quinta-feira, 27 de junho de 2013

Ex-deputado Ricardo Bacha quintuplicou suas terras rurais em dez anos

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)*

Entre 1996, dois anos antes de se candidatar ao governo do Mato Grosso do Sul, e 2006, candidato a deputado estadual, o pecuarista Ricardo Bacha teve o patrimônio ampliado de R$ 554 mil para R$ 1,75 milhão. A quantidade de terras saltou de 1.252 hectares para 6.214 hectares. Os dados constam das declarações de bens entregues à Justiça Eleitoral.

Bacha é pivô da crise com os indígenas da etnia Terena, no Mato Grosso do Sul. Eles reivindicam 17 mil hectares na região. A Fazenda Buriti, do ex-deputado, leva o mesmo nome da Terra Indígena Buriti, já reconhecida pela Funai, mas não homologada pelo Ministério da Justiça. Foi lá que morreu o indígena Oziel Gabriel, em maio, baleado pela Polícia Federal durante reintegração de posse. Dias após, em outra fazenda, outro Terena foi baleado pelas costas, mas sobreviveu.

A Fazenda Buriti já aparecia na declaração entregue em 1998, quando Ricardo Bacha foi candidato ao governo pelo PSDB. Seu valor era de R$ 272 mil. Um ano depois passou para R$ 333 mil, valor que não foi mais corrigido. Ela tem 302 hectares – onde o pecuarista, formado em engenharia, cria gado.

O blog solicitou os dados há algumas semanas ao presidente do TRE-MS, já que, ao contrário da declaração de 2006, eles não estão disponíveis na internet. Em 1998, Bacha apresentou a lista entregue ao Imposto de Renda em dois anos: 1996 e 1997. Os valores corrigidos de um ano para o outro não foram mais atualizados.

Entre 1997 e 2006 o pecuarista adquiriu terras menos valiosas que a Fazenda Buriti, porém mais extensas. Bacha tinha somente três fazendas em 1997 (com 1.252 hectares). Em 2006, quando foi candidato à Assembleia Legislativa pelo PPS, a quantidade de fazendas saltou para 13. Perfazendo o total de 6.214 hectares.

Uma dessas dez novas terras fica em Caracol (MS). É a Fazenda São Judas Tadeu, com 903 hectares, declarada por valores redondos: R$ 270 mil. Outra, a mais extensa, fica em Ribas do Rio Pardo (MS). A Fazenda Limão tem 3 mil hectares e foi declarada por R$ 300 mil.

O preço das terras é considerado o principal motivo da resistência dos fazendeiros em deixar o local. O conflito no Mato Grosso do Sul foi um dos principais assuntos de maio. Em junho, com os protestos de rua em todo o Brasil, perdeu visibilidade.

Note-se que a correção do preço da fazenda Buriti, em 1997, para R$ 333 mil, ocorreu já durante a vigência do real. E que a fazenda em Ribas do Rio Pardo, dez vezes maior que ela, foi declarada por menos que isso.

* o autor deste blog é também o autor do livro Partido da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro (Editora Contexto, 2012)

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quarta-feira, 26 de junho de 2013

As elites vândalas, a imprensa baderneira e os policiais bandidos

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Vejam qualquer edição do Jornal Nacional, neste junho de 2013. E contem quantas vezes Wiilliam Bonner repete as palavras “vândalos” e “baderneiros”. Mas também “bandidos”. Observem como quase não há variações: vândalos, baderneiros, bandidos. Vândalos. Baderneiros. Baderneiros, bandidos, vândalos. E como ele fala com ênfase, como se estivesse falando de figuras que ali sempre estiveram. Personagens de todos os dias nas ruas e nos jornais, como “políticos”, “administradores”, “vendedores”, “donas de casa” etc. Os vândalos. Os baderneiros.

Esses terríveis vilões. Figuras pré-existentes, velhos conhecidos do apresentador, adormecidos desprezíveis que só estavam aguardando a hora para ir às ruas e “depredar”. Bonner só estava à espera dessa massa. Conhece-os todos, há tempos, já os mapeou. Com eles a Globo explica a história do Brasil e as convulsões sociais, a questão urbana e a lógica das multidões, a primavera e o cansaço, a revolta e o transbordamento. A política e a ética, a rua e a ordem. A partir deles o apresentador se sente mais justo, mais cidadão, mais honrado, mais Bonner.

