quinta-feira, 14 de junho de 2012

Dom Tomás Balduíno: “Governo do Pará vendia terras no mapa”

Dom Tomás Balduíno recebe neste dia 15 de junho, da Universidade Federal de Goiás, o título de Doutor Honoris Causa. Em 2006, pela Agência Repórter Social, fiz com ele uma longa entrevista, em Brasilia. Quase seis anos depois, com o bispo emérito prestes a completar 90 anos, ela se mantém atual. Na época eu a publiquei com o seguinte título: “Aldo Rebelo é quem deveria estar na Papuda”. Isto após o ministro, então presidente da Câmara dos Deputados, mandar prender centenas de sem-teto, do MLST, que estavam no gramado do Congresso. O MLST perdera o controle de um ato e dezenas de sus integrantes invadiram a Câmara. Foi a senha para a prisão em massa (os sem-teto passaram a noite no Ginásio Nilson Nelson) e para um massacre dos meios de comunicação – um dos temas tratados por Balduíno na entrevista. O título atual se refere a um trecho em que ele detalha como o governo paraense vendia as terras, nos anos 60, por mapas aéreos. Sem se importar se ali havia índios. Segue o texto como foi publicado em 2006:
 
por ALCEU LUÍS CASTILHO (@alceucastilho)
 
Em entrevista sobre o País e sobre sua vida, o líder da Comissão Pastoral da Terra falou (antes de Lula) de uma nova Constituinte, de uma “guinada para a direita” e desejou a prisão de Aldo Rebelo
 
BRASÍLIA - No dia 23 de julho, durante o Encontro Nacional dos Povos do Campo, Dom Tomás Balduíno concedeu uma longa entrevista à Agência Repórter Social. Por sua importância histórica, ela é reproduzida aqui na íntegra. O coordenador da Comissão Pastoral da Terra fala de conjuntura, mas percorre em sua fala centenas de quilômetros de uma história fundiária violenta. E faz projeções nada otimistas em relação ao futuro do País, que estaria sofrendo uma “guinada para a direita”, “pela pressão dos meios de comunicação”. Ele defendeu uma nova Constituinte antes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva falar disso, com repercussão bastante negativa. Motivo: o Congresso elege as elites, conforme o que o sociólogo Chico de Oliveira chamou de “fila dos idiotas”. Dom Tomás não deixa pedra sobre pedra. Sobre o episódio do MLST, disparou: “Aldo Rebelo é quem deveria estar no presídio da Papuda”.
 
Repórter Social - Passado algum tempo do episódio do MLST no Congresso dá para avaliar melhor os efeitos. Quais são? Os povos do campo saíram perdendo com isso?
Dom Tomás Balduíno -
Do ponto de vista da mídia, sim. É mais um motivo de criminalização. A mídia, representando o interesse dos grupos econômicos do país, sempre viu com maus olhos as organizações do campo, ancoradas na terra, mas com uma projeção política bem ampla, na linha da mudança. No governo passado, de Fernando Henrique Cardoso, era quem representava a oposição. Nem era o PT, eram as organizações do campo. E atualmente, se considerando nas mesmas trincheiras do Lula, eles são os que mais reivindicam insatisfação, decepção com o andamento da reforma agrária. Mantendo a mesma linha crítica, com relação ao conjunto da instituição. Então isso é mal visto. A tal ponto que a reforma agrária, pela força da mídia, começa a virar tabu, ou coisa proibida, como era antes.

 
Repórter Social - O senhor observa um fenômeno de retrocesso em relação à idéia de reforma agrária?
Dom Tomás -
Sim. E muitas vezes o poder público se vale disso para se retrair no apoio às reivindicações de assentamento, de aprimoramento das instituições como Incra, a serviço da reforma agrária, etc. Agora, do lado dos trabalhadores, eu acho que com esse evento na Câmara houve uma tomada de consciência, não só de questionar alguns do poder legislativo, com o gesto de indignação, mas um questionamento que se aprofunda. Em outras palavras, em vez de questionar as peças do xadrez, hoje se questiona o próprio tabuleiro. É o Congresso que precisa de uma reformulação. Porque se acontece tanta distorção, tanto escândalo como nós percebemos, não é só um problema de maus elementos que estão ali. É a própria estrutura que favorece isso. Afinal de contas, o Congresso que hoje temos é fruto de uma Constituição feita pelos próprios congressistas.

