quarta-feira, 3 de setembro de 2014

PT, PSOL E PCdoB concentram 46% das candidaturas indígenas

por ALCEU LUÍS CASTILHO 
(@alceucastilho)

Entre as 84 candidaturas indígenas registradas no Tribunal Superior Eleitoral, conforme a declaração feita pelos próprios candidatos, 16 disputam pelo PT. Em seguida vêm o PSOL, com 12 candidatos, e o PC do B, com 11. Juntas, essas 39 candidaturas representam 46% do total.

Quase dois terços das candidaturas é para vagas nas Assembleias Legislativas (53) ou Câmara Distrital (2). Outros 25 indígenas disputam vagas na Câmara. Cinco deles visam o Senado, dois destes na suplência. A Bahia tem um candidato a vice-governador, Ronaldo Santos (PSOL).

A lista de candidaturas nas eleições de 2014 foi compilada por Ricardo Verdum e pode ser vista aqui: https://www.academia.edu/8170557/Candidatos_Indigenas_nas_Eleicoes_de_2014 (A lista tem um nome repetido. Sete candidaturas ainda são consideradas inaptas.)

A região Norte tem o maior número de candidatos: 30 entre os 84. Em seguida vem o Nordeste, com 20 candidaturas indígenas. Sudeste e Centro-Oeste empatam, com 15 candidatos. A região Sul tem apenas quatro.

Vejam o ranking por partido:
PT – 16
PSOL – 12
PCdoB – 11
PHS – 7
PSTU – 5
PPL – 4
PV , PSDB– 3
DEM, PP, PSC, PDT, PTdoB, PPS, PROS, PRP - 2
PR, PEN, PMDB, PSL, PTB, PRB, PRTB – 1

É possível notar a maior incidência em partidos de esquerda, como PSTU, PPL e o próprio PSOL, em relação à média nacional. Uma surpresa é o PHS – que, só no Piauí, está lançando três candidatos que se declararam indígenas.

Quatro Estados não apresentaram candidaturas indígenas: Sergipe, Paraíba, Maranhão e Santa Catarina. O Maranhão tem vários conflitos de terra envolvendo povos indígenas.

O Amazonas e a Bahia, sozinhos, apresentaram nove candidatos cada um. Em seguida vêm São Paulo, com oito, Mato Grosso do Sul, com sete, Roraima, com seis candidatos, e o Pará, com cinco.

O Mato Grosso do Sul concentra grande população indígena. Das sete candidaturas, seis são de partidos à esquerda. A mais conhecida delas é do Cacique Ládio Veron, para a Câmara, pelo PSOL. Roraima, outro estado com maior quantidade proporcional de população indígena, tem uma dobradinha do PCdoB para deputado estadual e federal.

Vejam o ranking por UF:
AM, BA- 9
SP – 8
MS – 7
PA, RR – 6
PI - 4
AC, AP, CE, ES, GO, MT, PE, PI, RJ – 3
DF, PR, RO, RS – 2
AL, TO, RN – 1

Oito entre os 84 candidatos apresentam-se, no próprio nome de campanha, como professores.


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domingo, 31 de agosto de 2014

Os dez mandamentos de um debate eleitoral sórdido

por ALCEU LUÍS CASTILHO
(@alceucastilho)

1) Atacarás a pessoa, e não as propostas do partido.


Os candidatos de quem o eleitor não gosta são vistos como inimigos, e não como expressões de outros projetos de poder. O objetivo é atacar o caráter, arrebentar com a dignidade. Desconstruir – a pessoa. Desqualificar – o ser humano. A biografia deste pouco importa. Importa editá-la. Demonizar o político a partir de características existentes ou não, exageradas ou não. O respeito passa longe.

2) Distorcerás informações.

Este é um dos exercícios prediletos desse eleitor apaixonado. Seja por redução calculada das ideias e promessas do outro, seja pelas distorções propriamente ditas. Essa distorção pode ser infame, pode ser uma mentira deslavada. Mas o objetivo eleitoreiro – desprovido de cidadania – permite o milagre da multiplicação da falta de escrúpulos. Às favas as informações, e às favas o bom senso.

3) Serás precipitado, afoito, intempestivo.


Este item tem relação direta com o item anterior. Tudo ganha um sentido de aparente urgência. É preciso desqualificar o outro, e logo, numa espécie de corrida de cavalos. Com isso aumenta a chance de se distorcer a informação, e de se promover uma campanha injusta, agressiva, desumana. O relógio corre e inspira precipitação; esta precipitação potencializa todos os demais itens.

4) Enxergarás contradições apenas do adversário.