Bonner precisa dos baderneiros e vândalos para sua narrativa. Sem eles, como ficaria? Órfão. Num mundo pré-baderna, pré-vandalismo: o horror. Mas é preciso notar uma extrema coincidência nessa narrativa de Bonner: os vândalos e baderneiros são sempre gente do povo. Nenhum deles usa terno e gravata! Não ficamos sabendo de nenhum vândalo do colarinho branco, nenhuma pessoa jurídica que seja baderneira. Bonner olha com desprezo para aquelas figuras frenéticas (sinistras, pensa ele) e sentencia: “Esses... esses bandidos!”

Vândalos e baderneiros, baderneiros e vândalos compõem o vocabulário básico das elites brasileiras, neste mês histórico. Com eles são evocados os fantasmas que levaram a 1964, quando os baderneiros começaram a escalar as páginas dos jornais – até ganharem outra alcunha, a de “terroristas”. Mas com eles se explica também 2013, 2014, 2018. Um futuro garantido, sem eles. Ou com eles a resumir a Desordem Mundial. Querem entender o que está acontecendo? Chamem os elementos estranhos de “vândalos”. Que rima com escândalos. “Baderneiros”. Que rima com maconheiros.

Seres desprezíveis, portanto. Uma escória, pronta para entupir os presídios. Seres muitíssimo diferentes dos empresários, dos latifundiários, dos banqueiros. Estes sim, senhores limpos, diferenciados. Com nome, sobrenome, capacidade de sorrir e cores múltiplas de gravata. Individualizados. E não aqueles selvagens correndo ao fundo, aqueles... aqueles vândalo-baderneiros, baderneiro-bandidos, vândalo-bandido-baderneiros. Aqueles jovens sem idade e identidade, exibidos em movimentos ao fundo, meio sem rosto, com capuzes. Sem estética. E sem voz.

(Não ouviremos Bonner dizer: “Este baderneiro considera que...”; “Segundo este vândalo, entrevistado pelo Jornal Nacional...”)

Agora vejam como Bonner fala dos policiais que “se excederam”. Policiais “que teriam” cometido excessos durante as manifestações. As imagens mostram policiais tocando o horror nas ruas do Rio ou de São Paulo, com sangue nos olhos, batendo, atirando, ferindo, mas não importa. Na narrativa global, bonneriana, esses erros policiais aparecem apenas como eventuais pecadinhos, sempre no condicional. No futuro do pretérito do que ele gostaria que não fosse. Possivelmente, e isto será investigado com rigor pela própria polícia, eles talvez tenham cometido alguma irregularidade. Esses impetuosos.

(A voz de Bonner até baixa nesses momentos, ele meio que pede desculpas por estar aventando hipóteses intoleráveis.) 



E as elites corruptoras? Os brasileiros já terão percebido que não tem latifundiário grileiro no Jornal Nacional? Fazendeiro que comete crime ambiental, pecuarista que promove trabalho escravo? Claro que não, pois eles não existem. Ao contrário dos baderneiros, que só estavam à espreita, em algum cantinho da história brasileira, planejando seus temíveis ataques, esses fazendeiros, pecuaristas e latifundiários nunca existiram e nunca existirão, aos olhos atentos de Bonner, o Justo. Ninguém roubou o Brasil, ninguém terá dilapidado seus recursos. Nunca vimos aquela empresa de agrotóxicos promovendo uma baderna.

Claro, pois Bonner é também o editor-chefe, além de apresentador do jornal. Ele se antecipa aos fatos noticiados e detecta, na origem, se há sinais claros de vandalismo (errado) ou baderna (condenável). Municípios inteiros com várias camadas de propriedades, por causa do roubo acumulado de terras, não existem. Só podem existir em um país fictício. Não são assunto para a Globo – ao contrário de entusiasmantes vidros quebrados, fogo no colchão, correria, correria, correria. Histórias de grilagem são muito chatas. E, se fossem pautadas, o jornal teria de ouvir advogados igualmente chatos. Sem movimento. Como pode haver genocídio indígena se não há uma imagem, se não há um vândalo encapuzado?

