sexta-feira, 26 de abril de 2013

O Executivo, o Legislativo, o Judiciário e você: das pautas impostas aos debates necessários

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

As elites disputam espaço em Brasília. Executivo, Legislativo e Judiciário aparecem nos jornais como "los tres enemigos". Ganham manchetes e selecionam nossa indignação. Como se a adesão a algum lado contribuísse para um país mais republicano. Fala-se deste ou daquele personagem (mais gordo ou menos engomado) como se a retirada deste ou daquele da cena política fosse acarretar mudanças substanciais em nossa sociedade.

Abraçamos demonizações, em detrimento dos debates estruturais. E da necessidade de empoderamento, de maior participação da sociedade no debate político – não somente como voyeur.

Enquanto isso, um Brasil é empurrado para debaixo do tapete: índios chacinados em Roraima são ignorados, grupos de extermínio (por policiais) em São Paulo não alcançam a primeira página dos jornais, as remoções da Copa não competem com a última aberração verbal de Jérôme Valcke. Por onde andaria nosso projeto de nação?

Até há algum debate no Congresso (aquela instituição que, calculadamente, mais se demoniza), mas quem disse que sai na nossa gloriosa imprensa?

Uma das novidades ocorreu na noite desta quinta-feira, em São Paulo. Um debate em praça pública, sobre direitos humanos, encabeçado pelo cartunista Laerte. Com a participação de um político, é bem verdade (o deputado Jean Wyllys, do PSOL-RJ), mas um significado muito maior para a nossa cidadania. Isto no mesmo dia em que cartunistas se uniram, nas páginas da Folha de S. Paulo, em um beijaço contra o obscurantismo.

Ocorre que o obscurantismo não atende apenas pelo nome de Marco Feliciano. Ou Renan Calheiros, ou Gilmar Mendes. (Troquem os nomes de acordo com as preferências políticas, não importa.) O Brasil tem um déficit de debate público efetivo desproporcional à avalanche – superficial – de informações despejadas diariamente.

Teço essas considerações como um convite. É preciso ler mais: imprensa alternativa, livros, trabalhos acadêmicos. Estamos reduzindo nossa massa cinzenta a partir de pautas impostas, processadas. Tenho lido diariamente opiniões de colegas e amigos muito bem intencionados, com uma (muito bem-vinda) capacidade resistente de indignação. Mas reféns de discursos que nos foram impingidos, cortinas de fumaça em relação aos problemas de fundo.

Existe um Brasil profundo (violento, excludente) que precisa ser melhor discutido. Questão agrária e racismo, questão ambiental e machismo, questão urbana e higienismo não são temas que o Joaquim Barbosa vai resolver. Dependem de nossa participação direta em movimentos sociais e ambientais. (E não somente nos partidos ou nos dias de eleições.) Da construção de novos paradigmas de representação. E manifestação.

(Apenas para citar um exemplo de grande tema, brinquei outro dia que começarei a chamar o Brasil de Griladão. Por causa de sua grilagem estrutural - e pouco divulgada. Dessa grilagem que constitui o território brasileiro e desafia os discursos cínicos sobre legalidade. "Griladão, Ordem e Progresso". Mas creio que o Roberto Jefferson seja mais eficiente do que eu como marqueteiro.)

Temos hoje TV ao vivo pela internet, temos facilidade para financiamento coletivo de projetos, temos uma avenida virtual para informações contra-hegemônicas, mas precisamos aproveitar mais esses espaços crescentes. Desconfiando da extensão dos espaços anteriormente oferecidos – ocupados por uma espécie de oligopólio dos discursos conservadores. Por que dar tanta bola para esse clubinho da grande imprensa? Podemos muito mais que isso.
 

