por ALCEU LUÍS
CASTILHO (@alceucastilho)
Vejamos esta análise sobre a política brasileira:
- Nos dois lados - a favor ou contra o governo - surgiu a figura do "político profissional", para o qual o importante passou a ser o estardalhaço para "ganhar eleição", nunca um projeto de ação para a sociedade. Apoiadas na mercadologia das agências de publicidade, as campanhas fizeram-se entusiastas mesmo perdendo o significado político. Disputava-se uma eleição como uma partida de futebol. O pluralismo era postiço e falso, mas poucos o percebiam.
Poderia ter sido escrito em 2013? Poderia. Mas data de 1999 e se refere a um momento muito específico da política brasileira: os dias que se sucederam ao golpe de 1964.
O livro “Memórias do Esquecimento”, de Flávio Tavares (Editora Globo), volta a ganhar relevância com o lançamento do filme “O Dia que Durou 21 Dias”, de seu filho Camilo Tavares. Camilo não era nascido quando o pai foi preso, em 1969. Ambos assinam o roteiro, baseado inicialmente no livro, mas modificado após a descoberta de documentos, em Washington, que detalham o envolvimento dos Estados Unidos no golpe que derrubou João Goulart, há exatamente 49 anos.
Flávio foi um dos 15 presos políticos trocados pelo
embaixador americano Charlles Ellbrick, sequestrado no Rio. O próprio jornalista
descreve essa saga, logo no início do livro. Entre os demais libertados estavam
o comunista histórico Onofre Pinto e líderes estudantis como José Dirceu e
Vladimir Palmeira. Todos foram para o México, onde um burocrata brasileiro –
designado pelos militares - teve de engolir a seguinte frase do responsável
pelo setor da imigração: “En México mandamos nosotros”. Seguida de outra frase
clara: “Retirem as algemas e libertem estes senhores, e que eles desçam de
imediato”.
O ELOGIO DE SABATO
Camilo nasceu exatamente na Cidade do México, em 1971, durante o exílio do pai. Não o conheço pessoalmente, nem Flávio Tavares, mas casualmente conheci a mulher do jornalista, durante reportagem em Brasília, em 2006. É a senadora argentina Norma Morandini, pré-candidata à vice-presidência da República. Na época era deputada e participava de um debate sobre direitos humanos. Falamos do livro, que eu acabara de ler. E dos elogios feitos pelo escritor Ernesto Sabato, seu conterrâneo, à obra do marido:
- Flávio é um novo Dostoievkski, e Memórias do Esquecimento revela imagens vividas num inferno apenas entrevisto por Dante, Rimbaud e o próprio Dostoievski.
Especialista nessa temática subterrânea, Sabato (1911-2011) sabia do que estava falando. Mesmo que admitamos algum exagero, por causa de sua amizade com Norma (ela me contou isso, quando mencionei o elogio ao livro), ele é preciso ao falar de inferno: as descrições que Flávio Tavares faz dos porões da ditadura só podem ser, de fato, comparadas a esse cenário-símbolo. As sessões de tortura são descritas com intensidade atroz. Mas também a impotência, o desespero e a agonia das vítimas.
E o livro de Tavares talvez seja, de fato, o grande testemunho sobre o período da ditadura de 1964. Não pode competir com Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, que relatou a prisão durante o Estado Novo. Mas é literariamente superior a relatos similares, feitos por presos políticos. E olhem que tem livro bom nesse gênero, como “Náufrago da Utopia”, de Celso Lungaretti, e “Onde foi que Vocês Enterraram nossos Mortos?”, de Aluizio Palmar.
UM GÊNERO LITERÁRIO
Os três livros fazem parte de uma segunda geração de testemunhos sobre a última ditadura. A primeira inclui clássicos como “O Que é isso, Companheiro”, de Fernando Gabeira (1979), e “Batismo de Sangue”, de Frei Betto (1983), lançados ainda durante o governo de João Baptista Figueiredo. Gabeira, Betto e Alfredo Sirkis estiveram e estão ligados diretamente ao cenário político-partidário.
Os relatos do fim dos anos 90 (caso de Tavares, ou de Carlos Eugênio Paz) e anos 2000 (Lungaretti, Palmar), porém, soam mais maduros, com o distanciamento funcionando como depurador literário. As obras ganham uma densidade psicológica adicional. E possibilitam análises políticas mais refinadas, como essa de Flávio Tavares (que, em 1964 e 1969, era colunista político de jornais) reproduzida no início deste artigo.
Não se prendam somente aos filmes, portanto. Antes de haver uma sequência de películas sobre a ditadura, como tem assinalado a imprensa, existe essa fila imprescindível de livros, do gênero literatura de testemunho, que eu incluiria ainda num subgênero: literatura de testemunho sobre a ditadura de 1964. O conjunto dessas obras tem valor tanto literário como histórico – e precisa ser mais conhecido pelos brasileiros.
Em tempo: a L&PM lançou em 2012 uma versão pocket de “Memórias do Esquecimento”.
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