Chamar um banqueiro golpista de bandido? Claro que não. Contenham-se: Bonner não é um irresponsável. Desvio de bilhões? Calúnias, injúrias. Bonner é sereno, magnânimo, ouve sempre o outro lado. E vai que a Globo tome um processo - justíssimo. Empresário algemado? Nunca! Jamais! Todos são inocentes até prova em contrário, e só serão acusados após o trânsito em julgado. Classificar Barack Obama de vândalo, por invadir dados confidenciais de todo o planeta? Insinuar que ele seja baderneiro, por ter bombardeado alguns civis, algumas ditaduras? Longe disso – o presidente dos Estados Unidos tem nome, sobrenome, glamour e defende causas justas. Combate os “terroristas”.

Os distintos membros das elites (brasileiras e mundiais) podem ficar sossegados. Fracos e oprimidos, sempre às voltas com injustiças, eles têm no jornalismo das principais emissoras de televisão seu defensor imediato, sua blindagem estrutural. Seus pequenos desvios não correm o risco de ser tratados com ênfase, com insistência. Após algum tempo aquele que tenha se excedido poderá falar novamente à reportagem, no assunto de sua especialidade: “Este empresário considera que...” “Segundo este economista, o país...” E terá até espaço para criticar alguém, ficar indignado – com os vândalos, com os baderneiros.

Cidades inviáveis, Estado furtado? A violência como fruto dos abismos sociais? Racistas, nós? Um país que trabalha para pagar a dívida que já foi paga várias vezes? Um mundo onde algumas centenas de obsessivo-compulsivos disputam quem vai ser o mais rico, com 1 bilhão de pessoas passando fome na outra ponta? “Isto não é uma bandalheira”, pensa Bonner. Uma lógica econômica que acaba com os rios, florestas, que envenena as comidas, que oprime quilombolas, expulsa camponeses, naturaliza as favelas, os boias-frias e a desigualdade? “Isto não é um escárnio”. Extermínio da juventude negra nas periferias? “Isto não é uma chacina”.

E, portanto, não são notícias. Não há nada de errado neste sistema, que defenderemos com unhas, dentes e palavras muito bem escolhidas. Nada de errado no reino da paz. Basta eliminarmos estes ruídos, estes intrusos. Mantenhamos a sociedade feliz e esperançosa até o próximo capítulo da novela. A cidade está viva, o país progride. Todas as peças seguem compondo esta bela engrenagem. Minha voz é modulada, confortante, precisa. E precisamos preservar a ordem. O problema são esses baderneiros aí, está vendo aquele lá? (A edição faz um X ou desenha um círculo vermelho no baderneiro: a causa de todos os males.) É um vân-da-lo! Um ban-di-do! Um ba-der-nei-ro! Não é mesmo, Patricia Poeta?

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terça-feira, 18 de junho de 2013

17 de junho, Brasil: uma análise do Jornal da Globo

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Segue análise como publicada na madrugada, logo após o encerramento do jornal, no Facebook:

- Waack e Pelajo mais seguros que Bonner e Poeta. Estes estavam loucos para fugir dos protestos como tema, e proteger a Copa. E varreram a história ao vivo para debaixo do tapete. Mas entre o fim do JN e o início do Jornal da Globo (que demorou), cúpula da Globo parece ter analisado a conjuntura - e redefinido sua estratégia. A dupla parecia já ter entendido tudo o que acontece no Brasil e no mundo.

Desta forma, os termos vieram redefinidos. Sobreviveram os "vândalos" e "baderneiros", associados aos que ocuparam - ou quase - prédios públicos, no Rio, Brasília e em São Paulo. Em contrapartida, os manifestantes "pacíficos", "a grande maioria". Esses que eles querem conquistar para uma nova agenda temática. (Notem que Datena falara no mensalão; Marcelo Rezende, em inflação.)

