As elites vândalas, a imprensa baderneira e os policiais bandidos
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Vejam
qualquer edição do Jornal Nacional, neste junho de 2013. E contem
quantas vezes Wiilliam Bonner repete as palavras “vândalos” e
“baderneiros”. Mas também “bandidos”. Observem como quase não há
variações: vândalos, baderneiros, bandidos. Vândalos. Baderneiros.
Baderneiros, bandidos, vândalos. E como ele fala com ênfase, como se
estivesse falando de figuras que ali sempre estiveram. Personagens de
todos os dias nas ruas e nos jornais, como “políticos”,
“administradores”, “vendedores”, “donas de casa” etc. Os vândalos. Os
baderneiros.
Esses terríveis vilões. Figuras pré-existentes,
velhos conhecidos do apresentador, adormecidos desprezíveis que só
estavam aguardando a hora para ir às ruas e “depredar”. Bonner só estava
à espera dessa massa. Conhece-os todos, há tempos, já os mapeou. Com
eles a Globo explica a história do Brasil e as convulsões sociais, a
questão urbana e a lógica das multidões, a primavera e o cansaço, a
revolta e o transbordamento. A política e a ética, a rua e a ordem. A
partir deles o apresentador se sente mais justo, mais cidadão, mais
honrado, mais Bonner.
Bonner precisa dos baderneiros e vândalos
para sua narrativa. Sem eles, como ficaria? Órfão. Num mundo
pré-baderna, pré-vandalismo: o horror. Mas é preciso notar uma extrema
coincidência nessa narrativa de Bonner: os vândalos e baderneiros são
sempre gente do povo. Nenhum deles usa terno e gravata! Não ficamos
sabendo de nenhum vândalo do colarinho branco, nenhuma pessoa jurídica
que seja baderneira. Bonner olha com desprezo para aquelas figuras
frenéticas (sinistras, pensa ele) e sentencia: “Esses... esses
bandidos!”
Vândalos e baderneiros, baderneiros e vândalos
compõem o vocabulário básico das elites brasileiras, neste mês
histórico. Com eles são evocados os fantasmas que levaram a 1964, quando
os baderneiros começaram a escalar as páginas dos jornais – até
ganharem outra alcunha, a de “terroristas”. Mas com eles se explica
também 2013, 2014, 2018. Um futuro garantido, sem eles. Ou com eles a
resumir a Desordem Mundial. Querem entender o que está acontecendo?
Chamem os elementos estranhos de “vândalos”. Que rima com escândalos.
“Baderneiros”. Que rima com maconheiros.
Seres desprezíveis,
portanto. Uma escória, pronta para entupir os presídios. Seres
muitíssimo diferentes dos empresários, dos latifundiários, dos
banqueiros. Estes sim, senhores limpos, diferenciados. Com nome,
sobrenome, capacidade de sorrir e cores múltiplas de gravata.
Individualizados. E não aqueles selvagens correndo ao fundo, aqueles...
aqueles vândalo-baderneiros, baderneiro-bandidos,
vândalo-bandido-baderneiros. Aqueles jovens sem idade e identidade,
exibidos em movimentos ao fundo, meio sem rosto, com capuzes. Sem
estética. E sem voz.
(Não ouviremos Bonner dizer: “Este baderneiro considera que...”; “Segundo este vândalo, entrevistado pelo Jornal Nacional...”)
Agora
vejam como Bonner fala dos policiais que “se excederam”. Policiais “que
teriam” cometido excessos durante as manifestações. As imagens mostram
policiais tocando o horror nas ruas do Rio ou de São Paulo, com sangue
nos olhos, batendo, atirando, ferindo, mas não importa. Na narrativa
global, bonneriana, esses erros policiais aparecem apenas como eventuais
pecadinhos, sempre no condicional. No futuro do pretérito do que ele
gostaria que não fosse. Possivelmente, e isto será investigado com rigor
pela própria polícia, eles talvez tenham cometido alguma
irregularidade. Esses impetuosos.
(A voz de Bonner até baixa nesses momentos, ele meio que pede desculpas por estar aventando hipóteses intoleráveis.)
E
as elites corruptoras? Os brasileiros já terão
percebido que não tem latifundiário grileiro no Jornal Nacional?