 
Repórter Social - Como a CPT vê, por exemplo, o caso dos sanguessugas? Deputados em escala, altíssima, 20% dos deputados sendo acusados de corrupção envolvendo verba para ambulâncias?
Dom Tomás
- A Comissão Pastoral da Terra vê um pouco nessa linha de ir além da incriminação desses 20% do Congresso. É a própria estrutura que favorece isso. Afinal uma estrutura distante do povo, auto-suficiente, onde predomina a impunidade, onde a impunidade é uma questão de honra. Analisando de novo o gesto do MLST, é um gesto que vai ao encontro não só de deputados, mas da própria instituição parlamentar, que merece ser revista a fundo. Não só uma reforma política, mas uma reforma constitucional. Uma nova Constituinte. Uma Constituinte que não seja feita por eles. Porque eles foram guindados à Constituinte, eles sendo congressistas, pela imposição do Sarney, na Constituição de 1988. Não foram os cidadãos comuns, eleitos constituintes, que foram votar a Constituição e depois voltaram para casa. Foram os próprios congressistas, do Senado e da Câmara, que foram promovidos a constituintes.

 
Repórter Social - Dom Tomás, não sei se estou distraído demais com a imprensa, mas não tinha ouvido o senhor falar disso ainda. Da necessidade de uma nova Constituinte, a partir até desses episódios...
Dom Tomás -
Hoje se fala muito de reforma. É uma conquista: reforma política. Todo mundo fala em reforma política. Os partidos, o próprio funcionamento do Congresso. Suponha a reforma política. Quem fará? Os deputados. Quer dizer, mais uma vez vão legislar em própria causa. E como superar esse impasse? Só mesmo com a criação de um organismo externo à Câmara. A reforma política é necessária, mas criada pelos deputados? Sob a medida deles?

 
Repórter Social - Que tipo de órgão seria?
Dom Tomás -
Não se fala do judiciário ter um controle externo? Com autoridade de poucos brasileiros para acompanhar o desempenho do Judiciário? Ou é o próprio Judiciário que se julga? Atualmente é assim. Então ter um Conselho. O Congresso precisa ter um órgão sério. Mas se hoje vamos propor a criação de um órgão externo ao Congresso, passará pela aprovação ou não aprovação dos próprios deputados.

 
Repórter Social - O argumento contrário será o de que os movimentos sociais, a igreja, estão querendo usurpar o sagrado direito do cidadão comum, que é manifestado pelo voto, “eles não são representantes da maioria do povo brasileiro, mas de determinados grupos”. Como o senhor responderia a isso?
Dom Tomás -
Que atualmente a fila de votos, que o Chico de Oliveira chama de a fila dos idiotas, é só eleger o cara. Depois de ele eleito, ele faz o que quiser do mandato dele. Qual é a força dessa fila? Esse é um problema muito sério. Acaba promovendo alguém como delegado do poder que é do povo, mas dono absoluto dessa delegacia. É nesse sentido que essa atribuição acaba sendo prejudicial ao próprio povo que esperava votar, que só faz isso, votar. Depois não acompanha, não tem instrumento de acompanhamento. Não se trata, portanto, de uma pressão desta ou aquela sociedade, ou igreja, ou de movimentos sociais. Não se trata disso. É um raciocínio transparente. Creio que nós estamos aí numa espécie de círculo vicioso. Toda reforma passa pelas mãos daqueles que mais precisam ser reformados. Eles se tornam a última palavra...
 
Repórter Social - Um moto-perpétuo... E quem poderia compor esse Conselho?
Dom Tomás - Suponho uma discussão. Porque esse Conselho deve ser em caso de eleição. E suponho uma discussão do tipo da Constituinte, que cria o instrumento do legislativo, do executivo e do judiciário e cria o controle externo. Então, a gente pode refletir como é que seria esse conselho. Mas a sua constituição passaria por alguma manifestação popular, do tipo Constituinte.

 
Repórter Social - Seria um poder moderador?
Dom Tomás -
Você não ouviu falar do Conselho do Judiciário?

 
Repórter Social - Mas pelo que estou entendendo seria algo relativo aos três poderes.
Dom Tomás -
Isso é uma necessidade. A forma concreta de chegar lá, precisa de reflexão, discussão, dentro de toda a sociedade brasileira. Senão vira um instrumento a mais, que pode cair nos mesmos vícios.

 
Repórter Social - Quem, além do senhor, tem discutido nesses termos?
Dom Tomás -
Essa discussão do controle externo do Judiciário é mais ampla que a CPT. Agora, essa discussão sobre a proposta de uma possível Constituinte veio a propósito destas eleições. O eleitor está diante de poucas alternativas.

 
Aqui se encerrou a primeira parte da entrevista, antes o início do Encontro Nacional dos Povos do Campo. Durante sua fala, Dom Thomas Balduíno fez várias citações bíblicas, ausentes durante a entrevista. Toda a parte seguinte foi feita no caminho para o almoço, no Minas Tênis Clube de Brasília, na fila e na mesa, diante do prato com arroz, feijão, frango e salada.
 
