazu Medici.

O artigo 250 traz as possíveis faltas que constituem infração disciplinar. Entre elas “praticar ato atentatório à moral ou aos bons costumes”, “utilizar substância entorpecente” e “promover manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso”.

O reitor diz no despacho que, se as normas internas da USP não tivessem referência ao poder disciplinar, mesmo assim "o dirigente não teria como não observá-lo, sob pena de responsabilidade".

Os estudantes da USP estão em greve, decidida em sucessivas assembleias gerais, desde o dia 8 de novembro. Uma das reivindicações é a saída do reitor João Grandino Rodas. Outra, o fim dos processos contra estudantes. Outra, a saída da PM do campus.

Mas nem todos os cursos estão seguindo a decisão dos estudantes. A greve começou no dia em que 400 policiais desocuparam a reitoria e prenderam 73 estudantes - entre eles, Aline Camoles e Jessica Trinca, duas das estudantes expulsas.

A ocupação da reitoria (e, antes de um prédio da FFLCH) ocorreu após a prisão de três alunos de Geografia que portavam uma pequena quantidade de maconha, no estacionamento do prédio da História e Geografia. Uma massa de estudantes se rebelou, em apoio aos detidos.

Veja todos os itens do artigo 250 do Regimento Geral da USP:

Constituem infração disciplinar do aluno, passíveis de sanção segundo a gravidade da falta cometida.

I - inutilizar, alterar ou fazer qualquer inscrição em editais ou avisos afixados pela administração;

II - fazer inscrições em próprios universitários, ou em suas imediações, ou nos objetos de propriedade da USP e afixar cartazes fora dos locais a eles destinados;

III - retirar, sem prévia permissão da autoridade competente, objeto ou documento existente em qualquer dependência da USP;

IV - praticar ato atentatório à moral ou aos bons costumes;

V - praticar jogos proibidos;

VI - guardar, transportar ou utilizar arma ou substância entorpecente;

VII - perturbar os trabalhos escolares bem como o funcionamento da administração da USP;

VIII - promover manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares;

IX - desobedecer aos preceitos regulamentares constantes dos Regimentos das Unidades, Centros, bem como dos alojamentos e residências em próprios universitários.

Esta notícia estará sendo atualizada nos próximos dias. O site da USP e o perfil da reitoria no Twitter não trazem nenhuma informação sobre as expulsões.

A notícia foi dada pelo site
USP em Greve, publicado pelo Comando de Greve dos estudantes - durante a paralisação, o DCE e os Centros Acadêmicos são diluídos.

O endereço é: http://uspemgreve.blogspot.com

A notícia só começou a ser publicada nos principais portais no início da noite. O primeiro foi o iG. Depois se seguiram G1, R7, Folha, Terra e Estadão, entre outros.


LEIA MAIS:
Carta Aberta aos Eliminados
Rodas fala à Folha em "sumiço de documentos"
Pietro Germi, Elio Petri e os fura-greve da USP


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Pietro Germi, Elio Petri e os fura-greve da USP

“O Ferroviário” é um clássico tardio do cinema italiano. Belíssimo, o filme – dirigido e estrelado por Pietro Germi – possui estética neorealista, mas só foi lançado em 1956. Longe, portanto do auge desse movimento, que marcou o pós-guerra e mudou a história do cinema.

Andrea é um maquinista de trem. Tem um acidente e é afastado. Bebe demais e perde a confiança em seus colegas. Durante uma greve, vai trabalhar. Para aquela categoria, na Itália e naquele momento, era uma heresia. É chamado de “crumiro” – o termo para os fura-greve. Era uma vergonha ser classificado como “crumiro”.

Em 1970 e 1971, Elio Petri dirige o ator Gian Maria Volonté em duas interpretações extraordinárias: “Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” (1970) e “A Classe Operária vai ao Paraíso” (1971). São duas obras-primas.

Essa era a época do Cinema Político Italiano. O tema do operariado volta com força no segundo filme a partir do personagem Lulu, sob uma trilha sonora atordoante de Ennio Morricone. Lulu é um alienado. Está preocupado em ganhar hora-extra, e não com a luta coletiva dos trabalhadores.

Ele também fura uma greve e igualmente é chamado de “crumiro”. O filme (assim como “O Ferroviário”) mostra a tensão psicológica por trás dos embates sindicais, políticos. De um individualista convicto Lulu passa a ter alguma consciência de classe.