A PEC 37 apareceu com Waack e, depois, com Arnaldo Jabor. Fazendo seu mea culpa manipulador, como no artigo que escrevera, com essa agenda que não é a de quem apanhou nos últimos protestos. (E nos últimos 200 anos.) Até a pauta do transporte foi minimizada, pois a emissora mostrou gente sendo prejudicada: motoristas, usuários. Às ruas? "Sim, mas com os nossos temas".

Não faltou um ex-policial paulista analisando a polícia paulista. Até fez algumas críticas a ela, é verdade, mas sem a ênfase do jornal contra os "vândalos-baderneiros". É como se estes compusessem uma entidade estrutural, naturalizada, espécie de monstros incorrigíveis. A polícia violenta, a polícia sádica? Ora, diz nas entrelinhas o discurso da Globo, essa apenas teria feito uns pecadinhos na quinta-feira. Merece um puxão na orelha.

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17 de junho, Brasil: uma análise do Jornal Nacional

por ALCEU LUÍS CASTILHO
(@alceucastilho)

O dia de ontem foi histórico também em termos midiáticos. Das redes sociais aos helicópteros das redes de TV eram milhares de informações relevantes, para quem tentava zapear e clicar, com 50 dedos em cada mão, do fim da tarde ao início da madrugada.

A análise do papel dos meios de comunicação, como a guinada dos principais veículos em relação às manifestações, e sua tentativa de emplacar outras pautas, certamente será objeto de estudo nos próximos anos. Assim como os próprios protestos.

Aqui adianto análise do Jornal Nacional escrita no calor do momento. Procurei fazer uma espécie de fotografia de uma edição histórica. Note-se ainda que, ao vivo, Patricia Poeta teve de defender a Globo por causa das críticas dos manifestantes, que passavam em frente da emissora, em São Paulo. (Numa curiosa interação direta entre manifestantes, cidade e mídia.)

O texto foi publicado logo em seguida, no Facebook, e buscava expressar exatamente o momento intenso vivido tanto pelo país como por jornalistas. E cuidadosamente amortecido pela Globo:

- Patricia Poeta e o editor-chefe, William Bonner, praticaram um jornalismo constrangedoramente amortecedor. O oposto do sensacionalismo: algo destinado a tirar o som e o movimento das ruas. Isto numa das manifestações de massa mais importantes da história do Brasil. Raras vezes vi jornalistas brigando tanto com as notícias (e seus climas, suas nuances, suas espetacularidades).

Claro, isso foi planejado. Fizeram no JN o que o Arnaldo faz nas transmissões de futebol. Representaram a "ordem". Ainda que com menos humor. Poeta está visivelmente tensa. Sob ordens rígidas. Os repórteres passam informações burocráticas, em meio a uma edição cuidadosamente asséptica, como se não estivéssemos dentro de uma história de conflitos - e uma história com desfecho ainda imprevisível.

Perto desse show de cinismo (e interpretação soft), o que aconteceu na edição histórica do debate Lula x Collor, em 1989, foi fichinha. Um ensaio.

O jornal encerra com William Bonner quase num mosteiro budista: "Tudo terminou pacificamente... essas manifestações... pacificamente."

É como se dissesse: "essas manifestações... essas... essas danadinhas!"



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quinta-feira, 6 de junho de 2013

Quantas pessoas, de verdade, foram mortas no Brasil durante a ditadura?

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Já há dados suficientes para que entre no debate público brasileiro uma revisão histórica crucial: quantas pessoas foram mortas diretamente por influência da ditadura de 1964? O dado é fundamental em relação ao regime que, em comparação com as ditaduras chilena (40.280 mortos) e Argentina (30 mil mortos), é conhecido por ter “matado menos”: supostamente, algumas centenas. E que o jornal Folha de S. Paulo já chamou de “ditabranda”. 

Ocorre que a cultura brasileira é também a do disfarce. O jornal O Globo revelou ontem a descoberta de uma foto forjada, no Rio Grande do Sul, do taxista Ângelo Cardoso da Silva  que, nos dados oficiais, teria cometido um suicídio. Como no caso Vladimir Herzog. Pergunta: quantos homicídios no Brasil foram registrados como suicídios, entre 1964 e 1985?