Os erros do candidato que se defende são totalmente minimizados, jogados para debaixo do tapete. Os do adversário, hipertrofiados. Esse exercício de cinismo ganha musculatura na medida em que os demais apaixonados concordam com os linchamentos e com o completo absurdo que seria o adversário ser eleito. Monta-se, então, uma caça às contradições. Mas uma caça sem regras, sem limites.

5) Importarás o que houve de pior em eleições anteriores.

Em vez de se aprender com os erros, eles são multiplicados. A sordidez espetacular de 1989 – um marco na história dos ataques eleitorais, com a invenção de uma tentativa de aborto – ganha filhotes eloquentes, eleição após eleição, em terrenos onde cada eleitor deveria guardar o mínimo de distância e respeito. Não são desenvolvidos novos formatos, com reprodução automática do que se fez de pior. Essa violência toda é também um filhote da ditadura.

6) Adjetivarás. (E simplificarás, insultarás.)

Com redução ao máximo das características positivas de seus adversários, e amplificação ao máximo de seus defeitos. Aqui, com um viés linguístico – redutor, embotador. O importante, nesse caso, é transformar toda uma visão de mundo, ou um projeto de país, evidentemente criticáveis, numa palavra-chave, de modo que até o próprio postante possa entender. A linguagem como carimbo.

7) Utilizarás argumentos de cor, classe, gênero. 

 
Misoginia, racismo e preconceito de classe (especialmente quando se trata de origem pobre) estão presentes em milhares de memes e em milhões, dezenas de milhões de comentários na internet. Tudo em larga escala. A condição de mulher motiva piadas e insultos específicos. O racismo costuma ser disfarçado em formato de “piadas”, ou comparações grotescas. O obscurantismo como farra, diversão.

8) Serás menos cuidadoso que teu próprio candidato.

Em outras épocas os ataques menos escrupulosos vinham de alguns candidatos, fossem os majoritários ou alguns nanicos. Estes eram escolhidos a dedo para a tarefa de enxovalhar os adversários, dizer coisas que poderiam pegar mal para o candidato majoritário. Funcionavam como uma espécie de jagunços eleitorais, de franco-atiradores. Muitas vezes de forma grotesca. O papel dos nanicos cabe hoje aos internautas.

9) Promoverás o apocalipse.

Somente no caso de determinado candidato vencer teremos um país sério, uma democracia consolidada, uma economia estável. Com os demais, virá o caos. Meu candidato? Locus amoenus, tudo lindo – o espaço da calma, da amenidade. O adversário? Locus horrendus – o espaço do horror. No limite, isso resulta em golpismo, que pode ser observado em eleitores de direita e esquerda, governistas ou não.

10) Ignorarás uma discussão séria sobre um projeto de país.


O décimo item é o pai de todos os demais. É dessa ausência de discussões mais sisudas, com um circuito mais consistente de informações e argumentos, que decorre a disposição para a infantilização e redução do debate. Observe-se que muitos temas importantes simplesmente somem do mapa. O horizonte se encolhe. A história do país se apequena. Fulano ou beltrano se tornam mais importantes que 500 anos (ou milhares) de história.

Isoladamente, alguns itens listados cima, como apontar contradições ou utilizar adjetivos, podem ser legítimos. Com comedimento. Juntos, apenas ajudam a promover o obscurantismo eleitoral. Debates de fundo funcionam melhor sem precipitação. E com a percepção de nuances, matizes. De um país e de um mundo político um pouco mais caleidoscópico que o preto no branco desse comportamento eleitoral binário.

Essa gritaria toda – essa voracidade toda, essa intolerância toda - não colabora com a democracia. E nem com as candidaturas que esse eleitor, mais ou menos mal-intencionado (às vezes apenas um distraído), julga defender. Então, por que perpetuar essa lógica? A tarefa de construir um país mais justo e menos desigual exige bem mais substância, paciência. E ética. Outro debate eleitoral é possível.


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segunda-feira, 21 de julho de 2014

Kátia Abreu declara R$ 4 milhões; filho Irajá, R$ 5,7 milhões

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

A senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), candidata à reeleição, tornou-se milionária. Ela acaba de declarar à Justiça Eleitoral possuir R$ 4,04 milhões. Em 2006, ela possuía R$ 437 mil. Uma variação de 927%. Ela é presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) - afastada desde junho durante a campanha - e uma das principais líderes ruralistas do país.

Um dos bens mais significativos, uma propriedade de 1.268,84 hectares em Campos Lindos, não aparece mais em sua declaração. Em 2006 ela a declarou por R$ 10 mil. Quase a metade dos R$ 4 milhões declarados em 2014 está em aplicação do Banco do Brasil. Kátia declarou uma chácara de 10 hectares por R$ 615 mil.