Repórter Social - Quem mais está pensando ou parecido com o senhor em relação a isso?
Dom Tomás - Isso precisaria fazer um levantamento. Sei que não estou só. Porque a própria Constituição de 88, que nós consideramos insatisfatória pelos motivos que eu mostrei, já foi deturpada na linha de anular as conquistas dos trabalhadores, do pessoal da terra, no sentido da flexibilização. Isso entrando como emenda na Constituição. Somando a Constituição desde os tempos de Fernando Henrique Cardoso, as emendas constitucionais, todas elas são no sentido de um retrocesso. Como corrigir isso? Se for confiar ao próprio pessoal que institucionalmente é encarregado de mexer na Constituição, dentro daqueles critérios da proporção numérica, são homens e mulheres que vão legislar em causa própria. Além disso, esses que estão lá dentro, pelo processo mesmo de formação do Congresso, do próprio time do Executivo, da presidência aos governadores e prefeituras, tudo isso obedece ao critério de uma maioria que representa a minoria. Lhe explico: o detentor do poder é o povo. Os que representam o povo no Congresso podemos distinguir entre um grupo majoritário que representa a minoria do povo, que são as elites, e um grupo minoritário que representa o resto do povo, a massa do povo. Então esta é a conseqüência de uma distorção na própria estrutura que leva a prover os diversos cargos do Congresso.
 
Repórter Social - ...
Dom Tomás - Eu não respondi à sua pergunta, você queria saber quem mais? Acho que há muito que acham que não seria a hora da mudança na Constituição. Porque os congressistas não estão à altura de votar a causa do povo. Porém, eu respondo o seguinte: a Constituinte não leva em conta o time que está compondo o Congresso. Não mexe neles, não caça o poder deles, porém cria uma nova Constituição a partir dos legítimos representantes do povo, que são eleitos em vista da própria Constituição. Um outro mundo, outro universo.
 
Repórter Social - Mas não há risco de um retrocesso? Em 1988 o clima era mais favorável às causas sociais do que hoje, não? Mesmo entre as elites...
Dom Tomás -
Eu diria que hoje há um avanço na sociedade brasileira em termos das organizações populares. Cresceram. Não havia isso em 88. A própria reforma agrária ficou mais na mão da bancada ruralista, do Centrão, porque do lado da representação dos trabalhadores rurais havia apenas a Contag. Não havia esse leque imenso de organizações populares, ou das mulheres, dos quilombolas, dos povos indígenas. E nasceram. Essas organizações são do final dos 70 e início dos 80. E isso muda muito a perspectiva numa hora de uma proposta de nova Constituinte.

 
Aqui Dom Tomás fala da possibilidade de uma “guinada para a direita” no país, pela “pressão dos meios de comunicação”. Ainda estamos na fila do almoço no Minas Tênis e a conversa interessa as pessoas mais próximas, que apenas ouvem.
 
Repórter Social - Que país o senhor vislumbra para uma nova geração, para os próximos 25 anos, pelo andar da carruagem? Se nada mudar o que vai acontecer? Vai ter mais conflito, mortes, radicalização?
Dom Tomás
- Há uma tendência que a gente nota, dentro do país, devido à pressão dos meios de comunicação, de uma guinada para a direita. É a figura do país norte-americano. Uma direitona. Tanto republicanos como democratas é a mesma coisa. Às vezes temo que isso no Brasil avance. No sentido de novas gerações sem compromisso nenhum com o social, e o povo em geral levado ao consumismo pelos meios de comunicação social. De maneira que... Isso para falar do grosso da população. Esses, por exemplo, que são beneficiados pelo programa Bolsa-Família, que estão optando por Lula, é gente em geral que não têm a mesma consciência de luta que têm estes grupos aqui. Pessoal de luta, de organização popular, deve estar reduzido à minoria. Porém, há imprevistos. Do tipo do fenômeno que levou Lula ao poder. Quem esperava que acontecesse o fenômeno Evo Morales na Bolívia? São coisas assim. Pode ser que esse povo sofrido, que talvez esteja apático diante da política e queira ter só a sua bolsa, o seu pecúlio mensal, numa hora de uma proposta ele abre os olhos. De repente. Pode suceder isso. Acredito que é um pessoal que vem sendo ameaçado pelos políticos oportunistas, mas que de repente pode abrir os olhos para outra perspectiva. E, o que é importante, forma maioria. Aqui nós temos em termos de oposição numérica, uma minoria de direita, com muito poder de penetração, por causa dos meios de comunicação social, dos recursos, do dinheiro, e uma grande maioria que é um potencial de mudança.

 
Repórter Social - O centro virou direita ou é direita?
Dom Tomás -
É direita. Em si é direita. Esquerda, no sentido de abertura, participação... O que distingue um do outro? É a elitização, a privatização, é a questão da ordem a favor dos grupos privilegiados, ao passo que a esquerda é toda forma de promoção a partir de baixo. De dar a voz e a vez aos mais pobres, aos mais sofridos.