No início da sequência abaixo os estudantes tentam conscientizar os trabalhadores, na fábrica. "Mais salário, menos trabalho". Ennio Morricone consegue ironizar, com a música, as recomendações dos chefes de produção. Um trabalhador aborda um estudante e pergunta: "Por que vocês não voltam para a universidade?"


A REALIDADE ATUAL

Penso nessas duas referências cinematográficas ao observar como os estudantes da USP lidam com a greve – e com o sentido do respeito à decisão coletiva.

A diferença mais evidente é a banalização do individualismo, décadas após a realidade retratada pelo cinema italiano. Muitos estudantes chegam a ter orgulho de furar a greve. Em contrapartida, os grevistas não têm força política para fazer pressão; ocorre quase um mecanismo de inversão, onde os grevistas (apesar da decisão em assembleia ser pela paralisação) é que seriam os extraterrestres da história.

Como estudante da USP, votei contra a greve no dia em que a reitoria foi desocupada por 400 policiais – que prenderam 73 pessoas. Mas a partir daí respeitei a decisão coletiva, tomada numa assembleia com 3 mil estudantes. Para mim era e é o mínimo. Não é algo, porém, que comova boa parte dos estudantes - que seguem ou assistindo aulas, ou entregando trabalhos e fazendo provas.

Frente a uma discussão sobre tudo isso, os fura-greve ficam incomodados até com essa definição: a de “fura-greve”. Consideram que deveria existir outra palavra. Alguém propôs “dribla-greve” – nós, no país do futebol.

Ponderei que a palavra é essa mesma. E que, na Itália, um termo somente - “crumiro” – sintetiza a situação de desrespeito à decisão da categoria. A greve é um instrumento de pressão que depende da massa, do coletivo. E brechas nessa multidão lembram, sim, a imagem de “furo”.

Os fura-greve não estão nem aí para essas histórias e para essa conceituação. Estão preocupados com seus projetos individuais.

Com um agravante: querem furar greve sem serem chamados de “fura-greve”.

Assim fica fácil, não é.

Curioso é que eles estão sempre prontos a lembrar aos grevistas dos ônus de suas decisões. Mas não querem ter o ônus da decisão inversa, o ônus de serem vistos como o que são: individualistas; sem comprometimento político (ou, pior, comprometidos com o lado oposto); fura-greve.

Não percebem que, ao desafiar decisões coletivas legítimas, arrebentam a possibilidade de mudanças. Deslegitimam o que foi decidido pelos colegas e, simplesmente, compactuam. No caso, com uma lógica policialesca – muito bem representada, aliás, lá no cinema italiano dos anos 70, pelos mesmos Petri e Volonté em “Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”.

Essa geração de pragmáticos coloca-se acima de qualquer suspeita e mostra que, no Brasil dos anos 2000, cidadania é um conceito praticamente furado. A grande utopia é a de se formar logo e rumar para o “mercado”. Parafraseando o ex-ministro Jarbas Passarinho, é como se dissessem: “Às favas os escrúpulos de consciência de classe”.

CURIOSIDADE

Na última cena de "Classe Operária vai ao Paraíso" um homem pilota freneticamente uma máquina, dentro da fábrica. Esse homem é um dos grandes músicos do século XX. Seu nome, Ennio Morricone.

Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

PS: aos sábados escrevo sobre cinema. Com o Natal e o Ano Novo, volto ao tema somente após as festas, em 2012.


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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Sem-teto temem "conflito do século” em São José dos Campos

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

A cidade da aeronáutica tem em seu chão uma bomba-relógio social. Duas mil famílias de sem-teto correm o risco de serem despejadas, em São José dos Campos (SP), naquela que é a maior ocupação urbana – organizada - da América Latina. A Justiça decidiu em julho pela reintegração de posse. Mas o movimento dos sem-teto, disciplinado, promete enfrentamento: “Agora é fogo no pavio! Sangue por sangue”.

A frase acima foi uma entre as escritas em faixas e cartazes do Movimento Urbano dos Sem Teto (Must), durante ato na Avenida Paulista, na semana passada. Vejamos outras elas, para sentir a temperatura: “Ocupar, construir, resistir. Legalizar na marra ou na lei”. Ou então: “Trabalhadores de ambos os lados vão morrer”.  Os líderes falam em “enfrentamento do século”.