Bem mais provida de bens rurais é a declaração de bens do filho, o deputado federal Irajá Abreu (PSD-TO), candidato à reeleição. Irajá Silvestre Filho já é mais rico que a mãe, viúva, de quem empresta o sobrenome. Ele declarou ao Tribunal Superior Eleitoral possuir R$ 5,67 milhões.

A maior parte vem de propriedades rurais. Um dos itens descreve os lotes das Fazendas Aliança I, II e III, por R$ 2,9 milhões. Em seguida Irajá declara mais R$ 640 mil em seu terço da Fazenda Aliança, com benfeitorias. Ele também possui outro imóvel rural em Aliança do Tocantins, por R$ 367,5 mil.

A senadora especificou R$ 15 milhões como limite de gastos para a campanha. Irajá, R$ 3,5 milhões.
Tanto Kátia Abreu como Irajá Abreu foram eleitos pelo DEM, em 2006 e 2010. Ela passou pelo PSD e migrou para o PMDB ao se afirmar como membro da base governista. Em 2010 o deputado declarou possuir R$ 1,39 milhão. A variação foi de 251%.

Irajá tem um irmão, Iratã Abreu, vereador em Palmas. Seus bens são mais modestos, em relação aos padrões atuais da senadora e do deputado. Em 2012, ele declarou possuir R$ 852 mil, a maior parte referente à sua parte na Fazenda Aliança.

Juntos, os três possuem R$ 10,6 milhões.

Em 1998 e 2002, eleita deputada federal, Kátia se declarava psicóloga. Em 2006, pecuarista. Em 2010, senadora. Na eleição de 1998 ela declarou 1,170 cabeças de gado bovino. Em 2006, 2010 e 2014, nem ela nem o deputado Irajá Abreu declararam reses. Iratã, em 2012, que se declarou produtor agropecuário, também não.


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terça-feira, 3 de junho de 2014

Relato dos Tenharim presos: “Somos inocentes. Estamos sem chuva, sem céu, sem nossos rituais. Isso é Justiça?”

por ALCEU LUÍS CASTILHO
(@alceucastilho)

Cinco indígenas da etnia Tenharim estão presos desde o dia 30 de janeiro, em Porto Velho, acusados – num processo kafkiano – de assassinar três pessoas em dezembro de 2013. O blog reproduz aqui depoimentos dos acusados obtidos pela antropóloga Rebeca Campos Ferreira, do Ministério Público Federal. Eles declaram inocência. E relatam não conseguir se adaptar às condições do presídio: sem a comida tradicional deles, sem rede, sem cocar, sem rituais. “Não tem quase sol, nem chuva, nem o céu”. Um sexto indígena foi denunciado à Justiça em abril, o cacique Aurelio Tenharim. “A justiça ouviu o povo branco e os poderosos, por isso que prendeu a gente e deixa a gente aqui?”

Para entender mais o caso – que envolve um apartheid contra os indígenas e a destruição da sede da Funai, em dezembro, em Humaitá - leia este relato que fiz na Agência Pública, após cinco dias em Humaitá (AM) e região: “A batalha de Humaitá”. E este artigo no blog: “O sonho do pajé, a conta de luz ou a galinha?

Segue o relato feito pela antropóloga, que inclui queixas sobre falta de apoio jurídico da Funai e das organizações de apoio aos povos indígenas:

Em 22 de maio de 2014 eu, Rebeca Campos Ferreira, Perita em Antropologia do Ministério Publico Federal, estive na Penitenciaria de Médio Porte Pandinha, em Porto Velho – RO, com os indígenas Gilson Tenharim, professor da aldeia Campinho-hũ, de 19 anos; Gilvan Tenharim, irmão do anterior e, como ele, também professor da aldeia Campinho-hũ, de 24 anos; Valdinar Tenharim, agente indígena de saneamento da aldeia Campinho-hũ, de 30 anos; Domiceno Tenharim, professor e cacique da aldeia Taboca, de 33 anos; e Simeão Tenharim, agente indígena de saúde da aldeia Marmelos, de 36 anos. Na ocasião ouvi a narrativa que segue transcrita, “um apelo” como chamaram os indígenas, para ser repassada aos parentes, às autoridades e à sociedade brasileira. A narrativa a seguir foi realizada por todos eles, simultaneamente.

(Os intertítulos e explicações não fazem parte do relato original de Rebeca.)


“Queremos registrar o que a gente passa aqui.