 
De volta ao MLST, Dom Tomás dispara: “Aldo Rebelo é quem deveria estar preso na Papuda”.
 
Repórter Social - Queria que o senhor falasse da prisão do pessoal do MLST. O cara que deu bengalada no Zé Dirceu foi solto no mesmo dia. Eles não. O que significa isso?
Dom Tomás - É uma questão mesmo de uma desconfiança dos detentores do poder com relação aos representantes do povo. Essa prisão, primeiro foi uma prisão em massa, de quase 400 pessoas, pais de família, gente de paz, gente de trabalho honesto, jogados na Papuda. Quem fez isso, quem teve a idéia de fazer essa prisão, merecia estar na prisão.
 
Repórter Social - Foi o presidente da Câmara, aliás o deputado comunista Aldo Rebelo.
Dom Tomás -
Merecia estar lá dentro. Lá dentro da prisão. Porque é representante de uma elite que tem esse título de esquerda. Que é mais um título de glória, mais uma estrela para brilhar na lapela.
 
Repórter Social - O senhor está dizendo uma coisa muito grave aqui, Dom Tomás. Que o Aldo Rebelo deveria estar na Papuda?
Dom Tomás - É. Deveria estar. Ao invés desses que ele mandou para lá.
 
A resposta oficial da assessoria do presidente da Câmara foi a seguinte: "A assessoria de imprensa da Câmara dos Deputados reafirma que os militantes do Movimento de Libertação dos Sem-Terra já chegaram à Câmara de forma violenta, sem dar espaço ao diálogo, forçando a entrada de uma das portarias da Casa. Reafirma também que o presidente Aldo Rebelo mantém suas convicções no processo de diálogo com as forças sociais e as portas da instituição abertas a todas as manifestações pacíficas. O próprio Dom Tomás Balduíno e outros movimentos ligados à luta pela terra já foram recebidos diversas vezes pelo Presidente.”
 
A entrevista segue falando de violência no campo:
 
Repórter Social - O relator Valente, da plataforma Dhesc, relatou aqui no Fórum Nacional dos Povos do Campo casos escabrosos, por exemplo da Brigada Militar gaúcha roubando merenda, provocando até sexualmente as mulheres do MST. Ou o de um morto sendo despejado. Ele chamou isso de “um Brasil sem pé nem cabeça”. O senhor recebe na CPT denúncias desse tipo, regularmente?
Dom Tomás -
A CPT faz anualmente o Caderno de Conflitos. Que só não entra área indígena, que é feita pelo Cimi. Você percebe isso. Por exemplo a situação dos mortos da cana: eles morrem de cãibra, porque são obrigados a competir com as máquinas. Ou competem com as máquinas, cortando 16 toneladas, ou são postos na rua. E eles fazem tudo para poder garantir o emprego, porque é o dinheiro que mandam para a família de origem, de onde vêm, que é o semi-árido de Minas, do Nordeste, do Piauí, Maranhão. Nesse Caderno de Conflitos tudo vai nessa linha. Os conflitos existem não porque os trabalhadores rurais criam caso, porque agridem ou porque estão roubando fazendas, roubando gado. È porque o sistema os considera como bandidos, em vez de considerá-los como cidadãos que estão participando honestamente da construção da pátria.

 
Repórter Social - Ele citou o caso do Judiciário, até o de um ministro, Francisco Falcão, que ele chamou de “vendilhão”. Qual o papel do Judiciário nisso tudo?
Dom Tomás -
Teve um caso, por exemplo, do Supremo ter determinado o despejo de todo um grupo indígena, da tarefa, favorecendo um casal, que se intitula proprietário da terra. Tá bem. Olhando lá os textos de direito da propriedade, o juiz pode determinar o que ele quiser em favor do proprietário. Somente a Constituição abriu um outro veio, mais importante que o do direito da propriedade, que é a dimensão social da propriedade, a função social da propriedade. Comparando as duas coisas, o que define afinal de contas o direito da propriedade não é o direito absoluto, mas o respeito às condições do social. E você comparando, por exemplo, um casal que tem filhos, pretenso detentor de uma área onde os povos indígenas estão há anos, olhando sobre o ângulo social, prevalece a força, o direito?

 
A entrevista começa a tomar um rumo mais centrado na figura de Dom Tomás. Ele fala do jogo político na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
 
Repórter Social - Dom Tomás, o senhor está com quantos anos?
Dom Tomás -
Oitenta e três.

 
Repórter Social - O senhor está radicalizando seu discurso nos últimos meses? Está mais indignado?
Dom Tomás
- Acho que não, é a mesma coisa.