Fazendeiro que comete crime ambiental, pecuarista que promove trabalho
escravo? Claro que não, pois eles não existem. Ao contrário dos
baderneiros, que só estavam à espreita, em algum cantinho da história
brasileira, planejando seus temíveis ataques, esses fazendeiros,
pecuaristas e latifundiários nunca existiram e nunca existirão, aos
olhos atentos de Bonner, o Justo. Ninguém roubou o Brasil, ninguém terá
dilapidado seus recursos. Nunca vimos aquela empresa de agrotóxicos
promovendo uma baderna.
Claro, pois Bonner é também o
editor-chefe, além de apresentador do jornal. Ele se antecipa aos fatos
noticiados e detecta, na origem, se há sinais claros de vandalismo
(errado) ou baderna (condenável). Municípios inteiros com várias camadas
de propriedades, por causa do roubo acumulado de terras, não existem.
Só podem existir em um país fictício. Não são assunto para a Globo – ao
contrário de entusiasmantes vidros quebrados, fogo no colchão, correria,
correria, correria. Histórias de grilagem são muito chatas. E, se
fossem pautadas, o jornal teria de ouvir advogados igualmente chatos.
Sem movimento. Como pode haver genocídio indígena se não há uma imagem,
se não há um vândalo encapuzado?
Chamar um banqueiro golpista de
bandido? Claro que não. Contenham-se: Bonner não é um irresponsável.
Desvio de bilhões? Calúnias, injúrias. Bonner é sereno, magnânimo, ouve
sempre o outro lado. E vai que a Globo tome um processo - justíssimo.
Empresário algemado? Nunca! Jamais! Todos são inocentes até prova em
contrário, e só serão acusados após o trânsito em julgado. Classificar
Barack Obama de vândalo, por invadir dados confidenciais de todo o
planeta? Insinuar que ele seja baderneiro, por ter bombardeado alguns
civis, algumas ditaduras? Longe disso – o presidente dos Estados Unidos
tem nome, sobrenome, glamour e defende causas justas. Combate os
“terroristas”.
Os distintos membros das elites (brasileiras e
mundiais) podem ficar sossegados. Fracos e oprimidos, sempre às voltas
com injustiças, eles têm no jornalismo das principais emissoras de
televisão seu defensor imediato, sua blindagem estrutural. Seus pequenos
desvios não correm o risco de ser tratados com ênfase, com insistência.
Após algum tempo aquele que tenha se excedido poderá falar novamente à
reportagem, no assunto de sua especialidade: “Este empresário considera
que...” “Segundo este economista, o país...” E terá até espaço para
criticar alguém, ficar indignado – com os vândalos, com os baderneiros.
Cidades
inviáveis, Estado furtado? A violência como fruto dos abismos sociais?
Racistas, nós? Um país que trabalha para pagar a dívida que já foi paga
várias vezes? Um mundo onde algumas centenas de obsessivo-compulsivos
disputam quem vai ser o mais rico, com 1 bilhão de pessoas passando fome
na outra ponta? “Isto não é uma bandalheira”, pensa Bonner. Uma lógica
econômica que acaba com os rios, florestas, que envenena as comidas, que
oprime quilombolas, expulsa camponeses, naturaliza as favelas, os
boias-frias e a desigualdade? “Isto não é um escárnio”. Extermínio da
juventude negra nas periferias? “Isto não é uma chacina”.
E,
portanto, não são notícias. Não há nada de errado neste sistema, que
defenderemos com unhas, dentes e palavras muito bem escolhidas. Nada de
errado no reino da paz. Basta eliminarmos estes ruídos, estes intrusos.
Mantenhamos a sociedade feliz e esperançosa até o próximo capítulo da
novela. A cidade está viva, o país progride. Todas as peças seguem
compondo esta bela engrenagem. Minha voz é modulada, confortante,
precisa. E precisamos preservar a ordem. O problema são esses
baderneiros aí, está vendo aquele lá? (A edição faz um X ou desenha um
círculo vermelho no baderneiro: a causa de todos os males.) É um
vân-da-lo! Um ban-di-do! Um ba-der-nei-ro! Não é mesmo, Patricia Poeta?
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3 comentários:
Alceu, muito lucida a sua observacao agora essa postura tambem esta sendo adotada pelos sindicatos que durante os ultimos anos calaram a voz dos trabalhadores. Tambem querem pegar carona, ou como voce bem disse, pegar o onibus, sentar na janela mas com medo da reacoes das centrais sindicais que se esqueceram daqueles que as mantem.
Narrativa Global Boneriana foi otimo..rssr
Narrativa Global Boneriana foi otimo..rssr
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