Pergunta mais difícil: quantos homicídios foram registrados como acidentes de trânsito, ou outras causas? As Comissões de Verdade podem chegar a esse nível de detalhamento?

Pergunta menos óbvia: quantas pessoas indesejáveis ao regime foram enviadas a hospícios, e, ali, mortas?

Esta última vem a propósito do lançamento do livro Holocausto Brasileiro – vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil (Geração Editorial), de Daniela Arbex. Vejam como a jornalista Eliane Brum, que prefaciou o livro, resume as vítimas da instituição chamada “Colônia”, em Barbacena (MG): “Epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, mendigos, militantes políticos, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder”. Prestem atenção: militantes políticos?

CAMPONESES E INDÍGENAS

No ano passado a própria Folha informou que a lista oficial de mortos pela ditadura pode ser ampliada: com mais 600 mortos além das 357 vítimas já registradas. “São camponeses, sindicalistas, líderes rurais e religiosos, padres, advogados e ambientalistas mortos nos grotões do país entre 1961 e 1988”, escreveu o repórter.

Mas há pelo menos uma omissão nessa lista: os índios. Somente entre os Waimiri-Aitroari foram mais de 1.100 mortos, segundo o antropólogo José Porfírio de Carvalho, da Eletronorte. “Morreram de doença e morreram à bala”, afirma Carvalho. “E armado lá quem estava era o Exército”.

“Muitos indígenas foram mortos com napalm, outros eletrocutados, uns com armas de fogo”, diz Egydio Schwade, ex-secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). E há também o caso dos Paracanã. Segundo Schwade, massacrados durante a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará.

Livros que relatam os conflitos nessa região do Rio Tocantins, aliás, são fartos em descrições de mortes de camponeses. Além da destruição de suas casas, da humilhação. E isso se repetiu em outras regiões do Brasil: estarão contemplados naquele cálculo de 600 vítimas extras da ditadura?

Façamos uma conta simples. Somando as 357 vítimas atuais com as 600 já reivindicadas com os 1.100 indígenas já teríamos 2 mil vítimas da ditadura. Por baixo. Sem entrar ainda em casos como o de Josué de Castro, um dos maiores intelectuais que o Brasil teve, aquele que pautou a fome no mundo – que, cassado em 1964, morreu de exílio, em 1973. De tristeza.

Nem é preciso dizer que essa conta não se trata de um “detalhe”. Um país não pode viver sob o peso da ocultação de homicídios praticados pelo Estado. Isso sem falar em outras abominações, como a destruição sistemática de casas de camponeses, as aldeias incendiadas, a tortura nos porões e nos hospícios.

De início, perguntamos: quantos milhares de seres humanos o regime militar assassinou?

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quarta-feira, 5 de junho de 2013

Está deflagrado o Outono Indígena no Brasil

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Às vésperas do inverno, esquenta a temperatura no campo. São vários os sinais de que vivemos um momento histórico em relação à questão indígena. O assassinato de Oziel Gabriel em Sidrolândia (MS) na semana passada, um índio Terena, foi a senha para o governo e a imprensa começarem a se movimentar. Mas a um passo atrás do movimento de indígenas (não só Terena) e fazendeiros.

Essa história tem 513 anos. A esse número impactante corresponde uma ignorância brutal, no eixo Rio-Brasília-São Paulo, em relação ao cotidiano das etnias e à dinâmica específica das demarcações. À ignorância soma-se o discurso ruralista, manipulador, de olho na expansão do território do agronegócio.

A Folha publicou hoje entrevista com um líder dos produtores rurais do Mato Grosso do Sul. “Estamos falando de um massacre iminente”, disse ele.  "Vai morrer mais gente", afirmou. "Vai ter mais sangue".

Gente morrendo e sangue correndo acontece há séculos, entre os indígenas. No ano passado a PF matou Adenilson Munduruku. Às mortes violentas e sistemáticas, homicídios e genocídios, somam-se os suicídios, que não deixam de ser outro genocídio disfarçado, e o extermínio pela omissão: pela ausência de saúde, pelo cerceamento dos modos indígenas de ser.