 
Repórter Social - Em termos de CNBB, como está o jogo político interno? Vocês lançaram este ano um texto ecumênico a partir da Carta da Terra, de 1980, mas não foi assinado pela CNBB.
Dom Tomás
- A correlação de forças dentro da CNBB não aponta na linha de assumir um documento daqueles, polêmico. Ele assume uma posição dura contra o agronegócio, se posiciona contra a transposição do São Francisco, a favor das ocupações... Justifica até com apoio daquele documento da Santa Sé. Não é aconselhável um documento desses ser assumido pela Conferência Episcopal. Por causa da diversidade de posturas dos bispos que estão aí. Talvez no ano 80 o episcopado tivesse mais coesão, mais uniformidade. Hoje não tem. Era inicialmente proposto para ser assumido. Foi a própria CNBB que pediu para a CPT atualizar o documento. Mas uma vez feita a atualização, com diversas assessorias, o pessoal sentiu que não... Como é que ele sai? Sai como um documento de bispos. Isso é tradicional na Igreja. Desde o tempo dos apóstolos e dos diáconos que há essa tradição de um bispo, por exemplo sozinho, tomar uma posição, com a responsabilidade problema, em relação a tal ou qual problema. Da mesma forma ele se unir com outro grupo ou outros grupo para fazer um pronunciamento. Fazendo assim, ele não está criticando o colégio, está talvez reconhecendo que talvez fosse forçar muito um colégio a adotar as posições dele.

 
Repórter Social - A Pastoral da Terra está tendo o apoio necessário da Conferência, em termos de recursos. Ninguém quer derrubar o senhor?
Dom Tomás -
É polêmico também. Tem bispos que não aceitam a CPT, que proíbem a Romaria da Terra. Não é um posicionamento geral da CNBB. A gente tem de entender duas coisas. Primeiro, a própria instituição, que aprova os documentos. E os membros da mesma CNBB, que são bispos, cada um com sua posição, sua ideologia. Gerar um consenso para um documento é uma coisa mais restrita. Você vai votar sobre o processo eleitoral. Quando muito entra contra a corrupção. Em qualquer entidade é assim. Se você alarga está sujeito a um efeito de média. A CNBB é mais uma força moral. A última palavra é do bispo diocesano. E isso é sustentado pelo direito canônico. Em outras palavras, a CNBB não é uma superdiocese, com poder sobre... Para muita gente parece que é um organismo acima do bispo diocesano. Não é. Ela decide por força moral. E funciona.

 
Dom Tomás volta a falar da direita e do governo Lula. Diz que se ele não tivesse adotado uma postura conciliadora poderíamos ter tido um golpe.
 
Repórter Social - Voltando um pouco: quando o senhor fala que teme o crescimento da direita no país, haveria uma tendência a uma radicalização, como na Venezuela? E o que aconteceria com um governo de direita?
Dom Tomás
- Acho que a sua comparação não é feliz. Porque na Venezuela o governo Chávez estaria mais perto dos movimentos sociais do que da elite. A elite que é contra ele, não os movimentos sociais.

 
Repórter Social - Mas me referia à radicalização, no caso da Venezuela.
Dom Tomás -
A radicalização, sim. Entendo. Aí é questão do futuro. Muito difícil você... Vamos tomar o exemplo do Lula. Se, em vez de seguir o caminho que preferiu seguir, que ele chama de governabilidade, seguisse a expectativa popular que ensejou a vitória dele, poderia haver um processo de radicalização. Sob que forma? Na forma de conspiração, de propostas de impeachment, e em último caso de golpe. Isso é que é radicalizar.

 
Repórter Social - Deixa eu ver se entendi: se o governo Lula fosse menos conciliador, inclusive com as elites, poderia ter desembocado num contexto de golpe?
Dom Tomás -
Eu acredito que o Lula não sofreu o impeachment porque ele concedeu tudo à elite financeira. O pessoal deixou assim: bom, mas a gente não está perdendo com ele, então por que derrubá-lo? Você não sente isso?

 
Repórter Social - Eu acho que tem a ver com a reação popular. O termômetro é o apoio ao governo e as próprias pesquisas sobre reeleição. Quanto menos apoio popular...
Dom Tomás -
Isso é um fator de ponderação, o apoio popular. Mas os elementos que levaram a cair ministros, deputados, presidentes de partido, poderiam ter acontecido no caso dele. Isso foi falado isoladamente, não foi uma proposta consolidada contra o Lula.
 
O assunto passa a ser as eleições e o quadro político em um segundo governo. Estamos no almoço e Dom Tomás fala ainda mais pausadamente, mas sem se incomodar em continuar dando a entrevista.
 