Temos a oportunidade de dizer ao mundo (em tempos de Copa e Olimpíadas) a que viemos, qual o nosso papel possível nesse xadrez mundial, mas estamos tímidos. Funcionando apenas como caixa de ressonância. E não sujeitos ativos na construção de uma nova sociedade – que preze (de forma inédita na história) o homem e o planeta, e não as agendas bélicas e economicamente predadoras.

Em outras palavras, o quarto poder (antes, a imprensa) já foi devidamente ampliado. Mas precisamos utilizar melhor suas ferramentas. Depois do teatro do oprimido e da pedagogia do oprimido, temos a internet do oprimido. Seu desenho está em plena gestação. Sua agenda, em aberto.

A agenda do poder é opressiva. E limitada. Em um país de 190 milhões de pessoas, é ditada por apenas umas poucas cabeças – nem tão pensantes assim. Mas poucos percebem o quanto estamos nela enredados.

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terça-feira, 9 de abril de 2013

Ocaso do Estadão acena para fim da venda ingênua da força de trabalho

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Eduardo Baptistão é um artista brasileiro de nível internacional. Sua especialidade, caricaturas. Com elas já foi reconhecido inúmeras vezes. Ganhou duas vezes o World Press Cartoon, foi cinco vezes eleito pelo Troféu HQ Mix o melhor no Brasil. Retratou o papa Bento 16 e Einstein, Mick Jagger e Roberto Benigni, mas também Fernando Henrique e Lula, os Novos Baianos e Vinícius de Moraes - em imagens que ficarão para a posteridade.

Na semana passada Baptistão foi demitido, após 22 anos, da empresa onde trabalhava: o jornal Estado de S. Paulo, o Estadão. Não é, e nunca foi, nenhum jornal de nível internacional. Mas ainda se exprime como se fosse. Arrogante, pouco tem a ver com a índole gentil do caricaturista. Foi um jornal que apoiou o golpe de 1964, e que surgiu diretamente das oligarquias paulistas – que defende até hoje. Hoje, em decadência caricatural (como conta aqui Paulo Nogueira), demite às dezenas, para que seus acionistas ainda se refestelem com algumas migalhas.

Mesmo assim, já foi considerado um dos melhores lugares para um jornalista trabalhar. Pelo menos até os anos 90, quando teve a honra de receber a força de trabalho de Baptistão, era assim. Saímos da faculdade e torcíamos por uma vaga no jornal. Sistematicamente, trabalhamos lá por alguns anos e fomos expelidos, um a um. Em prática que causaria horror na Europa, o matutino se especializou em mandar embora pessoas com muitos anos de casa, para cortar custos.

Baptistão despediu-se da empresa com um post apaixonado. Publicou a foto de dois crachás (um dos anos 90 e um recente), e fez um texto com elogios rasgados ao jornal, a quem dedica “gratidão eterna”. Considera que deve a ele tudo o que conquistou profissionalmente, e muito do que obteve pessoalmente: “O que falar dessa casa que me acolheu, me abrigou e me fez crescer pelos últimos 22 anos?”

Seu desabafo gerou inúmeras palavras de solidariedade em um grupo no Facebook intitulado (de modo sintomático) eXtadão, formado por profissionais que trabalharam no jornal. Muitos ali ainda não entenderam o que acontece no mercado. Enxergam problemas de gestão, ou personalizam a política da empresa neste ou naquele executivo mais cruel. Outros lembraram ao artista que é vasto o mundo “aqui fora”.

FIM DA PROTEÇÃO

As palavras de Baptistão ilustram uma projeção comum aos trabalhadores no século XX, incompatível com os tempos atuais: a da empresa como uma espécie de protetora. Uma empresa-mãe, provedora, generosa. O próprio Estadão era conhecido no meio jornalístico como uma “estatal”, onde não era tão fácil ser demitido. Podia se fazer ali uma carreira estável, ter uma vida pessoal estável – em simbiose com a aparente estabilidade do prédio encastelado na Marginal do Tietê.