Tem alimentação sim, mas não é da nossa cultura e a gente não está acostumado com isso, e está fazendo mal pra gente, dá dor na barriga, dá diarreia. A gente não tem gosto de comer, estamos acostumados com outras coisas de comer, o que a gente comia sempre, de caça, de pesca, é diferente. Estamos há três dias sem comer. Se comer vamos passar mal. É melhor não comer. A gente queria pelo menos ter nossa alimentação da cultura. A gente não consegue dormir assim.

Não podemos ter rede. Nosso corpo não é acostumado com isso aqui. E não tem quase sol, nem chuva, nem o céu. Isso atinge toda nossa cultura. A cultura que a gente está acostumado e nossos parentes que estão lá. Nossos filhos, nossas mulheres, nossos pais, e os mais velhos. E nós perdemos nosso pai, que era cacique. [Ivan Tenharim, morto em dezembro após cair da moto.] E nem pudemos fazer os rituais dele. Nem as outras cerimônias que tem que fazer nessa época. O povo da aldeia está sem cacique agora. Isso preocupa demais a gente.

Isso é fora da nossa cultura. E a nossa cultura aqui a gente não tem liberdade de fazer. A gente não pode ter cocar nem fazer nossos rituais. Nem dançar, pintar, nossa cultura, nossas coisas. Isso vem pro nosso corpo também. Nosso corpo e nosso espírito sofre, e do nosso povo lá, a gente se preocupa muito.

E depois de tudo que já fizeram com nossos parentes desde 500 anos quando os brancos chegaram. E tudo que eles passaram. E com a estrada também. [A Rodovia Transamazônica.] Mas naquele tempo não tinha lei. E hoje tem lei pra nós índios. Somos tratados de forma esquisita. É tudo contra índio. Mas a gente não é empecilho para o Governo, a gente é aliado para um mundo melhor pra todo mundo. A gente não é contra branco. Somos aliados, queremos um mundo melhor para todo mundo.

“Nós não somos seres humanos aqui”

A gente está sentindo muito aqui. Estamos longe da terra, dos parentes, a gente perdeu nosso cacique, sofremos tudo aquilo, do povo branco, da polícia, estamos aqui presos, sem saber das coisas, com medo. Nós não somos seres humanos aqui. Mas nós somos brasileiros também. A gente enfraquece, a gente está magoado. Toda nossa família enfraquece. Nossa terra enfraquece.

Nossa esperança é Deus agora, são vocês do Ministério Público Federal, dos nossos parentes lá fora, de quem puder ajudar a gente.

A gente não fez isso que falaram na televisão. A gente não é aquilo que eles falaram. Por que fazem isso com nós indígenas? A gente está em risco, aqui, e nossas famílias lá na nossa terra. A gente não tem proteção. O governo não cumpre nossos direitos, nem lá fora nem aqui dentro da cadeia. Estamos em risco. A gente desgostou da vida.

E na aldeia, não podemos fazer os rituais da morte do nosso cacique, a gente não pode fazer os rituais do novo cacique, nosso povo está sem rumo, sem direção. Nem nossa festa vai ter esse ano, ela acontece desde sempre do nosso povo. São os espíritos nossos, somos nós todos que sofremos. Nem a cerimônia do nosso falecido pai e cacique aconteceu, isso é ruim para o espírito. Pode vir coisa ruim, coisa pior do que isso. A gente não tem liberdade. A gente está sem vida. E a gente é inocente. Não somos o que eles disseram. Queremos registrar essa mensagem para a sociedade.

“Perdemos o pai, o cacique e a vida”


Estamos sem ritual, sem nossa cultura, sem cocar, sem nossa família e a terra onde a gente nasceu, sem liberdade. A gente vive de cabeça baixa aqui. Estamos sendo injustiçados. É assim que é a justiça dos brancos?

Perdemos o pai, o cacique e a vida. Estamos presos. Estamos sendo injustiçados, a gente não fez isso. Perdemos tudo aqui. É justiça isso? Tudo que falaram da gente é mentira, a televisão, os brancos, mentiram e fizeram isso com a gente. Tudo que a gente sofreu, nós e nosso povo, desde que tudo isso começou, e quando a gente veio preso. Não deixaram a gente voltar para casa, a gente nao sabia o que estava acontecendo. Mas sabemos que eles fizeram coisa errada com a gente, enganaram, levaram para fora da terra e prenderam, enganaram a gente e os irmãos. [Eles se referem a um artifício utilizado no momento da prisão, quando foram atraídos para fora das aldeias.]