As 9 mil pessoas da Ocupação Pinheirinho estão desde 2004 no local. Já foram construídas casas de alvenaria, em uma área de 100 hectares. O terreno pertence à Selecta, empresa do investidor Naji Nahas – famoso por ter quebrado a Bolsa dos Valores do Rio, em 1989. Em 2008 ele foi preso pela Polícia Federal durante a operação Satigraaha, acusado de crimes contra o sistema financeiro. A Selecta está falida. Seu único credor, o município de São José – pois nunca pagou IPTU.

Este blog conversou com o porta-voz do Must, Valdir Martins – conhecido como Marrom. Ele explicou que a radicalização parte da juíza que decidiu, em julho, pela reintegração de posse. Ela quer o terreno desocupado até o fim de dezembro. Por ora os sem-teto estão abertos à negociação. Mas não existe a chance deles aceitarem pacificamente a desocupação. No local vivem 2.600 crianças.

“Movimento é muito organizado, quase um soviet”, diz Marrom. Eles têm reunião de lideranças todas as segunda-feiras. Às terças ocorrem as reuniões de grupos. Sábado é dia de assembléia – com a participação de 4 mil pessoas. “Se tiver desocupação vai ter sangue por sangue", afirma o porta-voz. “Não tem condição de retroceder. Estamos muito preparados para reagir. E o governo sabe disso”.

O PROTESTO NA PAULISTA

Centenas de pessoas da Ocupação Pinheirinho estavam no vão livre do Masp, no dia 8 de dezembro. O ato foi reaizado pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), pelo MST (regional Campinas) e pelos trabalhadores da Fábrica Ocupada Flaskô. Todos seguiram em passeata pela Avenida Paulista (para o desespero dos motoristas) até a Rua Augusta, onde ocuparam o prédio do Banco do Brasil – no terceiro andar funciona o escritório do governo federal em São Paulo.

Durante o trajeto, mais palavras de ordem: “Ou é na lei... ou na marra!” A cena tinha seu toque surreal, diante de uma instalação de Natal da prefeitura paulistana. Abaixo de um Papai Noel gigante, símbolos do Banco do Brasil e da Rede Globo – em uma cidade que se recusou a ter outdoors.

Exatamente no prédio do Banco do Brasil os movimentos sociais reuniram-se com a chefe de gabinete do escritório regional do governo, Rosemary Nóvoa de Noronha. Ela ligou para Brasília e obteve uma audiência com o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República. Ela foi marcada para a próxima segunda-feira, dia 19 de dezembro.

Carvalho é o ministro encarregado da interlocução com movimentos sociais. Durante o governo Lula essa função cabia ao ministro Luiz Dulci. As lideranças de movimentos prezam essa interlocução – embora critiquem a ausência de políticas públicas de moradia e de assentamentos no campo. A ministra Maria do Rosário Nunes, da Secretaria de Direitos Humanos, também estará presente.

OS SEM TETO E A POLÍCIA

Enquanto os manifestantes esperavam a reunião com Rosemary, no terceiro andar do prédio do BB (cedido pelo banco ao governo federal), eles gritavam palavras de ordem e cantavam. “Se matarem um daqui/ Não há o que temer”, diz uma das músicas de protesto. “Aqueles que mandam matar/ também podem morrer”. A polícia é citada como “contratada para matar trabalhador”.

São Paulo teve um conflito com mortes entre sem-teto e polícia, no dia 20 de maio de 1997, no governo Mario Covas. Durante a reintegração de posse na Fazenda da Juta, na zona leste (em Sapopemba), os sem teto reagiram com paus e pedras. Três deles foram mortos pelos policiais – que reagiram com balas. Segue o relato da DHNet, a Rede de Direitos Humanos e Cultura:

- Uma das vítimas foi morta por uma única bala na nuca, sugerindo execução sumária. Outro sem-teto foi morto com tiros no peito, enquanto o policial afirmou ter atirado em defesa própria depois de ter sido derrubado ao chão. No entanto, segundo o relatório do médico legista, a vítima fora alvo de dois tiros que atravessaram o peito em linha reta.