Esse mundo acabou. Já há algum tempo. A ficha, porém, não caiu para todos. Baptistão, o profissional educado, concentrado, afável, ainda demonstrou estar atrelado a essa percepção antiga, a de quando a CLT era norma respeitada no mercado. Como se fizéssemos parte de uma espécie de "família". Não sem ingenuidade, ele não percebeu que é muito mais relevante como artista do que a empresa é (cada vez mais autista) como jornal. E que este o usou enquanto era conveniente. Não por bom-mocismo, por instintos protetores. Muito pelo contrário.

Aqui cabe relembrar um abecedário da questão trabalhista. Um empresário capitalista usa a nossa força de trabalho e ganha dinheiro com ela. Oferece em troca uma pequena fração da renda obtida, em forma de salário. Fica com o resto. Essa lógica foi diagnosticada com brilhantismo pelo alemão Karl Marx, na teoria da mais-valia. Esta é um dos motores do modo de produção onde vivemos. Outra característica desse sistema é a voracidade com que os detentores do capital se lançam em busca de mais lucro. Muito aquém da “sustentabilidade”.

Nesse jogo o ser humano e o meio ambiente são apenas alguns meros detalhes. Tudo pode soar evidente para quem está familiarizado com ciências sociais ou se manteve ressabiado em relação aos cantos de sereia empresariais. Mas ainda não soa óbvio para muita gente – de classe média, boa formação técnica, muitas vezes talentosa – que ainda espera ser uma exceção no mercado. “Comigo não vai acontecer”, pensamos, pensaram os participantes do grupo eXtadão. E, claro, um dia a guilhotina vem – impiedosa.

Os anos 2000 consolidaram várias implosões. Mesmo essa lógica exploradora do século XX foi substituída por uma precariedade maior. A CLT está sendo rasgada, substituída pelo formato das pessoas jurídicas, as PJs. Os direitos trabalhistas são desafiados em meio a discursos legalistas, de ocasião, dos grandes jornais – cínicos, portanto. E não sabemos mais como será nossa aposentadoria. Isso dói. Temos filhos, família, preocupação com a saúde. Foi-se aquele mundo onde esperávamos “participação nos lucros” (esse engodo) e jogávamos futebol com verba da empresa (ah, aquela mãezona).

INFERNO E PARAÍSO

Mas é pior fazer de conta que não está acontecendo nada. A desmobilização dos jornalistas como categoria está longe de ser a única no cenário brasileiro. Fomos atirados, como gladiadores, num circuito predatório, em meio a um discurso que associa o sucesso ao desempenho de cada um. Ou até à nossa índole. Tudo tecido cuidadosamente para que sentíssemos culpa pelos nossos “insucessos”, por não termos conseguido sobreviver em um mercado que reconheceria aqueles que “são bons”, que têm talento. Quando demitidos, pensamos: onde erramos?

Pura manipulação, claro. Muitas vezes o chefete de plantão tem prazer de limar justamente aquele profissional que tenha um espírito mais contestador, ou criativo. É assim no Estadão e em empresas dos mais diversos setores da economia. Somos peças em uma engrenagem, como bem definiu o editor que me demitiu do jornal, em 2001 (o jornal descobriu que eu era uma peça que não encaixava mais, após seis anos), e como bem retratou o cineasta Elio Petri, nos anos 70, com o filme “A Classe Operária vai ao Paraíso”.

(Nesse filme o protagonista, o metalúrgico Lulu, interpretado por Gian Maria Volonté, perde o dedo na fábrica e se esforça para não perder a razão.)

Os jornalistas não encontraram no divã as respostas a essas novas demandas. O mercado está abarrotado de expelidos, somos hoje um exército gigantesco de reserva. Quem foi menos teimoso rumou para outros campos: a arte, a academia. Nem as assessorias de imprensa (universo no qual vendemos a força de trabalho diretamente para as grandes corporações) oferecem as possibilidades de antigamente, com melhores salários, espaço para profissionais de cabelo branco. Repetem a lógica precarizada das grandes redações.