Não sabemos direito nada ainda, eles não passam informação, não falam nada. Nem FUNAI, nem os que defendem a gente. Quem defende a gente? Como que é que funciona isso? A gente não entende isso, porque não fizemos, e não entendemos o que vai acontecer com a gente daqui pra frente. O que vai acontecer com a gente? A gente sofreu muito naquela época e está sofrendo muito agora. O povo nosso também. Hoje a aldeia está abandonada.

Nosso apelo é que as pessoas tenham mais amor com o povo indígena. Que trate a gente de forma civilizada. A gente pede para a FUNAI vir aqui, falar com a gente, defender a gente, a gente quer saber quem abraçou nosso caso, quem está pela gente.

“A Funai não está fazendo nada”

A FUNAI não está fazendo nada, só o Domingues da FUNAI de Humaitá que vem ver a gente, e os que sabem dessas leis lá de Brasília da FUNAI não. A gente quer eles aqui pra falar com a gente. A gente não sabe o que está acontecendo, estamos sentindo que ninguém está pela gente das autoridades, só vocês [MPF] e nossos irmãos, nosso povo. A gente precisa ter alguém que defenda a gente. E queremos a FUNAI para informar e proteger.

A gente pede ao Dr. Julio [Araujo/ MPF-AM] e ao Dr. Ricardo [Tavares], pro CIMI que pode ajudar a gente também com advogado. Alguém tem que defender a gente e dizer pra gente o que está acontecendo. A gente agradece muito o Ministério Público Federal, de Manaus e daqui de Porto Velho, Dra. Rebeca [Campos Ferreira/ MPF-RO], o Dr. Filipe [Albernaz/ MPF-RO], por vocês terem vindo aqui ontem e hoje, por vocês lutarem pela gente, por estar aqui ouvindo a gente. É como se fosse nossos irmãos aqui, pra gente isso é muito bom.

Foi bom ter visto nossos parentes ontem com vocês, agradecemos por ter trazidos eles, por eles poderem entrar com vocês. A gente esta sentindo muita falta da nossa família e da nossa terra. Quando eles vêm é bom, quando vocês vêm é bom. É bom saber que alguém se preocupa com a gente.

“Estamos com muito medo”

Não queremos ir pra Manaus. Não. Lá a gente vai ficar pior. Lá nossa família não tem como ir ver a gente. Estamos preocupados, com medo. Com muito medo.

E queremos um advogado. Queremos que alguém lute pela gente lá fora. Pelos nossos direitos. É um vazio pra gente aqui. Não sabemos o que fazer e o que acontece. A gente manda um recado para os parentes também ajudarem a gente. Eles já ajudam muito nesse tempo todo. Pra eles virem ver a gente quando é dia de vir. Isso é bom. A gente pede para os parentes ficarem perto da gente, e que eles estejam perto também dos advogados, da FUNAI, do Ministério Público, e de quem vai ajudar a gente.

Pedimos pra ser informados do que acontece. Pedimos pra não ir pra Manaus. E pra ajudarem a gente e protegerem e lutarem pela gente. E para o advogado que acompanhou tudo, o Dr. Ricardo [Tavares], pedimos pra ele vir aqui falar com a gente. Ele viu como foi que fizeram com a gente. Não foi certo o que a polícia fez. Prenderam a gente irregular, levaram para fora da terra indígena, não explicaram nada, não trataram a gente como ser humano. Mentiram, enganaram, diziam coisas pra gente. Pressionaram.

E para o Dr. Julio [Araujo/ MPF-AM] nos ajudar e ajudar nosso povo. E para o Ministério Público daqui de Rondônia, Dr. Filipe, Dra. Rebeca, e de Manaus, continuem com a gente, e o que a gente pede. E o CIMI se puder ajudar.

Não deixem a gente desprotegidos.

“Queremos defesa, quem lute pela gente”

A gente não quer ir pra Manaus. Nossa vontade mesmo, a gente acredita em Deus, é voltar pra nossa terra e fazer as cerimônias que tem que fazer pelo nosso povo.

Pedimos para as lideranças nossas para auxiliar também, em tudo, para as lideranças nossas estarem com a FUNAI, com advogado, com juiz, com o Ministério Publico. A gente pede pra saber como está nossa situação, quem está pela gente, e que a FUNAI esteja pela gente também, e que o Ministério Público não deixe a gente.

O procurador da FUNAI veio uma vez, mas parece que a FUNAI não está dando atenção nem prioridade. Queremos defesa, queremos quem lute pela gente. Estamos sem nada, sem família, sem terra, sem cultura, sem liberdade e sem saber como é nossa situação.