Enquanto isso, brancos cínicos, pensadores tímidos, eurocêntricos rudimentares repetem frases preconceituosas sobre as etnias: admiram-se por eles usarem máquinas fotográficas, tênis, camisetas com marca. O antropólogo José Ribamar Bessa Freire já escreveu o artigo definitivo sobre isso: “Os índios do Século XXI”. E desconstruiu a infâmia.

Os jornais não têm desculpas em relação a essa distração histórica, a esse distanciamento socio-geográfico. Mas, de repente, veem-se obrigados a cobrir a escalada do levante indígena. Por causa da ocupação de rodovias? Por causa da morte de Oziel? Talvez por tudo um pouco, mas também pela ocupação, por membros da etnia Kaingang no Paraná da ministra Gleisi Hoffmann, de uma das sedes do PT.

A partir das duas letrinhas mágicas exporta-se para a questão indígena, portanto, o debate político maniqueísta que reina nestas terras invadidas: o Fla-Flu entre PT e PSDB. Esse debate que reduz tudo a uma disputa entre grupos partidários hegemônicos – e que dispensa uma bela perspectiva histórica, sociológica. Ou uma abordagem minimamente humanista. Questão indígena, bem sabem os antropólogos, é algo que perpassa governos udenistas e petistas, regimes verde-oliva e tucanos, sem solução à vista.

E os indígenas reagem – para quem tiver olhos para ver, neste momento crucial da história brasileira. Eles não engoliram a suspensão da demarcação de terras indígenas, fruto de pressão dos políticos ruralistas. Estes aprovaram cana na Amazônia, costuraram a tesourada na Funai, agora não mais o único órgão responsável pelas demarcações de terras, tornaram-se muito próximos das principais figuras do governo federal.

Pior: os indígenas reagem (com a Constituição na mão) sob atentos olhares internacionais. O jornal inglês The Guardian foi incisivo ao analisar a temperatura crescente ao sul do Equador e pedir “pressão internacional” contra o Brasil: este, em relação aos indígenas, diz o título, “viola direitos humanos”.

Esse Outono Indígena que se desenha, portanto, sem promessa de recuo no inverno ou no segundo semestre, tem um efeito-espelho em relação às primaveras políticas do hemisfério norte. Como no caso de Chico Mendes (1988), como na morte de Dorothy Stang (2005), não tem cara de algo que se possa varrer para debaixo do tapete. É o Sul do Sul que emerge junto com os arcos-e-flechas. A mais elegante e maltratada periferia do mundo.

Soluções à vista? Longe disso. Não há notícia de que a Força Nacional que anda por Belo Monte e agora migra para o Mato Grosso do Sul tenha habilidades diplomáticas. O delegado responsável pelas reintegrações de posse na região da Terra Indígena Buriti (curiosamente, em terras de políticos) também não faria grande sucesso como negociador. A Justiça? Ora, a Justiça tem lado: o das elites. Como Espinoza já dizia.

E, no entanto, o mundo se move. Os oprimidos, os indígenas, ganham voz. Como expôs a BBC: “Índios usam mídias sociais para fortalecer voz própria”. E falam em vingar Oziel. Um somente? Não: muitos, muitíssimos. Do outro lado, as palavras do pecuarista ecoam: “Vai morrer mais gente. Vai ter mais sangue”.

Todos estão avisados. Os jornais são míopes, porém, os jornais desaprenderam a fazer reportagens, os jornais não enxergam muitos palmos desse país continental. E os jornais também têm um lado. Os jornais preservam os proprietários de terra – mesmo diante de evidências de grilagem (em um país grilado), de crimes ambientais (no país do desmatamento), de trabalho escravo (um senhor de 513 anos). Os jornais evocam o discurso da legalidade apenas quando esta lhes é conveniente.

O mínimo necessário em meio a esse cenário bélico é fazer política. No sentido mais nobre do termo: política de alto nível, muita política. Política com afinco, política maiúscula. Mas a redução do debate a algumas palavras-de-ordem (em meio a uma lavagem cerebral patrocinada pelos tratoristas-ruralistas) e o calendário eleitoral não ajudam nem um pouco.

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