Outros seguem tomando o jornalismo como algo vital, como um modo de perceber o mundo. Como uma necessidade política, existencial. Tateamos. E, justamente os que tentam afirmar sua independência política mínima, sua disposição de não se submeter a cada capricho de editores-capacho, distanciam-se cada vez mais daquelas vagas às antigas, cada vez mais escassas.

A horizontalização do mundo das informações aponta para novo campo. Mais democrático. E mais incerto: ele não tem nada a ver com aquela ilusão de que trabalhávamos em empresas-mães. Precisamos nos reconfigurar, quebrar paradigmas.

Estamos de volta a uma carruagem, numa espécie de corrida para o oeste sem telégrafo (mas com internet). Somos nós – e não o Estadão ou os modelos de comunicação autoritários, militarizados – que vamos construir um novo mundo da comunicação. Agora de forma coletiva – nós que nos individualizamos tanto.

Artistas como Baptistão terão mais espaço nesse circuito, ao menos do ponto de vista da liberdade de criação, da independência. Do ponto de vista da estabilidade (que nunca era para todos, admitamos), essa carruagem atolou. Era o nosso ouro-de-tolo.

Ficamos sem crachá. Mas também sem as correntes.

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quarta-feira, 3 de abril de 2013

Mulheres são violentadas – mas os jornais estão preocupados com a “imagem do país”

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Título do Jornal do Brasil: “Ataque a turistas em van mancha imagem do país”. Título em O Globo: “Estupro de turista dentro de van gera impacto negativo na imagem da cidade”. Colunistas de peso falam da repercussão em jornais estrangeiros e exclamam: “Dano à imagem!”

É dessa forma que o jornalismo brasileiro dá uma bofetada na cara de milhões de brasileiras. A preocupação com a integridade física das mulheres – que deveria ser a prioridade natural – é deixada de lado em nome da “imagem” coletiva, abstrata.

Mas não vamos gastar caracteres com essa indiferença específica, com esse mau gosto escancarado, com esse cafajestismo explícito. A pergunta é: o jornalismo tem um papel decisivo – e negativo – nesse e em outros tipos de violência? Adianto minha resposta: sim, tem participação direta. Pela omissão e pela espetacularização. E como promotor-chave de uma inversão brutal de valores.

Em 2010, foram notificados 41.294 casos de estupro no Brasil, pela compilação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com o apoio do Ministério da Justiça. Com dados dos boletins de ocorrência e do Sistema Único de Saúde. Isso representa um avanço de 168% em relação a 2005, quando foram registrados 15.351 casos.  (O Correio Braziliense informa que, nos estados que mantêm informações recentes, a tendência também aponta para aumento desse crime em 2013).

Todos sabem que o número de estupros é bem maior que esse. Mesmo que tenha aumentado o número de notificações, é enorme ainda o número de mulheres que não tem coragem de enfrentar o olhar do escrivão, o IML, a Justiça – e nem pessoas próximas. Seja pelo perverso mecanismo social de inversão da culpa, seja pela impunidade. À humilhação imposta a cada mulher corresponde uma sociedade de joelhos. Cúmplice.

CIDADANIA ÀS AVESSAS

Ao demonstrar a preocupação com a imagem do Brasil no exterior, a imprensa brasileira coloca mais uma carta nesse castelo de cidadania incompleta, às avessas. Se eu fosse uma mulher eu diria ao sujeito que escreveu aqueles títulos que ele é um cínico. Um patife, um indecente. Mas é muito mais que isso. Ele é uma expressão coerente de uma sociedade que se acostumou a minimizar as violências em escala, e a espetacularizar os casos isolados.