Ainda bem que nossos parentes e vocês [MPF] estão com a gente. A gente agradece os parentes nossos, nossas lideranças, o Domingues da FUNAI, Dr. Rebeca (MPF-RO), Dr. Filipe (MPF-RO), Dr. Julio (MPF-AM), Dr. Ricardo. Por favor, leva essas nossas palavras pra eles.

“Não somos aquilo que passou na televisão”

A gente está sentindo muito aqui, nosso corpo, nossa cultura, e nosso povo, a gente está preocupado com o que vai ser dos rituais que não vão ser feitos. Mas a gente acredita em Deus, que vai ser feito justiça pra gente. Apelo nosso é pra parar com preconceito e discriminação, para ter mais amor com os indígenas, e não acontecer mais o que aconteceu com a gente com ninguém. Não fizemos aquilo e não somos aquilo que passou na televisão.

Queremos ter nossos direitos, queremos saber como está nosso caso, queremos ser defendidos e protegidos. Não queremos ir pra Manaus. Queremos voltar pra nossa terra com nossa família, fazer os rituais pro nosso povo que não pode mais ficar sem. Somos inocentes.

Estamos sofrendo muito aqui com isso, e nosso povo lá fora. Acreditamos em Deus e nos nossos parentes, nossas lideranças, nas autoridades que vão ajudar a acabar com essa injustiça que nosso povo sofreu.

Viemos pra cá de madrugada, ninguém disse pra onde a gente ia. A gente tem medo.

Queremos sair daqui. Não queremos ir pra Manaus. Queremos provar que não somos aquilo e não fizemos aquilo. Queremos saber o que acontece, a gente não entende.

“É o massacre dos espíritos nossos”


Tiraram a gente da terra, prenderam a gente, não deixaram a gente se despedir. A gente não sabia o que acontecia. Não podemos ficar aqui, nem sem saber de nada, e nosso povo não pode ficar sem ritual, sem cerimônia. É o massacre dos espíritos nossos. E tem que fazer cerimônia funeral do cacique. Sem as festas desestrutura tudo, o povo inteiro, se a gente não fizer, vai ser agora em julho, ficamos todos desprotegidos, o povo todo fica desprotegido espiritualmente, e vêm coisas ruins, não pode interromper porque isso é desde o começo do nosso povo, e nunca ficou sem fazer. Fica tudo desnorteado, nossa cultura e nosso povo. Sem direção, a gente aqui e nosso povo inteiro lá. A comunidade inteira perde.

E a angústia nossa aumentou com essa história da gente ir pra Manaus. E fica ainda mais longe, a gente sabe que lá não tem como ver os parentes. Não podemos ficar sem ver nossos parentes. A gente não come mais, é muita preocupação, não tem como acostumar nosso corpo e nosso espírito. A gente aqui não pode cantar, nao pode pintar, não pode dançar, não é vida pra gente isso aqui. Não conseguimos dormir aqui. Não pode ter rede, não acostumamos deitar aqui.

A gente nunca passou por isso, nem de ficar sem ritual, nem nosso povo. Nem de ficar fora da aldeia. Nem de ficar preso. É preconceito com indígena. A justiça ouviu o povo branco e os poderosos, por isso que prendeu a gente e deixa a gente aqui? A justiça tem que seguir a lei. E a gente é ser humano.

Nosso apelo é esse. Para a sociedade ver que não somos aquilo que passou, somos inocentes, estamos sofrendo muito aqui. A gente só quer voltar para nossa terra e nossa família. Queremos que as autoridades escutem a gente, entendam isso. E a gente agradece todos nossos parentes que nunca saíram do nosso lado e todo mundo que está lutando pela gente. Mas não deixem a gente desprotegidos, nem ir pra Manaus, nem aqui como a gente está”.

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quinta-feira, 15 de maio de 2014

O lucro da Sabesp e a falta d’água em São Paulo

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Notícia de hoje no Valor Econômico: “Mercado estima queda no lucro da Sabesp”. Vale ler o primeiro parágrafo:

- As previsões de analistas que acompanham a Sabesp consultados pelo Valor são de um primeiro trimestre de resultados ainda bons para a estatal paulista, pois o verão foi um dos mais quentes dos últimos anos. Com isso, espera-se aumento no consumo de água na região operada pela empresa, pois somente a partir de março a Sabesp começou a ter seus volumes e receitas reduzidos por causa dos descontos oferecidos aos clientes que reduzirem o consumo.

A noticia é dada exatamente no dia em que o governo estadual anuncia o início da utilização do volume morto do Sistema Cantareira. A empresa nunca utilizou esse reservatório.