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quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A ópera bufa dos tesoureiros de campanha: de PC a Eduardo Jorge

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

A dica político-literária está no livro “Privataria Tucana” (Geração Editorial, 2011). Ao falar de Eduardo Jorge, o ex-tesoureiro da campanha eleitoral de Fernando Henrique Cardoso, o autor Amaury Ribeiro Jr (em observação digna dos bons tempos de Arnaldo Jabor) descreve-o como protagonista de uma “grande ópera bufa”:

- Nos dias anteriores ouvira relato de jornalistas e mesmo de tucanos de que o “Sombra” (Eduardo Jorge) havia transformado a cobertura midiática da quebra do sigilo numa grande ópera bufa, em que ele era o mais divertido dos personagens. Com ironia, colegas de imprensa diziam que (...) o prócer do PSDB travestira-se de pauteiro e editor de veículos dos quais arrancara indenizações milionárias em ações de danos morais.

É grande a tentação de se estender a imagem - e falar de uma gigantesca ópera bufa da política brasileira. Ou, ao menos, de uma ópera bufa da era das privatizações. O próprio livro de Ribeiro Jr é uma fonte preciosa para essa dramaturgia às avessas, com seus personagens (políticos e jornalistas) disputando poder e espaço midiático de uma forma pouco republicana. Só as histórias de sombras e arapongas são suficientes para mostrar o quanto vivemos em um roteiro precário, em um simulacro de democracia.

Mas vou centrar a proposta de ópera bufa em três personagens centrais da história recente do Brasil: Eduardo Jorge de Caldas Pereira, Delúbio Soares de Castro e Paulo César Siqueira Cavalcante Farias. Eles coordenaram as campanhas eleitorais mais importantes da virada do século: as de Fernando Collor de Mello (1990-1992), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Nada menos, nada mais.

As histórias que contam desses três primeiros senhores são pouco edificantes. Poderiam motivar apenas relatórios – ou inquéritos, processos, investigações. Em meio a elas, porém, emergem personagens curiosos. Cômicos, canhestros. Prontos para entrar no palco e cantar a tragédia da política brasileira.

EDUARDO JORGE DE CALDAS PEREIRA

Amaury Ribeiro Jr desenvolve um aspecto específico da personalidade de Eduardo Jorge ao falar da sua fixação em mover processos contra jornalistas. Ele não só contratava os melhores advogados, conta o jornalista, mas acompanhava pessoalmente o passo dos algozes.

Uma das cenas do livro (na página 284) é representativa:

- Certa vez, quando trabalhava na IstoÉ, vi EJ sentado na plateia ouvindo o depoimento que o procurador da República Luiz Francisco de Souza, que o havia denunciado à Justiça, prestava em uma comissão do Senado. Perguntei-lhe por que estava ali. “Eu vou a toda palestra que ele (Souza) dá. Sigo-o para onde vai. É sempre muito divertido vê-lo falar”, respondeu com ironia.

A cena tem o seu quê de sinistro – mas, admitamos, em estilo bem mais clean (e menos subterrâneo) do que um de seus antecessores, PC Farias.

Ribeiro Jr diz também que os repórteres devem estar preparados para um certo dom de Eduardo Jorge: “Sua outra façanha é que ele se metamorfoseia de réu em vítima num passe de mágica”.

Personagens secundários: procurador Luiz Francisco de Souza, FHC, os irmãos Mendonça de Barros, Daniel Dantas, editores e donos de jornais e revistas.  Como sugere o nome do livro de Ribeiro Jr, “Privataria Tucana”, vale aqui uma abordagem neobarroca, com jogos de linguagem. Música: alguma sofisticadamente pretensiosa. Ao piano. Atenção, pessoal do figurino: tucanos de alta pluma tentam se vestir de modo an-te-na-dís-si-mo.

DELÚBIO SOARES DE CASTRO

Este me parece o mais difícil dos três – dramaticamente falando. Por trás de sua barba hirsuta esconde-se uma personalidade (ela mesma) hirsuta, quase inexpugnável. Sua gestualidade e seus movimentos são pouco expressivos. Delúbio é daqueles que, se pudessem, fugiriam do palco para recontar a féria. Como se não bastasse, é pouco eloquente, fala pra dentro, hesitante.

Do trio, o matemático Delúbio Soares é, sem dúvida, o mais obediente. Um “quadro” do partido. Ao contrário do estilo ostentatório (e vaidoso) dos outros dois tesoureiros, com suas mansões e atrevimentos visuais, o petista goiano destaca-se por uma certa simplicidade – não seria inverossímil vê-lo (feliz da vida) numa mesa de um botecão, tomando uma pinga de igual pra igual e jogando um carteado com o povão.