Não se tratam somente dos estupros. Também o número de mortes no trânsito, desde o ano passado acima de 40 mil, é solenemente ignorado pelo jornalismo brasileiro, em seu dia-a-dia. É como se, em uma partida de futebol, se descrevesse longamente uma única falta, um único lance fortuito do jogo, em vez de se falar do resultado geral, e de como a partida está relacionada a um contexto geral – a um campeonato viciado, a uma derrota estrutural da sociedade brasileira.

Ou seja, noticiam-se os atropelamentos (e os assaltos, os casos de estupro, as chacinas, a exploração sexual, o trabalho escravo ou infantil) de forma isolada, sem a busca do que seja orgânico, sistêmico. Ou epidêmico. Em vez de cobertura séria de segurança pública, o que temos é um jornalismo de entretenimento, destinado a alimentar indignações vazias, ritualísticas – ou mesmo as taras de sujeitos como os estupradores da van.

Essa culpa, portanto, é coletiva. De uma sociedade que não soube oferecer a seus cidadãos direitos elementares. À vida, à integridade física. É uma culpa que alterna covardia com ignorância, cumplicidade com omissão. Ocorre que, entre os responsáveis mais expressivos, destaca-se um grupo muito particular, que não pode apresentar a ignorância como desculpa: o conjunto de editores e donos dos meios de comunicação.

E por que eles são responsáveis?

Porque a eles não convém escancarar essa janela. Porque não se atrevem a tornar esses temas (e não as pontas dos icebergs) prioridades absolutas da cobertura. Porque deixam o jogo da violência rodar sem tomá-lo como pauta obsessiva. Discutem metas de inflação, dívida ou PIB, mas não dão importância a metas que envolvam paz, alfabetização, diminuição da mortalidade – ou do número de corpos e almas violentados.

No caso de outros temas esses profissionais sabem que é preciso contextualizar, ir atrás de séries estatísticas, das origens econômicas ou sociais (históricas, geográficas, sociológicas) dos problemas. Quando se fala do desempenho das grandes empresas há um esforço maior em busca do que seria sistêmico. Não da forma ideal, em meio ao deserto de ideias que assola o jornalismo brasileiro, mas ao menos há algum esboço, alguma tentativa de entender o que acontece ao sul – grilado - do Equador.

Colunistas de segurança pública, quantos vocês conhecem? E colunistas de questão agrária, educação, questão urbana? Quantos se dispõem a discutir temas que, muitos deles, estão entre as origens da violência? Editoriais sobre mortes no trânsito, quantos lemos no último mês? Chamadas de primeira página sobre esses flagelos, quantas vimos? Cadernos que mergulhem nesses assuntos, existem?

O CIRCUITO DA INDIFERENÇA

A esse sono cognitivo – um sono diário, denso, repetitivo, contagiante, um sono coletivo - soma-se outra aberração: a incomensurável capacidade jornalística de se perder a capacidade de indignação. Não aquela já mencionada, a teatral, fogo-de-palha, para aplacar a consciência coletiva, mas uma indignação de fundo, uma preocupação genuína com a nossa ausência de civilização.

É desta forma que Isabela Nardoni e a turista americana estuprada e os jovens de Santa Maria se inserem numa ciranda efêmera, em um espetáculo de indignações passageiras, inócuas. São poucos os casos em que essas vítimas se tornam o que devem ser: mártires. A cada Maria da Penha e a cada Chico Mendes há milhões de brasileiros que não tiveram a chance de virar heróis. Apenas compõem estatísticas. (Distorcidas e insuficientes.)

Toda a sociedade é responsável por esse circuito da indiferença. Mas o jornalismo é sua ponta-de-lança. Não à toa. É o mesmo jornalismo que comemorou o golpe de 1964, apesar das mulheres violentadas nas celas, a mesma imprensa que comemorou o golpe mal-sucedido na Venezuela, que comemorou os golpes em Honduras e no Paraguai. A mesma mídia que chama ditadores amigos de presidentes, que chama presidentes inimigos de ditadores.