Repórter Social - Pensando neste evento. Já num período eleitoral, o que dá para sair daqui? O presidente do Incra propôs acordo em relação ao segundo governo. O senhor acha que dá para sair algo nesse sentido?
Dom Tomás -
Falando realisticamente: o Lula está eleito. As pesquisas já mostram ser difícil essa inversão. O encontro vai tentar mais consenso entre os companheiros. O Rolf falou disso, da união entre as diversas organizações. O encontro não vai descobrir a pólvora. Vai unir. A grande proposta é essa. O consenso é um pouco geral. Há um consenso em torno das propostas.

 
Repórter Social - O senhor falou da reeleição praticamente. Mas nos governos estaduais a oposição deve vencer. O PT tem mais chances somente no Acre e Piauí. Os governadores têm o poder de polícia, inclusive sobre os sem-terra – a gente falou aqui da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Mesmo admitindo um governo Lula que não reprima movimentos, a gente não fica com um país ambíguo no que se refere à relação com direitos dos trabalhadores? Ou seja: a direita não vai se utilizar desses governadores para bater nos trabalhadores?
 
Dom Tomás - Há um fenômeno que é novo, está sendo cultivado, divulgado, que é o da própria sociedade civil. Os governadores são um poder. Provinciano, mas é um poder. Todo mundo disse: agora é Lula, então vem a reforma agrária. Só que a questão, depois de 30 anos de caminhada, é o povo ter de criar um instrumento adequado à vida democrática. Esse fracasso tem um lado positivo, de abertura de horizontes, que é na linha de fortalecer a sociedade civil. Falam do Evo Morales. Quanto mais o povo distante, mais a elite criola ia fazer as coisas dela. Derrubaram o presidente. Na Venezuela evitaram o golpe. Eu faço a mesma leitura que você faz: os governadores não vão ser mais aqueles amiguinhos. Porque a estrutura que nós estamos aí é a que gera esse tipo de governador.
 
Repórter Social - Detalhe: governadores com chances efetivas de serem presidentes da República em 2010...
Dom Tomás -
Esse é um elemento complicador, que muda o cenário daquele que era antes. E acho positivo isso, que uma decepção com o fracasso como este realizado pelo governo Lula acaba permitindo a emergência da organização popular. Nem tudo no país é governo. Nem tudo vem do céu do Palácio do Planalto. Veja a força que exerceram os coronéis, os Sarney, Antonio Carlos Magalhães...

 
A entrevista segue para o seu final partindo para a biografia de Dom Thomas. Após quase duas horas de entrevista, ele fala da morte, dos que caíram na luta no campo. Um pouco de história do Brasil a partir da narrativa do líder da Pastoral da Terra.
 
Repórter Social - Aos 83 anos, o senhor viveu a juventude, adolescência, durante o Estado Novo. Boa parte da história do Brasil. Isso que o senhor fala de mobilização da sociedade civil é a principal novidade na sua trajetória de observador do país?
Dom Tomás -
Já houve mobilizações interessantes. Tivemos as Diretas Já...

 
Repórter Social - Essa, pontual.
Dom Tomás -
Pontual. E talvez fracassada, né? Terminado o fervor da mobilização... Eu participei lá em São Paulo. Quase me mataram. A massa de milhões mata qualquer um, se você quer atravessar...

 
Repórter Social - Quais foram os momentos mais tensos que o senhor viveu? Durante as ditaduras?
Dom Tomás -
O momento mais tenso foi na estrada das organizações do campo, em Goiás. O governo militar estava por trás, mas era sobretudo a tensão com os latifundiários, porque na Diocese de Goiás foi um ponto de partida de alguns movimentos nacionais contra o custo de vida, movimentos por exemplo campanha nacional pela reforma agrária, nasceu lá, com o apoio do Betinho, depois ficou mais próximo lá do Ibase. A coisa acirrou nas sucessivas ocupações de terra.

 
Repórter Social - De que anos o senhor está falando?
Dom Tomás -
Estou falando dos anos 80, início dos 90. Foi o momento mais duro. Porque essas organizações se apoiavam muito nas dioceses. Elas tinham referência até como local de reunião. Não eram autônomas, todas as dioceses, mas aproveitavam o espaço para fazer suas articulações. Chamavam assessores de onde eles queriam, livremente. O engraçado é que houve um... Vou contar um exemplo. Houve um encontro de trabalhadores na minha casa, porque lá era um centro diocesano de pastoral, com alojamento, com salões. Na hora assim do almoço dos trabalhadores rurais estavam reunidos e eles disseram: nós estávamos reunidos e não convidamos o senhor. O que o senhor diz? Eu disse: fico feliz de vocês poderem caminhar com suas próprias pernas, pensar com sua cabeça e caminhar com as pernas. A tensão ia esbarrar ali, porque a Diocese dava apoio a eles. O apoio da forma mais adequada, permitindo a eles o protagonismo. Não criamos movimentos de igreja para o campo. Nós abrimos espaços para o povo do campo ser sujeito, autor e destinatário de sua própria caminhada. Diziam inclusive que era o bispo que ordenava as ocupações. Não acreditavam que aquele peão pudesse ter cabeça para articular uma ocupação, envolvendo os diversos atores. Gente que achava que era somente pau-mandado, na condição de trabalhador doente que só fazia aquilo. A culpa recaía sobre o bispo. Então explicar as coisas a cada um, a gente deixava pra lá, não se incomodava com isso. Contanto que na realidade eles sejam os protagonistas, e não agentes de pastoral, Contag, seres muito iluminados. A minha experiência vem de longe. Antes de ir para a diocese de Goiás fui missionário em Conceição do Araguaia. De 1954 até 1967. Trabalhei em áreas indígenas, para isso estudei, fiz aqui pós-graduação em antropologia e linguística na UnB, cheguei a falar a língua de um deles.