Ocorrem-me as peculiares cenas de churrasco envolvendo o tesoureiro. Um deles, este ano em Buriti Alegre (GO), comemorou sua volta ao PT, seis anos após a expulsão do partido, em 2005. Um vereador de Goiânia comemorou em faixa o retorno do “velho camarada que não perdeu a ternura e a vontade de viver”. A Folha descreveu assim o ato:

- Aberto aos moradores da cidade, o evento ofereceu churrasco a cerca de 200 amigos e correligionários do ex-tesoureiro num ginásio da paróquia local.

Não foi nem será o último churrasquinho paroquial: anos antes o Brasil estava um turbilhão político, a mídia antipetista histérica, a oposição apoplética, e a Delúbio (com sua teimosia sorrateira) já ocorria a ideia de fazer singelos churrasquinhos – “passem-me o sal, por favor”.

A abordagem deste personagem pode ser minimalista. Ou engajada – na esteira das obras revolucionárias do comunismo do século XX. Personagens secundários: Lula, o Metalúrgico. Marcos Valério, o vilão à Yul Brynner. Trilha sonora: sertanejo. O setor barbudo da novela só precisa deixar crescer a barriguinha de cerveja.

PAULO CÉSAR SIQUEIRA CAVALCANTE FARIAS

PC Farias quase dispensa apresentações. Poucas informações seriam mais significativas do que o nome de um dos livros sobre este personagem melífluo: “Morcegos Negros”. O leitor distraído pensará que se trata de brincadeira – mas foi escrito, sim, e muito bem escrito, pelo jornalista Lucas Figueiredo (Editora Record, 2000).

É quase como se já estivesse tudo pronto a respeito de PC. Era uma inesgotável fonte de histórias – de alto escalão, baixo escalão, trombadas, ameaças, atropelamentos e morte. O livro de Figueiredo mostra nada menos que conexões internacionais do esquema PC com a máfia italiana. (O leitor imagine agora Paulo Cesar ajeitando os óculos e cuspindo para o lado.)

Não à toa, há muita gente que interpreta essa Era Collor como apenas um avanço de sinal. Não se tratavam de métodos exatamente novos de fazer política. Mas sim de uma exacerbação do clientelismo – bandoleiro e pouco cordial. Aumentava-se o valor das propinas – para a revolta dos corruptores de plantão. Some-se a isso a monumental intriga familiar, o delator Pedro Collor, a musa Thereza, e estava pronto o roteiro da tragédia.

Os personagens secundários multiplicam-se, com larga hegemonia alagoana: Fernando Collor de Mello, o sobrevivente, sempre em primeiro plano (com PC chupando tortamente um charuto ao fundo), a namorada Suzana Marcolino, o irmão Augusto Farias e uma legião midiática de médicos legistas.

Dúvida consistente: que ator magnífico poderia interpretar PC Farias? Melhor seria assumir um simulacro: Matheus Nachtergaele e Gero Camilo alternariam-se com atores comuns. Ou melhor: atores não profissionais, homens minimamente roliços e ensaboados praticando os olhares furtivos de PC. Uma homenagem ao neorealismo italiano – mas não à sua poesia. Figurino? Aleatório, claro. Música: Arrigo Barnabé e sua "Clara Crocodilo".


O dramaturgo Mario Viana discorda veementemente da escolha dos atores: "PC tem de ser Mauro Mendonça, um dos grandes de sua geração. Ou Paulo Goulart. Ou Ary Fontoura".

O difícil no caso de PC Farias é fazer Fernando Collor não roubar completamente a cena. Afinal, todos sabem que a família Collor caiu em um caldeirão de dramaturgia quando era pequena. Collor de Jet-ski, Collor com os punhos cerrados e cara de mau, Collor redivivo no Senado, o pai de Collor matando um colega no Senado, os figurinos explosivos de Rosane Collor, a saga da família Malta e seu faroeste muito particular no sertão alagoano...

Enquanto não surge um roteirista mais petulante (e com tanta imaginação), fiquemos apenas com os três simpáticos e eficientes tesoureiros. Eduardo, Delúbio, Paulo. Que Honoré de Balzac se ressinta por não ter escrito milhares de páginas sobre esses espetaculares fabricantes de desilusões.


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