O compromisso dos meios de comunicação com a democracia, ou com os seus valores mais nobres, é de ocasião. Pode-se até, com alguma concessão (anos depois, esquecidas cumplicidades incômodas), lamentar os mortos e torturados na ditadura, mas se faz vista grossa para a tortura praticada até hoje nos porões. Ou para a morte sistemática de indígenas, posseiros e lideranças camponesas por todo o país. Para o esgotamento do corpo dos cortadores de cana – que produzem o álcool, que move as vans.

A DOENTE E O PLACEBO

A sociedade brasileira é essencialmente doente; o jornalismo, seu placebo.

Esse placebo vem embalado como se fosse um remédio eficaz. No mínimo esse jornalismo-comprimido se proclama um grande detector de sintomas, um fotógrafo eficiente de nossas chagas. Os donos dos meios de comunicação, e seus editores e colunistas amestrados (com as honrosas e cirúrgicas exceções) apresentam-se como probos guardiões dessa democracia em plena vitalidade. Enganam-se. E enganam.

Estão preocupados com o crescimento da economia, com tudo o que tenha relação direta com os lucros dos acionistas. Tudo em parceria com os amigos patrocinadores. Estes não querem associar suas marcas a coberturas sérias de segurança pública. Não agrega valor à imagem da empresa a promoção de uma cultura da vida nas periferias. Ou a multiplicação de alternativas de educação e cultura. A saúde dos ribeirinhos. O suicídio dos indígenas, a morte das bisnetas dos escravos. Nada disso vende jornal – a não ser que editado de forma sensacionalista, irresponsável.

Genocídio no trânsito? Guerra civil na periferia? Estupros numa escala medieval? Melhor se preocupar apenas quando o mundo lá fora, acima do Equador, esboçar uma reação. Quando uma missionária americana for baleada no Pará (refiro-me à heroína Dorothy Stang), ou quando uma turista – embebida de brios - tiver a coragem de contar o que aconteceu numa van em Copacabana. Quando as veias estiverem expostas.

Espaço para otimismo? Não exatamente: a curva dos estupros tende a aumentar. Logo serão 50 mil notificações (apenas elas) por ano. O gráfico das mortes no trânsito também. Logo serão 50 mil mortos por ano. Fora os mutilados. E seus parentes.

Dane-se: quase nunca terá sido no Leblon ou nos Jardins. Às elites brasileiras basta ligar o alarme quando houver perigo de um “impacto negativo na imagem da cidade”. Ou risco de “manchar a imagem do país”.

As vans do horror seguirão andando.

De mãos dadas com a barbárie, o jornalismo brasileiro seguirá atropelando.

LEIA MAIS: 
Pinheirinho, Brasil: onde foi que enterraram nossos escrúpulos? 
Um trãnsito assassino, uma imprensa sem escrúpulos, uma sociedade voyeur 

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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Golpe de 1964: a atualidade de “Memórias do Esquecimento”, de Flávio Tavares

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Vejamos esta análise sobre a política brasileira:

- Nos dois lados - a favor ou contra o governo - surgiu a figura do "político profissional", para o qual o importante passou a ser o estardalhaço para "ganhar eleição", nunca um projeto de ação para a sociedade. Apoiadas na mercadologia das agências de publicidade, as campanhas fizeram-se entusiastas mesmo perdendo o significado político. Disputava-se uma eleição como uma partida de futebol. O pluralismo era postiço e falso, mas poucos o percebiam.

Poderia ter sido escrito em 2013? Poderia. Mas data de 1999 e se refere a um momento muito específico da política brasileira: os dias que se sucederam ao golpe de 1964.

O livro “Memórias do Esquecimento”, de Flávio Tavares (Editora Globo), volta a ganhar relevância com o lançamento do filme “O Dia que Durou 21 Dias”, de seu filho Camilo Tavares. Camilo não era nascido quando o pai foi preso, em 1969. Ambos assinam o roteiro, baseado inicialmente no livro, mas modificado após a descoberta de documentos, em Washington, que detalham o envolvimento dos Estados Unidos no golpe que derrubou João Goulart, há exatamente 49 anos.