Ou seja, a empresa comemora os lucros. No verão, nada de desestimular o consumo. Pois ele inspira “bons resultados”.

(O mesmo jornal, no caderno de investimentos, conta que o preço dos aluguéis está baixando. E que, “entretanto”, cenário em 2015 pode “melhorar”.)

Resultados bons para quem? Melhorar para quem?

Há aí um conflito de interesses evidente. Se uma empresa tem no consumo de água sua meta, pelo ângulo do lucro, como pode o cidadão (visto apenas como consumidor) virar refém desse objetivo?

Não se trata de uma distorção pontual. E sim estrutural. De um modelo que precisa ser revisto. Ou a água é um direito, ou uma commodity. Cabe ao Estado apenas reproduzir a lógica e os interesses do capitalismo?

Como se não bastasse, como sabemos, existem os interesses eleitorais. Não se assume o rodízio d’água em São Paulo (embora exista em Guarulhos, embora haja falta d’água nas regiões mais altas) porque isso pode prejudicar a reeleição do governador Geraldo Alckmin.

Mas os tucanos são protegidos pela imprensa. E a situação de calamidade (a mesma que engordou os cofres da Sabesp) não é exposta com todas as letras para a população.

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quarta-feira, 2 de abril de 2014

Militares investigam militares por crimes cometidos por militares

por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)

Manchete da Folha: "Militares criam comissões para investigar tortura". Os outros jornais vão na mesma linha. Lemos que os militares vão investigar "centros de tortura da ditadura" (Estadão), que as Forças Armadas investigarão "tortura e morte em quartéis" (O Globo).

Então tá. Os militares vão investigar os militares sobre torturas praticadas por militares durante uma ditadura.

A primeira imagem que me veio à cabeça foi a da lanterna de Diógenes. Só que às avessas. O filósofo grego andava com uma lanterna acesa, durante o dia. À procura de um homem honesto. Ou da verdade.

Já que estamos a falar de filosofia, não custa invocar o doutor Pangloss, personagem de Voltaire. Ele é o guru de Cândido, o jovem ingênuo que acreditava que todas as desgraças, no fundo, viriam para melhor. (Pollyanna viria a ser uma personagem mais popular nesse campo do otimismo empedernido.)

No sentido contrário, não consigo enxergar nessa lanterna verde-oliva mais do que uma reafirmação da obscuridade. Uma lanterna para inglês honesto ver, uma verdade para torturadores, auto-redentora.

O próprio Voltaire definia metafísica como procurar, em um quarto escuro, um gato preto que não está lá. Mas aqui estamos novamente às avessas: os torturados estavam lá, os desaparecidos existiram, os mortos se multiplicaram e ainda nem foram devidamente contados. (Pois temos os indígenas, os camponeses.)

E as tais comissões verde-oliva terão 30 dias para apurar tudo. Trinta dias! Um disparate, claro, que até agora passa despercebido por nossa imprensa tão peculiar, essa da "ditabranda", essa que transforma um mea culpa, por ter apoiado o golpe, num esquisitíssimo "meia culpa".


Trinta dias! Fiquei pensando: por que não 25 dias? Ou 21? Assim teríamos um dia para cada ano de perseguições, abusos, espancamentos, paranoia, em cada Unidade da Federação.

Eu me lembro que, quando servi o Tiro de Guerra, em São Carlos, o sargento Castro falava abertamente sobre tortura. Podiam chamar o sargento Castro para as investigações!

Na melhor das hipóteses, como imagina o Valor, esse encaminhamento peculiar da história recente do Brasil vai motivar "desculpas" por parte dos militares, "perdão".

Como não é isso que eu quero, esses jornais não me representam. Na minha opinião eles deviam estar exclamando palavras como "deboche", "escárnio". Clamando por investigação de verdade e pelo devido respeito à história de homens e mulheres violentados pelo Estado.


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segunda-feira, 17 de março de 2014

Cláudia, a mulher-arrastada. E os homens engravatados, fardados e-que-escrevem

por ALCEU LUÍS CASTILHO
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Corre nas redes sociais um movimento para que Cláudia da Silva Ferreira seja tratada como tal. Com nome e sobrenome, uma história. E não como "a mulher arrastada" por policiais, no Rio. Muito justo. E necessário. Ela era uma mulher, uma mulher-que-cuidava-dos-filhos (e dos sobrinhos), uma mulher-que-tinha-saído-para-comprar-pão (e mortadela). Mas, sim, ela foi arrastada. Antes disso, baleada. E aqui temos uma distorção - linguística, narrativa - em cima de uma distorção. Pois ninguém fala em Cláudia como "a mulher baleada". Ou "a mulher executada".

