Um trânsito assassino,
uma imprensa sem escrúpulos, uma sociedade voyeur
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
Um braço aqui, uma vida acolá. O trânsito brasileiro segue sua trajetória assassina. Agora com atropelamento online, em vídeo, para a apreciação imediata da distinta sociedade brasileira. Com contagem de page views e, ao lado, anunciantes torcendo para que haja mais cliques. Assistimos a tudo isso sem questionar – como se tivesse sido sempre assim. Banalizamos a morte. E o horror.
Não posso dizer quando
começou. Mas virou mesmo regra a imprensa repetir sem
constrangimento imagens de mortes ao vivo. O Brasil Urgente, da Band,
mostrou nesta segunda-feira, várias vezes (o fenômeno da repetição
tornou-se célebre com a queda das torres gêmeas) o vídeo do
atropelamento fatal de um ciclista no Recife. Ele atravessava a faixa - no sinal verde.
Em meio a esse voyeurismo mórbido, a tragédia do adolescente e a desgraça do trânsito brasileiro tornam-se apenas ativos para atrair audiência - e anunciantes. Sem perceber, entre um e outro zapeamento, a sociedade na sala-de-jantar vai achando isso normal. "Tá vendo, mulher? Olha como ele voou!" Ou então: “Mereceu. O semáforo ficou vermelho enquanto atravessava”.
Em meio a esse voyeurismo mórbido, a tragédia do adolescente e a desgraça do trânsito brasileiro tornam-se apenas ativos para atrair audiência - e anunciantes. Sem perceber, entre um e outro zapeamento, a sociedade na sala-de-jantar vai achando isso normal. "Tá vendo, mulher? Olha como ele voou!" Ou então: “Mereceu. O semáforo ficou vermelho enquanto atravessava”.
O UOL (supostamente dirigido a um público mais crítico) não ficou atrás e publicou a seguinte chamada: "Câmeras em PE mostram atropelamento e morte de ciclista". Isso podia ser visto na home do portal, acima de uma notícia sobre um go-go boy. Mais à esquerda, o Big Brother Brasil. Um pouco mais à direita e o leitor poderia encontrá-los, lá estavam eles – os amigos patrocinadores.
No dia 25 de fevereiro, o próprio UOL dava a seguinte chamada para outro vídeo:
"Imagens mostram homem sendo perseguido e espancado até a morte
no centro de Porto Alegre". De fato se tratava
de um espancamento cruel. Como se vários covardes do MMA – esses
que dão marretadas em cabeças alheias - se juntassem para matar um
ser humano. O portal também convidava, exultante: "Assista a
cenas da agressão em Porto Alegre".
Mesmo a história do jovem que atropelou o ciclista (e foi ao Tamanduateí jogar seu braço) não ganha contornos mínimos de uma reflexão necessária sobre a nossa violência diária. São mais de 40 mil mortes por ano no trânsito brasileiro. Foram mais de 40 mil mortes em 2011. O equivalente a 165 tragédias de Santa Maria. Sem falar dos feridos, mutilados.
Lamenta-se a estupidez deste ou daquele motorista, mas, em poucos dias, lá estamos nós falando de outra coisa - e não desse genocídio. Dessa cultura de Fórmula 1, dessa cultura que mitificou Ayrton Senna, o piloto que ultrapassava sempre (era o que importava), desse espírito capitalista de chegar à frente do outro (seja como for) que o álcool costuma potencializar nos canalhas.
Cada profissional de jornalismo é conivente com essa incitação à violência, esse horror à contextualização, essa banalização do crime. Esta não se dá somente no caso dos apresentadores mais truculentos, aqueles de programas ordinários, cheios de certezas taliônicas. E sim no principal portal do país. Esses jornalistas (que se esqueceram do que estudaram) estão patrocinando uma guinada de nossas percepções para a aceitação da barbárie.
Mas o país não vai parar para refletir sobre a dimensão regressiva dessa sordidez. A sordidez no trânsito, a sordidez da imprensa, a sordidez da indiferença, a sordidez da falta de reflexão sobre a sordidez. Estamos a cada dia (a cada programa televisivo, a cada primeira página de portal) celebrando o que há de mais desumano em nossas ruas. E incivilizado.
Nem mesmo a desconfiança de que tudo isso possa acontecer com um de nós (a morte, a mutilação, a exploração invasiva da imagem) nos leva a pensar em algo contra essa implosão – da ética e do bom senso. No caso da imprensa, há quem diga que seria "censura". No caso do trânsito, não nos importamos em abrir alas para o próximo patife passar. Ambos são símbolos perfeitos destes tempos sombrios.
Cada profissional de jornalismo é conivente com essa incitação à violência, esse horror à contextualização, essa banalização do crime. Esta não se dá somente no caso dos apresentadores mais truculentos, aqueles de programas ordinários, cheios de certezas taliônicas. E sim no principal portal do país. Esses jornalistas (que se esqueceram do que estudaram) estão patrocinando uma guinada de nossas percepções para a aceitação da barbárie.
Mas o país não vai parar para refletir sobre a dimensão regressiva dessa sordidez. A sordidez no trânsito, a sordidez da imprensa, a sordidez da indiferença, a sordidez da falta de reflexão sobre a sordidez. Estamos a cada dia (a cada programa televisivo, a cada primeira página de portal) celebrando o que há de mais desumano em nossas ruas. E incivilizado.
Nem mesmo a desconfiança de que tudo isso possa acontecer com um de nós (a morte, a mutilação, a exploração invasiva da imagem) nos leva a pensar em algo contra essa implosão – da ética e do bom senso. No caso da imprensa, há quem diga que seria "censura". No caso do trânsito, não nos importamos em abrir alas para o próximo patife passar. Ambos são símbolos perfeitos destes tempos sombrios.
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