Flávio foi um dos 15 presos políticos trocados pelo embaixador americano Charlles Ellbrick, sequestrado no Rio. O próprio jornalista descreve essa saga, logo no início do livro. Entre os demais libertados estavam o comunista histórico Onofre Pinto e líderes estudantis como José Dirceu e Vladimir Palmeira. Todos foram para o México, onde um burocrata brasileiro – designado pelos militares - teve de engolir a seguinte frase do responsável pelo setor da imigração: “En México mandamos nosotros”. Seguida de outra frase clara: “Retirem as algemas e libertem estes senhores, e que eles desçam de imediato”.

O ELOGIO DE SABATO

Camilo nasceu exatamente na Cidade do México, em 1971, durante o exílio do pai. Não o conheço pessoalmente, nem Flávio Tavares, mas casualmente conheci a mulher do jornalista, durante reportagem em Brasília, em 2006. É a senadora argentina Norma Morandini, pré-candidata à vice-presidência da República. Na época era deputada e participava de um debate sobre direitos humanos. Falamos do livro, que eu acabara de ler. E dos elogios feitos pelo escritor Ernesto Sabato, seu conterrâneo, à obra do marido:

- Flávio é um novo Dostoievkski, e Memórias do Esquecimento revela imagens vividas num inferno apenas entrevisto por Dante, Rimbaud e o próprio Dostoievski.

Especialista nessa temática subterrânea, Sabato (1911-2011) sabia do que estava falando. Mesmo que admitamos algum exagero, por causa de sua amizade com Norma (ela me contou isso, quando mencionei o elogio ao livro), ele é preciso ao falar de inferno: as descrições que Flávio Tavares faz dos porões da ditadura só podem ser, de fato, comparadas a esse cenário-símbolo. As sessões de tortura são descritas com intensidade atroz. Mas também a impotência, o desespero e a agonia das vítimas.

E o livro de Tavares talvez seja, de fato, o grande testemunho sobre o período da ditadura de 1964. Não pode competir com Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, que relatou a prisão durante o Estado Novo. Mas é literariamente superior a relatos similares, feitos por presos políticos. E olhem que tem livro bom nesse gênero, como “Náufrago da Utopia”, de Celso Lungaretti, e “Onde foi que Vocês Enterraram nossos Mortos?”, de Aluizio Palmar.

UM GÊNERO LITERÁRIO

Os três livros fazem parte de uma segunda geração de testemunhos sobre a última ditadura. A primeira inclui clássicos como “O Que é isso, Companheiro”, de Fernando Gabeira (1979), e “Batismo de Sangue”, de Frei Betto (1983), lançados ainda durante o governo de João Baptista Figueiredo. Gabeira, Betto e Alfredo Sirkis estiveram e estão ligados diretamente ao cenário político-partidário.

Os relatos do fim dos anos 90 (caso de Tavares, ou de Carlos Eugênio Paz) e anos 2000 (Lungaretti, Palmar), porém, soam mais maduros, com o distanciamento funcionando como depurador literário. As obras ganham uma densidade psicológica adicional. E possibilitam análises políticas mais refinadas, como essa de Flávio Tavares (que, em 1964 e 1969, era colunista político de jornais) reproduzida no início deste artigo.

Não se prendam somente aos filmes, portanto. Antes de haver uma sequência de películas sobre a ditadura, como tem assinalado a imprensa, existe essa fila imprescindível de livros, do gênero literatura de testemunho, que eu incluiria ainda num subgênero: literatura de testemunho sobre a ditadura de 1964. O conjunto dessas obras tem valor tanto literário como histórico – e precisa ser mais conhecido pelos brasileiros.

Em tempo: a L&PM lançou em 2012 uma versão pocket de “Memórias do Esquecimento”.

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