A indignação não pode se restringir à ação mais patética da polícia. Os patetas que a arrastaram foram, naqueles instantes em que a levavam para o hospital (baleada), exatamente isso: patetas. Não planejaram esse desfecho mais chamativo. Não temos aqui - insisto, estou a falar dessa cena final - mais um caso João Hélio Fernandes Vieites, o menino arrastado por bandidos, em 2000. Temos algo pior: algo que perpassa toda uma instituição, toda uma argamassa - uma sociedade - em frangalhos. Algo mais que uma distração brutal. E que um caso de banditismo comum.

Se Cláudia da Silva Ferreira foi baleada antes de ser arrastada, temos antes dessa cena - sim, extremamente chocante - um fato bem mais estrutural: temos uma corporação de assassinos. Que mata Cláudias e Amarildos e milhares de pessoas (negras e com filhos e que compravam pão), por todo o país, sem que alguma trapalhada escancare a brutalidade habitual.

A trapalhada não é cruel. Ela parece cruel. Cruel foi a execução de Cláudia. Chocante é ter um corpo no porta-malas. Violento foi o assassinato às escondidas, essa solução em escala para os conflitos sociais. Essa solução histórica, esse extermínio de brasileiros, essa naturalização da barbárie. Violento é o chefe de polícia, é cada um dos governadores, violento é esse sistema que mantém essa instituição que apela sem culpa para balas e porta-malas - e que abriga um ou outro policial tão trapalhão quanto despreparado.

Vou insistir no ponto: não estamos diante de uma videotrapalhada. Estamos diante do registro de uma parte chocante de uma cena mais ampla. Menos travelling (uma cena mais frenética de um filme) e mais uma imagem congelada: uma mulher baleada. Uma mulher que perde a vida. No filme “Roma, Cidade Aberta", um clássico do pós-guerra, a personagem Pina - Anna Magnani - corre, desesperada, para tentar salvar o marido, preso pelos nazistas. E grita: "Francesco! Francesco!" Aqui, não sabemos ao certo se Cláudia corria. Deve ter corrido. Deve ter pensado em correr.

Seria natural ela correr. Natural? Seria cultural. Porque o medo cotidiano nas periferias do Brasil é o medo dessa polícia fascista, dessa polícia que confisca câmeras porque não quer o registro de suas trapalhadas e de seus métodos incivilizados de imobilizar, de prender, de reprimir, de humilhar. O medo de Cláudia é o medo de cada um de nós. Medo institucionalizado, um medo curtido, soldado, multiplicado no dia-a-dia por homens fardados, homens engravatados e homens-que-escrevem: jornalistas.

A libertação das Cláudias e Amarildos que ainda não foram arrastadas e baleados não se dará sem a libertação desses homens-que-escrevem. Que pressionem os homens engravatados que, por sua vez, levem os homens fardados (e que sejam identificados, que não sejam anônimos) a patamares menos animalescos de intervenção social.  A preservação da vida das Cláudias e Amarildos passa, portanto, pela decisão – que também não é apenas individual – de homens-e-mulheres que-escrevem, de homens e mulheres que não podem escrever arrastados por uma tradição – patronal – de insensibilidade e descaso. De jornalistas cúmplices, cínicos e com horror à contextualização histórica e social.

Toda a sociedade brasileira estava naquele porta-malas. Toda a sociedade (mundial, capitalista, consumista, cega) está sendo arrastada e baleada. A ferida é planetária. Mesmo os defensores dos canalhas que promovem o extermínio estão sendo, dia-a-dia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e nos grotões (onde indígenas são atropelados, onde casas de camponeses são queimadas), violentamente reduzidos a arremedos de cidadãos. Mesmo quando marcham “pela família” eles marcham para trás. E sem retrovisor. É uma sociedade em marcha-a-ré, essa que matou Cláudia da Silva Ferreira - a “mulher arrastada”, a “mulher baleada”.

A luta que os filhos e sobrinhos de Cláudia podem ter – e de todos aqueles capazes de imaginar sua dor - não é aquela por policiais menos atrapalhados e por porta-malas que não falhem. É por uma polícia e uma sociedade humanizadas. Todos os que lidam com informação – jornalistas diplomados ou não, com crachá ou não, comunicadores de um modo geral, comentadores de redes sociais– têm um papel importante nesse sentido.  A escolha de cada palavra e de cada história e de cada tema pode contribuir mais ou menos para essa humanização. A escolha do lado errado bate, mata e arrasta – e tornará cada um de nós, aos olhos da posteridade, apenas mais um anônimo infame.

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