 
Repórter Social - Qual língua?
Dom Tomás -
Xicrin. Do grupo bacajá, Kayapó. Mas lá a gente já começou a encontrar a contradição da terra. Os posseiros. Porque lá o governo não se incomodava em dar títulos de terra, desde que o pessoal requeresse. Começou a dar para os ricos do sul. Mas havia inúmeros posseiros, que começaram a ser incomodados pelos novos donos da terra, que chegavam com o documento. O governo do Pará vendia a terra no mapa, o mapa de aerofotometria. Sem saber se lá tinha índio, tinha... Aí o conflito vinha quando o dono chegava e falava: olha aqui o meu documento. Isso aconteceu em Santa Terezinha, fundada pelos velhos missionários dominicanos franceses, tinha igreja, escola, casa das irmãs, o povoado foi se formando. O comércio, e as casas de família. Um belo dia chegou lá um cara de São Paulo, dono da empresa chamada Codeara, reuniu o povo e falou: vocês têm várias coisas que acho que são de vocês – igreja, escola, posto de saúde, suas casas, comércio. Vocês podem pegar isso e levar para onde vocês quiserem. A terra, que está embaixo disso, é minha.Você imagina... E quando era indígena... E o governo estadual, como você diz, mandava a polícia.

 
Repórter Social - Isso foi em que ano?
Dom Tomás - Deve ter sido em 1969, 1970.
 
Repórter Social - Ontem a dona Dijé, líder de quebradoras de coco no Maranhão, contou caso similar, no Conselho Federal de Psicologia, relativo à sua comunidade quilombola, queimaram todas as casas... Uma empresa japonesa.
Dom Tomás - É o mesmo processo. Acho que o instinto mal, mesmo, ignora quem está lá. E é um dinheiro que não vai para os cofres públicos. Vai para a corrupção. Pois o Estado tem o poder de venda, dá as escrituras públicas, mas a realidade a terra não é totalmente do Estado, é terra de posseiros, de povos indígenas, que tem direitos imemoriais. O resultado é a briga, o conflito. Isso para dizer que comecei no noviciado nesse clima, antes de vir para a Diocese de Goiás, onde fui arcebispo por 31 anos. Agora, como a gente disse, a polícia é formada ali mesmo. De vez em quando me chamavam para dar uma aula no quartel deles. Eles me conheciam, iam tomar bênção. É quem a gente encontrava nos despejos. Quando você via se aproximando o carrinho da gente, o pessoal ficava que nem marimbondo: olha ali, polícia, fazendo o cerco. Falavam: Dom Tomás... Você vê: ao mesmo tempo a tensão e a possibilidade de um papo, de um diálogo, sobretudo no nível da força policial. O que eu tinha medo, sobretudo em relação aos agentes de pastoral, era dos jagunços. Eu não tinha medo da polícia. Nunca tive. Nem do exército. Sabia que tinha vários agentes me acompanhando. Havia essa possibilidade de levar um diálogo com o dono da terra, ou então com o comando, a gente até combinava com a polícia, ‘não faça esse despejo agora, espera mais um pouco, você não vai perder emprego por causa disso’, aí dava tempo da negociação chegar. Todas as vezes o resultado das ocupações foram assentamentos.
 
Repórter Social - O senhor foi a muitos velórios de trabalhadores rurais?
Dom Tomás -
Fui a muito velório de trabalhador rural, de padre assassinado...

 
Repórter Social - Quantos?
Dom Tomás -
Não contei, mas teve dois mais presentes na minha memória. O padre Rodolfo Lunkenbein (morto em 15 de julho de 1976), padre João Bosco Burnier, assassinado em Ribeirão Cascalheiro (11 de outubro de 1976), padre Josimo (Tavares, assassinado em 1986, no Maranhão).

 
Repórter Social - Em que ano?
Dom Tomás -
76. Agora completaram 30 anos. É engraçado o episódio do Rodolfo. Entrou um jornalista aí, na história. Depois dele sepultado, do velório, eu estava na minha mesa de trabalho, o telefone toca. Um jornalista de Brasília me chama. Dom Tomás, no dia 20 de julho de 1976 onde é que o senhor estava? Eu peguei a agenda e falei: fui para o velório do padre Rodolfo, estava lá. Inclusive fui pilotando o aviãozinho. Mas ele falou: eu queria saber onde o senhor devia estar. O senhor devia ter cancelado um compromisso para ir lá. Eu vi na agenda que tinha que estar numa paróquia, encerrando a festa de um padroeiro. Aí ele falou: estou informado, por que ele tinha acesso a órgãos de segurança, que estava preparada sua morte naquele dia. (Ri.) Então eu digo sempre: o Rodolfo me salvou... Porque indo para o velório dele eu escapei.

 
Repórter Social - O senhor era de chorar com esses episódios?
Dom Tomás -
Não. A gente tem uma espiritualidade diante... Até fiz um estudo sobre isso: sobre a morte. A morte nas comunidades eclesiais de base. E a morte na filial. Nessa romaria dos mártires o pessoal celebra praticamente a vida, não a morte. Porque há um culto da morte na igreja católica herdado de outras religiões, que não católicos, mas que a Igreja assimilou como culto dos mortos. Esse é triste, esse é luto. Nas comunidades eclesiais de base, é claro que o pessoal não deseja a morte, nem quer que morram os companheiros, transformam isso em bandeira de vida e de luta.

 
Repórter Social - Eu acabei de entrevistar a Elenira Mendes, que tinha 4 anos no dia do assassinato. Chico fez dedicatórias a ela, dizendo que ela teria de seguir a luta. Agora, com 22 anos, efetivamente está assumindo a causa...
Dom Tomás -
Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, ele declara explicitamente que se ele morrer a morte dele será motivo de ressurreição do povo de El Salvador. Ele ressuscitará na vida do povo de El Salvador. Então a consciência que o pessoal de Anapu tem a respeito da morte de Dorothy é que fortaleceu: sentiram o apoio não só do país, mas de todo o mundo em torno daquele ideal, porque não era só irmã Dorothy que tinha aquela ideia de centros ecológicos – é a mesma mentalidade do Chico Mendes. O pessoal ficou muito fortalecido com isso. A morte recupera um pouco a espiritualidade dos primeiros cristãos, que o sangue do mártir é semente, vida nova na igreja.

 
Repórter Social - O senhor conheceu todos esses personagens? Chico, Dorothy? Outro dia eu estava entrevistando a Elizabeth, a viúva do “Cabra Marcado para Morrer”, conforme o documentário do Eduardo Coutinho...
Dom Tomás –
Conheci. Sobretudo Dorothy. Ela era do CPT. Josimo era meu companheiro de caminhada. Esteve até na cadeia, do exército araguaiano. O Tito Alencar... Bem na minha diocese tem um padre que ficou cego dos dois olhos, porque tomou um tiro de cartucheira, perdeu completamente a visão.

 
Repórter Social - Perdeu em Goiás?
Dom Tomás -
Foi, foi lá. O tiro seria para o bispo. Ele é cego, mas foi promovido como pároco da mesma paróquia onde foi ferido.

 
Repórter Social - O que os mártires têm em comum? Liderança, fibra, visão do processo histórico?
Dom Tomás -
Certamente uma mística em comum. Na linha da libertação, de levantar as condições de vida do povo, a paixão pelo povo. Todos eles, de uma maneira muito forte. Isso é uma coisa que não é fruto de um aprendizado, de um noviciado. É um negócio complexo, não é? Como é que a pessoa chega a isso? É inato, parece que algo é inato. Um elemento que está encontrando as condições, então se afirma dessa forma.

 
Repórter Social - O senhor se arrepende de algo em sua trajetória?
Dom Tomás - Meu temperamento não é de ficar arrependido nem triste. Não é mérito de minha parte, é meu jeito de ser. Eu enfrento. Eu acho que herdei essa coragem de enfrentar os acontecimentos do meu pai. Meu pai foi juiz, numa área de cangaço. Eu era meninote, acompanhava as estratégias para a defesa da família. Porque tinha um bando querendo ocupar a cidade – Formosa (GO), aqui perto. E ele era uma das pessoas juradas para morrer. Esse homem enfrentava isso com serenidade e continuava como juiz, julgando essas causas escabrosas. Formosa está ligada àquele perímetro que você vê em Guimarães Rosa, Urucuia, a interseção Minas-Bahia-Goiás, uma região muito pródiga em cangaço naquele tempo. E isso ia esbarrar aonde? Na Justiça.
 
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